Passado mais de um quarto de século da publicação da Antologia de Poesia Açoriana de Pedro da Silveira ( Silveira , 1977), alguns dos objectivos que a animaram continuam muito longe de estarem cumpridos. Um deles seria a realização de um pesquisa sistemática sobre aquilo que o autor designa como “literatura açoriana” – e que eu preferiria dizer “literatura nos Açores” –, com uma especial atenção ao período não-contemporâneo. Na verdade, e apesar dos esforços do próprio Pedro da Silveira e de muitos outros - com destaque talvez para o também já falecido Rui Galvão de Carvalho –, há muita investigação de pormenor que está ainda por fazer: sobre autores, sobre textos, sobre periódicos, sobre edições. Sem monografias desse tipo – que bem poderiam substituir tanta dissertação de mestrado pouco útil –, dificilmente disporemos algum dia de uma História da Literatura nos Açores ou L té de uma Antologia que melhore consideravelmente a do investigador e poeta das Flores. E essas duas publicações seriam sem dúvida a melhor homenagem que poderia ser prestada à memória de Pedro da Silveira.
O meu propósito é, evidentemente, mais modesto: participando numa sessão que assinalada o 2.° centenário da morte do faialense Manuel Inácio de Sousa, tentarei apenas apresentar uma síntese das pesquisas que realizei e fui publicando ( Topa , 1995: 19-20; 1998; 2000: 431-439; 2001) sobre este poeta setecentista. Manuel Inácio, que Pedro da Silveira considerou «talvez o melhor dos neo-clássicos açorianos» ( Silveira , 1977: 7), nasceu a 20 de Dezembro de 1739, na Horta. Aí viria também a falecer, provavelmente em 1802, data avançada pelo seu primeiro biógrafo, António Lourenço da Silveira Macedo ( Macedo , 1881).
Embora continuem a faltar elementos sobre certos aspectos da vida do autor faialense, o essencial do seu percurso é conhecido. Quanto aos estudos universitários, por exemplo, pude apurar que se matriculou em Instituta no ano lectivo de 1760/6 1, alcançando o grau de Bacharel em Cânones a 25 de Maio de 1764 e o de Licenciado a 23 de Julho. Regressando ao Faial, casaria com a sobrinha Luísa Francisca de Sousa Sarmento, vindo a ser pai de sete filhos. Segundo António Macedo, terá exercido alguns cargos públicos, designadamente o de Vereador da Câmara Municipal e o de Provedor dos Bens dos Defuntos e Ausentes. Montaria depois, com um dos seus irmãos, uma importante casa comercial, voltada sobretudo para a exportação de vinhos, da qual se retiraria anos mais tarde, instalando-se num imponente palacete no sítio do Pilar, referido num dos seus poemas. Até há pouco insuficientemente inventariada e editada, a obra poética de Manuel Inácio de Sousa está actualmente fixada num total de 23 textos, distribuídos do seguinte modo: oito sonetos, cinco odes, três églogas, duas elegias, dois idílios, uma canção, um madrigal e um poema em quadras heptassilábicas. Não é contudo de excluir a hipótese de virem a ser encontrados novos poemas, sobretudo em bibliotecas e arquivos particulares. Seja como for, o conjunto já reunido mostra com clareza que não estamos perante um poeta ocasional e circunstancial. Passando a uma breve comentário da poesia do autor, não podemos deixar de notar que ela apresenta uma grande variedade de formas poemáticas e de recursos técnicos. No domínio da métrica, embora use preferencialmente o decassílabo, também lança mão do seu quebrado, o hexassílabo, e chega a experimentar com mestria o tradicional redondilho maior. Algo de semelhante se verifica quanto às formas estróficas e aos modelos rímicos: o poeta tanto apresenta composições de estrofação irregular como recorre ao terceto, à quadra ou à sextilha; e, embora use quase sempre o verso rimado, com diferentes esquemas, não enjeita o verso branco, bem característico da época.
Mas o que mais importa notar é que estamos perante um poeta, e um poeta de certo interesse no panorama do neoclassicismo português. Mesmo nos poemas de circunstância - que são apenas quatro - podemos comprovar essa afirmação. Vejamos, por exemplo, dois pormenores da elegia começada pelo verso Perdoa, sombra ilustre, se o sossego , que Manuel Inácio consagrou à morte de D. José, Príncipe da Beira e do Brasil, ocorrida a 11 de Setembro de 1788. Atentemos neste terceto (vv. 31-33), em que o enunciador interpela a morte:
«Inexorável monstro de fereza,
Quantos frutos em flor arrebataste?
Que glória ao Reino, ao sólio que [grandeza?»
Repare-se sobretudo no belo efeito do zeugma e do quiasmo sintáctico no último verso e atente-se no modo como a distribuição dos acentos destaca os quatro substantivos:
Que/gló/ria ao/Rei/no, ao/só/lio / que gran/ de / za?
Ainda no mesmo poema, veja-se o primeiro verso do quarteto final, em que se dá conta do resultado nulo das súplicas da destroçada consorte:
«Calava a terra, o Céu não respondia».
Uma vez mais, note-se o efeito do quiasmo, reforçado pela oposição ao nível dos substantivos (“terra” / “Céu”) e pela similitude das formas verbais (“Calava” / “não respondia”). Aliás não faltam os exemplos capazes de mostrar o talento poético do faialense. Veja-se por exemplo a expressividade do verbo “cortar” neste dístico, pertencente à ode Descansemos, Anarda, neste sítio :
«Vão as águas aos olhos fugitivas
Cortando a verde relva destes [prados» (vv. 8-9).
Atente-se ainda nos vv. 25-26 da ode Enquanto pelos campos estendidos :
«Eu em seu terno peito respirava;
Eu em seus lindos olhos sempre [ardia».
Se os adjectivos são convencionais, o dístico merece referência pelo paralelismo, pela imagem original do segundo verso e sobretudo pelo contraste entre “respirar” e “arder”, ambos apresentados como fonte de alegria e de vida para o sujeito. Mas, para além de pormenores desse tipo, é sobretudo na representação do amor que reconhecemos em Manuel Inácio de Sousa um poeta. Seja na candura - que diríamos juvenil – com que dá conta do prazer do ciúme instalado no rival:
«Oh, quanto feliz sou quando contigo
Gozo tanta frescura deleitosa!
Mas quanto mais feliz e venturoso
Se o meu triste rival
Ouvisse esses suspiros
Com que premeias meu ardente amor!»
(vv. 31-36 da ode Descansemos, Anarda, neste sítio );
seja na graciosidade com que narra uma cena amorosa, como neste madrigal:
«Ontem, quando a manhã vinha rompendo,
Encontrei neste prado a Zélia amada,
Nos cristais duma fonte sossegada Seu alvo rosto vendo...
Mas eu, impaciente e receoso
De que Zélia adorada
Ficasse namorada
De seu rosto formoso,
Da doce fontezinha em que se via
Lhe turvei a corrente clara e fria.»
É certo que não faltam os motivos convencionais de vário tipo, a começar pelo estilo pastoril, associado por vezes a elementos da mitologia. O leitor dos nossos dias tende a sentir uma tal linguagem como demasiado artificial, podendo experimentar um certo enfado perante a expressão de um sofrimento tantas vezes repetido. Mesmo assim não pode deixar de notar o tom relativamente moderno que Manuel Inácio de Sousa imprime à representação da natureza, moldando-a com frequência ao estado de espírito do sujeito, que disso mesmo se mostra consciente: «Escura me parece a luz do dia, / A noite clara, o campo negro e feio» (vv. 39-40 da ode Enquanto pelos campos estendidos). Também não pode deixar de observar que há momentos em que o autor é particularmente feliz na utilização da linguagem pastoril. É o caso da égloga Manso rebanho meu, que bem guardado, em que o sujeito toma o gado como seu interlocutor, comparando a situação dos animais sem pastor com a do pastor que perdeu a companheira.
Manuel Inácio de Sousa também se revela bom poeta no registo satírico, embora tenham chegado até nós poucos textos desse tipo. Um deles é a ode Quem, Lídia, de teu rosto afugentou , em que a (ex-)amada surge representada de modo fortemente disfémico, numa versão satírica do carpe diem com sabor a vingança:
«Descarnadas as faces e amarelas, Sórdida a testa, crespa e [descomposta,
Os olhos encovados, Denegridos os beiços,
O Leão mais feroz, que nas montanhas
Atemoriza as feras destemidas,
Medroso fugira
De teu aspecto enorme» (v. 5-12).
De resto a capacidade satírica de Manuel Inácio é atestada pelos sonetos Que fantasmas, que espectros horrorosos e Sobre as asas o Tempo equilibrado. Em ambos o faialense, defendendo o seu amigo Domingos dos Reis Quita, ataca com certa violência outro poeta contemporâneo, Caetano Francisco Xavier Zuniga, a quem se refere no primeiro dos sonetos como «aquele pobre home / A quem, por mau Poeta, o Deus luzente/ Ao fado condenou de lobisome». Chega assim ao fim este breve percurso em tomo de um autor cuja obra (ou parte dela) teve de esperar quase dois séculos para ser reunida e editada. Espero, por um lado, ter conseguido mostrar minimamente que se trata de um poeta com interesse, não apenas para a história da literatura feita nos Açores, mas para o conjunto do neo-classicismo português. E espero sobretudo que algum dia venham a ser resgatadas do esquecimento as obras de tantos contemporâneos (e até conterrâneos) de Manuel Inácio de Sousa.
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Silveira, P. (1977), Antologia de Poesia Açoriana (Do século XVIII a 1975) , Lisboa, Livraria Sã da Costa Editora.
Topa, F. (1995), «Manuel Inácio de Sousa – Um poeta faialense do século XVIII». Boletim Cultural e Informativo da Casa dos Açores do Norte , 34: 19-20.
Idem (1998), Edição Crítica da Obra do Poeta Setecentista Manuel Inácio de Sousa ‘Faialense?, Porto, Edição do Autor.
Idem (2001), Poesia Dispersa e Inédita do Setecentista Manuel Inácio de Sousa , Porto, Edição do Autor, [reformula Topa , 1998].
Idem (2000), «Novas revelações sobre o poeta setecentista Manuel Inácio de Sousa ‘Faialense'». Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas , (II, XVII): 431-439.
Macedo , A. L. S. (1881), «Doutor Manoel Ignacio de Sousa». O Gremio Litterario. Publicação quinzenal do Gremio Litterario Fávalense. 2.° ano, vol. II, n.° 28, Horta, 15 de Agosto: 27-28.
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