O autor, natural da ilha do Pico, imprime na sua escrita marcas dessa circunstância insular, por onde perpassam lugares, afectos, figuras, rostos, memórias e, sobretudo, uma carga semântica que questiona fortemente o mundo, os dramas humanos e que sugere campos de sentido existencial tão marcantes como o amor, a morte, o sofrimento, a solidariedade...
O território do discurso é claro e formalmente rigoroso. O autor «tem o domínio da língua portuguesa que resulta do conhecimento dos mestres da prosa, desde os clássicos do seiscentismo até aos mais representativos escritores do séc. XIX e XX», escreve António Valdemar no Prefácio do livro.
O pólo semântico que unifica estes doze textos narrativos é o mês de Dezembro e o Natal. Numa Nota Prévia, o autor justifica a intenção, não totalmente racionalizada, de percorrer as margens de um tempo cíclico, renovável, um tempo extraordinário que liga o homem à terra, à palavra, ao mundo mágico da infância, à deambulação das memórias.
A melhor forma de habitar o mundo é pela linguagem. Fernando Meio tem a preocupação do «como» dizer uma espécie de verdade interior que o redefine, enquanto sujeito, como um ser atento ao infortúnio humano e à realidade que tão profundamente conhece: a ilha.
Mesmo nos diálogos mais simples destas narrativas há sempre um abrir de uma janela da existência que vai além da evidência dos lugares-comuns e se confronta com a dimensão profunda do mistério. É assim no primeiro texto, A prenda de natal , quando Alzira, «agarrada a uma fé muito grande, vivida na capela do Hospital, a desfiar orações, promessas e lágrimas», vê acontecer o milagre da cura da filha, mesmo quando os médicos já não tinham esperança. Da mesma forma, em A promessa , Manuel da Rosa, emigrado nos vastos campos da Califórnia, roído pelas recordações da ilha e pela saudade, «tomba de joelhos na terra húmida do orvalho da manhã, exclamando emocionado: - Oh, Senhor Espírito Santo! Se me deres saúde e sorte que eu possa voltar à minha ilha (...) eu prometo servir-Vos com uma função para toda a freguesia...».
Ou quando Mário Jorge retoma à ilha, na véspera de Natal e é acolhido no seio da família, apesar do silêncio e do abandono a que votara a mulher e os filhos, desde que emigrara para África, onde passara fome e andara ao «deus dará».
Para além desta preocupação em compreender o que há de essencial na vida e nos dramas humanos, há a dimensão cromática da linguagem que surge como uma espécie de poesia dentro da narrativa: «era uma luz mítica, uma luz quase irreal que destacava o relevo dos sulcos traçados no azul da baía... uma luz que eu não fui capaz de perceber se descia do sol, já inclinado para os montes atrás da cidade, ou se irradiava dos olhos da Alzira».
Encontramos, de novo, essa modulação de luz e sombra em O último repique, quando, «à luz mortiça da pequena chama que a corrente de ar agitava», o padre António vislumbra o corpo inerte do velho sacristão. Ou em O telegrama, em que «a luz morna do candeeiro, que se derramava desde a grande mesa até às sombras dos recantos da cozinha, adensava ainda mais o ambiente dramático» e a tragicidade do momento, que se expressa no grito de revolta de um pai que recebe a notícia da morte do filho em África, na guerra colonial e denuncia a hipocrisia e a imoralidade de quem sustenta quaisquer guerras.
A Prenda de Natal ... e outras Histórias são efabulações sobre a vida, sobre a morte, sobre a solidão, sobre a celebração «dos mistérios, lajidos e nesgas de chão de lavrar». É uma demanda pelo sentido, encarcerado numa dialéctica cósmica, de Natais onde a morte e a vida surgem como alteridade de um mesmo ser, de uma mesma realidade.
Chegando ao fim do livro, fixo-me «no entardecer melancólico de um domingo de Dezembro, com a montanha ao fundo em tons de lilás, a contrastar com a alva carapuça dos frios de inverno» e debruço-me, como Marília, na janela do meu quarto a imaginar o vazio e a solidão da existência feminina, privada de viver o amor, o corpo escravo de uma virgindade só rompida na subversão do devaneio silencioso, que a fixava à janela.
É curiosa esta cumplicidade do autor com a condição da mulher, na ilha, uma espécie de sombra debruçada à janela a ver a sua própria existência esfumar-se no sem-sentido dos dias. Maria do Céu Brito |