16 de Setembro de 1993. «Ao raiar da madrugada» (para utilizar uma felicíssima expressão de Fernando Dacosta) morre Natália Correia: a mulher concreta, perecível, existente empírica e historicamente. Não «Natália», a autora celebrada, o mitoque, ao longo de várias décadas, a recém-falecida fora engendrando e reciprocamente a engendrara, sob o efeito conjugado de factores excepcionais: a) o engenho e a beleza que lhe eram conaturais; b) as múltiplas e renovadas circunstâncias pessoais de índole romanesca (ausência do pai emigrado e infiel, corajosa decisão da mãe em abandonar os Açores com duas filhas pequenas, frequência em Lisboa de figuras gradas da cultura portuguesa, etc., etc.); c) o curso inexorável de uma das épocas mais férteis e contraditórias da história, da cultura e da arte ocidentais. Essa «Natália» está viva e recomenda-se.
Ora, como bem sabemos, os mitos são constitutivamente narrativos, sejam eles tradicionais ou modernos, produtos da comunidade ou livre criação dos indivíduos. Todos almejam dotar o mundo de sentido, modelar comportamentos, fortalecer elos; ninguém lhes fica indiferente, ainda mais quando o desejo de perdurar é protagonizado por uma mulher com elevadas doses de arrojo e desassombro. Perante a autora de O sol nas noites e o luar nos dias, há estudiosos, ou tão-só «amantes», da literatura que se sentem tentados a deter-se com saboreada demora não nos textos propriamente ditos (vozes internas, estruturas, expedientes), mas na sua responsável empírica, na pessoa que lhes preexistiu ou neles soube incorporar-se por interpostas vozes. Uns poucos vão mesmo ao ponto, que importa registar, de lhe renderem um preito que roça o culto. Recordemos, a propósito, que a escritora gostava de utilizar, num sentido porventura generoso demais, a expressão «fiéis do amor» – que fizera fortuna em exigentes círculos literários medievais (Dante, Cavalcanti) e chegara até nós por obra do alto romantismo (Novalis) e respectiva progénie (Natália inclusa) – para designar não tanto um modo e uma via elitistas de realização cognoscitivo-espiritual, mas sobretudo o conjunto dos amigos que, entre o apreço e a devoção, iam lendo a sua obra e frequentando os seus assaz badalados «santuários» (Botequim e casa / salão da rua Rodrigues Sampaio).
O 10.° aniversário da morte da escritora marcou o começo do aparecimento de um conjunto de livros sobre os quais – pelo significado que encerram e «diálogo» que entre si estabelecem – valerá a pena determo-nos. Ei-los: 1) Artur Vaz, Natália Correia, escritora do autor e da liberdade, Ponta Delgada, Açores, Junta de Freguesia de Fajã de Baixo, 2003; 2) Ângela Almeida e Francisco Rego Costa (coordenação), In memoriam Natália Correia, Ponta Delgada, Forum Culturas, 2005; 3) Ana Paula Costa, Natália Correia. Fotobiografìa, Lisboa, D. Quixote, 2005; 4) Maria Amélia Campos, A senhora da rosa. Biografia Natália Correia, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2006. Conforme transcorre dos títulos, estamos perante publicações que procuram manter viva a memória de Natália, sendo por isso de saudar o invulgar aparecimento de várias (logo quatro...) em tão curto período.
Independentemente das considerações que cada uma possa suscitar – e nem todas têm a mesma qualidade (neste nível, gostaria de salientar o «núcleo duro» da terceira, pela eloquente pesquisa efectuada) –, algo há nelas que, do ponto de vista dos leitores de Natália, se impõe com clareza meridiana: o facto de, excepção feita à componente iconográfica, pouco acrescentarem ao saber que, na área da literatura portuguesa contemporânea, foi sendo produzido durante décadas acerca da escritora e da sua obra. As principais razões para uma tal convergência de resultados parecem ter sido as seguintes: o desejo de captar públicos novos e alargados; o conhecimento, não isento de tácitas cumplicidades, do que esse público gosta de consumir (experiências, circunstâncias, razões que definem vidas, particularmente quando essas vidas se combinam com nomes e obras sonantes...).
Em termos teórico-críticos, estamos a falar de quê? Obviamente – basta reparar nos títulos dos dois últimos livros... – do «biografismo» e do seu carácter genericamente bifacetado: a) por um lado, as informações tidas por sólidas e fiáveis, em princípio pouco dadas a grandes disputas (factos, cronologia, documentação diversa...); b) por outro, os meandros do temperamento autoral (ou então: carácter, psique, alma...) e suas habituais derivas sub-textuais e categoriais (inconsciente pessoal e colectivo, imagística, simbólica...). Nos livros em apreço, tal «biografismo» está, por conseguinte, longe de ser linear ou monolítico, manifestando-se, sem grandes surpresas, sob diferentes graus e formas.
Em primeiro lugar, na abundância de testemunhos, memórias soltas, textos apostrófico-evocativos, etc., frutos da prestimosa colaboração de uma miríade de personalidades públicas, um bom número das quais sem qualquer vínculo ao campo de estudos literários. Assim se compreende, pelo menos em parte, o tom e a ligeireza de muitos desses documentos, o específico pathos que os percorre e a sua insistência numa Natália carismática, insubmissa, incatalogável e lendária (salvaguardem-se os poemas de homenagem ou os cativantes excertos de ficção narrativa, que são outra casta de contributos, independentemente da sua maior ou menor valia estética).
Em segundo lugar, agora num registo mais próximo da biografia em sentido estrito, na presença omnívora da «vida» de Natália Correia, do nascimento em S. Miguel à morte em Lisboa, passando demorada e repetidamente pelos episódios que mais a marcaram e constam hoje da nossa memória artístico-literária e cultural. Daí à necessidade do recurso às «fases», entendidas cronológica (Ana Paula Costa) ou conteudisticamente (Maria Amélia Campos); ou a recorrente mistura da obra com a existência; ou ainda o carácter fictício-romanesco, não muito longe da chamada «biografia romanceada», que algumas páginas chegam a atingir...
Em terceiro lugar, fazendo pendant com a carga emocional atrás referida, na relação de simpatia que o leitor (em versão «fiel de amor» lenificada) estabelece com a autora, assim respondendo ao apelo, ao desejo de exemplaridade, que sempre caracterizou a actividade de Natália (não pertencesse ela ao ramo demiúrgico-profético da magna família romântica...). Quero com isto dizer que a maioria dos textos das pessoas oriundas das Letras – mormente nos casos de Ângela Almeida, Ana Paula Costa e Maria Amélia Campos, nomes marcantes dos estudos natalianos – se situa no âmbito de um projecto de leitura que alguns denominam, e bem, «crítica da identificação». Caracteriza-o o desejo de uma sintonia perfeita, ou quase perfeita, entre crítico e criticado. Nesta perspectiva, os textos nada mais são do que pretextos para uma relação modelar ente duas subjectividade («A verdadeira Natália», assim intitula uma das estudiosas o seu trabalho preliminar...). Torna-se então notória a imersão cúmplice, sempre reverente embora, no mundo íntimo da «biografada», nos impulsos mais profundos que explicam a mulher e a escritora, unidas ambas por laços indissolúveis. Um dos aspectos que, neste particular, mais nos chamam a atenção não é tanto o da alternância de amores e desamores, nem o da acumulação dos episódios variados que constam do anedotário nataliano, mas a procura sistemática (e não apenas por parte das principais ensaístas) de detectar/justificar as múltiplas contradições que foram norteando a sua acção: a elitista que gostava de conviver com os excluídos, a libertária que se distinguia pela sua aparência autoritária, a mulher emancipada que chega a confessar repugnância pela sexualidade, etc., etc..
Finalmente manifesta-se, como se vai deduzindo, na clara opção pelos «conteúdos», em detrimento das «formas». Entre eles sobressai, facto que há muito se tornou comum em trabalhos sobre a escritora, a preferência, em clave ora «pré-textual», ora «sub-textual», pelos grandes «temas» natalianos. Aqueles a que o conjunto dos livros dão especial relevo são três: 1) o da sua cosmovisão ou mundividência, profundamente religiosa e de índole pagã, assente nos grandes mitos primordiais, arcaicos e clássicos, e na respectiva índole mobilizadora e sacra (com o decorrer dos tempos, tais suportes matriciais acabarão por acolher o assaz vasto e heterogéneo domínio das correntes de pensamento enfeudadas à iniciação e ao mistério – gnose e sabedoria, hermetismo e alquimia, joaquimismo e paracletismo...); 2) o da sua infância e de tudo quanto dela releva (paraíso primordial, nostalgia e culto da terra-mãe, memória da ilha perdida – traços inconfundíveis da sua obra e personalidade literárias, com frequência, aliás, assinalados); 3) o do seu activo comprometimento com a Cidade, traduzido em múltiplas e reiteradas formas de intervenção sócio-política e cívico-cultural (de que eu destacaria, pela sua efectiva originalidade, a recuperação da ancestral sabedoria feminina em ordem ao estabelecimento de uma Frátria pacífica e universal). Tais temas surgem tratados eclecticamente, segundo premissas nunca de facto assumidas ou argumentadas. Digamos, por inferência, que nas melhores páginas tais premissas variam entre a hermenêutica existencial dos universos imaginários e a crítica de teor antropológico-cultural amplo (onde estamos a incluir, para simplificar, o mítico e o arquetípico). Curiosamente, a semiótica, a pragmática, a sociologia e outros dispositivos de «leitura literária» destinados a descrever e a explicar como funcionam os textos em sociedade estão ausentes dessas publicações, o que penso dever dar que pensar aos estudiosos de Natália – aos actuais e aos futuros.
Lições a extrair? Sem pretender negar, como já referi, o contributo deste «surto ensaístico» para o conhecimento (sobretudo para a divulgação...) da escritora, penso, em sintonia com Luiz Fagundes Duarte, que temos de nos ocupar menos da Natália «pública» ou «privada» e mais da Natália-poeta, a «síntese de todas as outras». Ora este desiderato só verdadeiramente se cumprirá, sem perigo de polémicos retornos ao «velho» biografismo, quando nos dispusermos a encará-la a partir de eixos de questionação consistentes e explicitados (revejam-se, a título de exemplo, os excelentes artigos de José Augusto Mourão, nomeadamente o publicado em 1988 na revista Humanística e Teologia),capazes de integrar em novos moldes os textos literários, e tudo quanto eles supõem (ficcionalidade, pluricodificação, determinação genológica, labor verbal, etc., etc.). Embora de um modo alusivo, próprio das colaborações avulsas, os textos de David Mourão-Ferreira, Urbano Bettencourt e Eduíno de Jesus (ver: In memoriam)encerram boas sugestões acerca dos planos que urge valorizar na obra nataliana (o retórico-estilístico, o enunciativo-pragmático, o histórico-periodológico...).
De contrário, há sempre o risco, que nestas publicações transparece, de incorrermos em pechas conhecidas, às quais, infelizmente, a própria comunidade universitária nem sempre terá conseguido resistir quanto devia. Recordemos as mais incisivas: heterogeneidade de modelos e decorrente eclectismo, heresia da paráfrase e impressionismo reverente, fragmentarismo e recurso insistente à autoridade de scholars consagrados, utilização de divisões desprovidas de sustentação teórica (as três idades de Natália: «a da Mãe, a da Filha e a do Espírito»), erudição desnecessária e compensatória das notas de rodapé, descuidos conceptuais e gramaticais resultantes de páginas escritas sob pressão (neste aspecto, há várias excepções, felizmente), controverso emprego ou aceitação acrítica de categorias só por virem de quem vêm. Sirva de prova a esta última constatação o uso e abuso por parte de Natália dos modelos tipológicos em questões de carácter periodológico (especialmente na caracterização dos conceitos de barroco, romantismo e surrealismo), facto que nenhum dos ensaístas se mostra inclinado a comentar, na óptica dos, quiçá mais rentáveis, modelos históricos. Em contrapartida, o modo singular como, entre nós, a escritora gere as relações entre tradição e modernidade (conciliando a autonomia do homem com a heteronomia dos deuses) passa despercebido, ou quase, o que é pena...
Não gostaria de terminar estes meus considerandos sem três exemplos mais: 1) O primeiro diz respeito à frequente não destrinça entre o real e o imaginário, pedra de toque dos modernos estudos literários, em especial na área da narratologia. O caso mais sintético e emblemático talvez seja o que provém da ensaísta de A senhora da rosa (p. 178), ao atribuir à própria Natália Correia a recitação de uma passagem da «Oração a Osíris», acontecimento esse que, na verdade, só se verifica no mundo possível de A madona e é protagonizado por Branca, a narradora-heroína. 2) O segundo está relacionado com o domínio das tradições religiosas cristãs em geral e açorianas em particular; concretamente, verifica-se quando a mesma ensaísta (pp. 106-107) «encosta» as festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres às do Espírito Santo, interseccionando, sem qualquer clarificação, o simbolismo, o significado e as práticas do Ecce Homo e do Paráclito, que são muito distintos. O universo poético e cultural de Natália tem tudo a ver com a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, com a esperada universalização do Espírito; nada ou quase nada com a Segunda, sobretudo na sua versão de flagelada ou ultrajada. 3) O derradeiro exemplo consta da «Introdução» ao In memoriam (p. 20), onde, com direito a um expressivo sub-título, se fala do «decadentismo nataliano» («decadentismo», entenda-se: algo inerente a «qualquer criador que nos mereça tal epíteto»; «a materialização literária do desencanto residente nos inconscientes, pessoal e colectivo»).
O importante aqui não é propriamente a questão (legítima, se oportuna...) da procura de novos significados para «velhas» palavras; nem a de entender qual a pertinência, o efectivo poder distintivo, em relação a Natália, de um designativo que contempla todos os grandes criadores. O mais importante, segundo creio, é o facto de o «decadentismo» corresponder a uma categoria periodológica de extrema visibilidade e serventia, com um sentido estável, ou relativamente estável, na história da moderna literatura (poesia...) portuguesa há mais de três décadas, altura em que começaram a aparecer os pioneiros trabalhos de J. C. Seabra Pereira. Trata-se de um dos vários estilos de época que coabitam nos finais de Oitocentos (grosso modo: de 1885 a 1900; de maneira nenhuma nos anos 70, como também é dito, período do florescimento daquilo que ficou conhecido por realismo-naturalismo). Ao contrário do simbolismo, que por vezes com ele se intersecciona (e supõe renovo do idealismo, mundividência serena e consistente, inter-relação poesia/metafísica, evangelho das correspondências, «explicação órfica da Terra», etc.), o decadentismo traduz, antes, um estado de sensibilidade diletante, feito de pessimismo crónico, radicalismo artístico-formal, religiosidade ritualisto-litúrgica e um bom número de outros traços, de que relevaria, em benefício do contexto, a bizarria sacrossensual e o acendrado fascínio por sociedades crepusculares e temporalmente distantes (Sodoma, Gomorra, Bizâncio, Lesbos...).
A grande poesia de Natália é, no seu âmago, irredutível ao desencanto exarcebado, a pulsões meramente esteticistas e auto-remuneratórias; ou só o é de uma forma instrumental – não raro intensa e pregnante, concordo –, com o objectivo táctico de conduzir o Homem a patamares mais elevados de conhecimento e realização. Até mesmo perante a barbárie científico-tecnológica ou o inominável de Auschwitz, ela tem no fundo uma visão de futuro, de espiritualidade reconciliante, pouco compaginável com o decadentismo (mais próxima estaria, então, do simbolismo, estilo declaradamente votado à harmonia universal dos seres e das coisas). Algo de semelhante se poderia dizer sobre o correlato, embora distinto, conceito de «decadência», tema maior das culturas portuguesa e espanhola, a que ela, como praticamente todos os nossos grandes escritores, não foi insensível, procurando sempre incorporá-lo na dinâmica renovadora e projectiva do Espírito (em consonância profunda, aliás, com o legado do alto romantismo de que foi uma das mais fecundas intérpretes no nosso novecentos). Eu sei que estamos perante categorias atreitas a grande polivalência e enorme ambiguidade, com vocação para transgredir fronteiras disciplinares e criar eixos de inesperada configuração semântica. O seu consabido acolhimento em áreas e sub-áreas do campo de estudos literários só constitui, porém, um argumento mais para a necessidade de, com a devida acribia, as caracterizarmos e contrastarmos (leia-se: as justificarmos...) nos momentos e locais certos.
Uma das melhores maneiras de homenagear Natália, inspirada na «figura do autor», passa pela escolha de padrões de categorização de teor eminentemente semiótico-pragmático, em meu entender os mais talhados para captar o modo como ela, na sua obra literária, se foi encenando enquanto autora e, ao mesmo tempo, o modo como essa encenação a ia, reciprocamente, modelando enquanto mulher. Passa igualmente - e confesso que neste momento estou a pensar noutros trabalhos; não apenas nestes... - por algum comedimento e distância em relação à hipertrofia de imagens impressivas (precisamente as mais próximas da «vida»...), quais sejam as do tipo amazónico e tribunício, que, não sendo infundadas, se tomam propícias à criação e fácil circulação de uma espécie de sucedâneo culto, em versão lusitana, das muito apregoadas imagens de Épinal. Nem a vida nem a obra de Natália o merecem. Esta última está, de resto, repleta de outras imagens-fortes (a mulher-mãe, a mulher-sabedora...), elas também dotadas de grande valor operatório – e não isentas do mesmo perigo, note-se. O que, sejamos justo, foi com alguma frequência tido em conta nestes livros...
Ponta Delgada, Novembro-Dezembro
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