Procurar imagens
     
Procurar textos
 

 

 

 

 

 

 

 

BOLETIM DO NCH
Nº 16, 2007

(2005) Maria Margarida de Mendonça Vaz do Rego Machado , Uma fortuna do Antigo Regime : A casa comercial de Nicolau Maria Raposo de Amaral . Cascais , Patrimonia H istorica .

O livro de Maria Margarida de Mendonça Vaz do Rego Machado, que, com oportunidade, a Patrimonia Historica editou, resulta, no essencial, da sua dissertação de Doutoramento, defendida na Universidade dos Açores. É bem conhecido o trabalho que a instituição universitária açoriana tem vindo a desenvolver para o desenvolvimento dos diversos ramos da investigação científica. A ciência histórica é, sem dúvida, exemplo bem elucidativo deste labor, quer inserido no âmbito de provas académicas, quer na publicação da revista Arquipélago-História, na organização de eventos científicos e culturais, no desenvolvimento de projectos de investigação apoiados por diversas entidades nacionais e regionais e na participação dos seus docentes em colóquios e congressos em Portugal e no estrangeiro. Ora, Margarida Machado integra-se precisamente nesta nova fase da historiografia açoriana, com a publicação de diversos trabalhos que têm, sem dúvida, contribuído para o conhecimento aprofundado, e documentalmente muito bem sustentado, de aspectos importantes da História dos Açores.

Nesta sua obra, a autora bem escolheu trabalhar um núcleo documental riquíssimo do arquivo da casa Raposo de Amaral, em depósito nos Serviços de Documentação da Universidade dos Açores. Delimitou a sua investigação à actividade de negociante do fundador da casa, Nicolau Maria Raposo de Amaral (1737-1816), se bem que não se trate propriamente de um estudo biográfico, mas inserido no âmbito mais vasto da história económica e social.

Há, desde logo, que salientar a importância do período histórico que abordou: ainda na vigência da Monarquia absoluta em Portugal, mas a reflectirem-se já as ondas revolucionárias que abalavam o mundo ocidental. Ora, os Açores, pela sua posição geoestratégica e geoeconómica não podiam ficar imunes a tais acontecimentos, e, no caso em apreço, às suas consequências ao nível económico e social. Se os corsários americanos causaram perturbações nas rotas que interessavam aos negociantes açorianos, prejudicando o normal funcionamento das relações comerciais com o exterior, o certo, também, é que as invasões francesas, a saída da corte para o Brasil e os sequentes tratados com a Inglaterra tiveram significativos reflexos na economia açoriana. Por outro lado, a actuação das autoridades locais, escudando-se na defesa do que consideravam ser os interesses da Coroa ou da população, mas também, amiúde, por incompetência, submissão às elites tradicionais ou no resguardo de interesses próprios dificultavam, frequentemente, o fluir corrente dos negócios.

Ora, Nicolau Maria Raposo (ainda que o nome completo incluísse «de Amaral», foi por esse nome que ficou conhecido) integra-se perfeitamente neste complexo ambiente, singrando no mundo dos negócios com persistência, organização, espírito empreendedor e abertura à inovação.

É, portanto, todo este «mundo» de negócios que Margarida Machado nos patenteia, vasculhando uma quantidade imensa de documentação: correspondência, memorandos, contratos, livros de contabilidade, apólices de seguro, passaportes, cartas de ordens, livros de registo das alfândegas, manifestos de carga, títulos de propriedade e todo o tipo de documentos que considerou esclarecedores para sustentar a abordagem às diversas temáticas. Esta circunstância é ainda mais de destacar visto que, como era corrente na época, Nicolau Raposo enveredou, também, pela diversificação dos negócios. Com excepção do primeiro e do último, os capítulos em que a obra se divide são bem elucidativos da intrincada rede de negócios que este micaelense conseguiu montar: «o comércio de longo curso. Dinâmicas em torno do azeite de baleia», «o armador», «o contratador régio», «o comércio de cereais e leguminosas », «uma incursão pela manufactura», «os jogos das moedas e do crédito». Pela simples enunciação dos títulos compreende-se bem a complexidade dos negócios de Nicolau Maria Raposo e a dificuldade de estruturação de um estudo que conseguisse encontrar, para além da simples análise quantitativa de produções, preços, trocas e destinos, uma linha condutora ou uma estratégia para o sucesso económico e financeiro, e para a ascensão social tão pretendida.

Não há dúvidas de que este estudo nos proporciona uma visão profundamente elucidativa do pulsar de uma casa de negócios da segunda metade de Setecentos e inícios de Oitocentos. Mas ultrapassa o simples caso particular, ao apresentar um panorama da vida económica de S. Miguel e da sua inserção nas rotas do Atlântico, destacando, por exemplo, o surgimento de novas actividades na rede dos negócios (a pesca, por exemplo, que, de pura auto-subsistência, entra também

para o âmbito mercantil, com a salga já em escala significativa) e equacionando as componentes das crises conjunturais. Mas é certo também que em Uma fortuna do Antigo Regime, se descobrem, com a clareza possível, traços da mentalidade de um capitalista do Antigo Regime.

Com efeito, ao longo de toda a obra, o leitor irá desvendando elementos bem característicos de uma mentalidade que aposta na segurança dos negócios, sem, porém, enjeitar novos desafios. Que encontra no capital, não a possibilidade de «viver de rendimentos», mas o instrumento de desenvolvimento de novas actividades e de obtenção de mais lucros. Que, enfim, anseia por se manter devidamente informada sobre todos os aspectos que pudessem, de algum modo, interferir com o mundo dos negócios.

Mas é no último capítulo da obra que Margarida Vaz do Rego Machado procura conhecer as estratégias de promoção social que Nicolau Raposo empreendeu na sociedade micaelense e desvendar possíveis «identidades ou contradições entre os valores religiosos, culturais e sociais estruturantes da sua personalidade e o pragmatismo e senso «progressista» exigidos com vista ao sucesso económico e financeiro» (p. 287). A uma primeira conclusão chega a autora: não se trata de um negociante que se enquadre no modelo da «traição da burguesia», mas de um empreendedor imbuído de verdadeiro espírito capitalista e crítico, por vezes corrosivo, de nobres e morgados. Mas, «o anseio da nobilitação nunca o abandonou e, além disso, muitas foram as tentativas que empreendeu com vista à vinculação das suas terras» (p. 288). Assim, Margarida Machado não se deixa enlear na teia que Nicolau Raposo, em diversas situações, constrói para se afirmar como «fiel vassalo» e desinteressado servidor da Pátria. Encontra-lhe as contradições nos contextos em que mais pesavam os interesses económicos ou financeiros.

A autora procura compreender Nicolau Maria Raposo «numa perspectiva mais humanizante, mais ligada a um quotidiano que ultrapassa e, por vezes, pode surgir como contraditório com as exigências do mundo dos negócios » (p. 287). Com efeito, esta perspectiva «humanizante» é bem destacada na análise às relações familiares, aos valores que as enformavam e ao papel do pater famílias. De facto, numa família tradicional do Antigo Regime, entre as grandes preocupações do seu chefe destacavam-se as relativas à coesão familiar e ao futuro dos filhos. A partir da leitura da correspondência a que teve acesso, Margarida Machado analisa a «política de casamentos» que Nicolau Maria Raposo delineou para as filhas, a educação dos filhos, a definição das carreiras que deviam seguir e, provavelmente com especial ênfase, a preparação cuidadosa do seu sucessor nos negócios, facultando-nos ainda destacados traços da vida familiar quotidiana.

Nicolau Maria Raposo enquadra-se perfeitamente nesse período de transição, debatendo-se entre a fidelidade aos valores da sociedade do Antigo Regime, e o pragmatismo que o mundo dos negócios impunha:

«Podemos dizer que Nicolau Maria Raposo era um homem onde a modernidade e a tradição se entrelaçavam: se, por um lado, queria fazer parte da aristocracia da ilha, equiparando-se a nobre, por outro, achava-se mais inteligente, instruído e informado do que a fidalguia da ilha; se mostrava interesse pelas novas técnicas e desenvolvimento da agricultura e economia em geral, defendia, também, valores tradicionais, atacando os ideais da Revolução Francesa e de qualquer liberdade que se opusesse às ordens do Pater familias. Foi um homem de transição, integrado numa época de mutações e contradições, que a tornava dinâmica e propulsora do futuro liberalismo e da economia industrial» (p. 328).

Com Uma fortuna do Antigo Regime… fica, pois, a historiografia açoriana enriquecida com mais uma obra de referência, marcada pela riqueza da documentação explorada, pelo rigor da investigação e pela inovação temática. Carlos Cordeiro

Carlos Cordeiro – Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais. Universidade dos Açores. Campus de Ponta Delgada. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada.