« Bom é saber
o caminho e, se puder, segui-lo,
mas sem alarde,
tranquilo, tranquilo:
sem medo de chegar tarde
ao destino»
(...) Princípio (p. 103)
Eduíno de Jesus tem um imenso coração de poeta. Homem da cultura e da finura, minucioso e reflexivo, bem formado e informado, intelectual gentil, generoso e fraterno, autor do pensamento vigilante e da ironia inteligente, ele é poeta perfeccionista, selectivo e esquivo e ensaísta igualmente exigente e de primeiríssima água – dos que se escusam a modas e traficâncias e escrevem sem pressas e sem ânsias editoriais. Deste micaelense, cidadão do mundo, acaba de ser publicado o livro Os Silos do Silêncio – reedição selecta e refundida de três colectâneas poéticas editadas há (já) meio século: Caminho para o Desconhecido (1952), O Rei Lua (1955) e A Cidade Destruída durante o Eclipse (1957), a que foi adicionado um amplo conjunto de Inéditos e Dispersos («Poética Fragmentária»), em que se reúnem poemas escritos entre 1948 e 2004 e que foram sendo sucessivamente trabalhados e corrigidos ao longo dos anos.
Eduíno de Jesus é poeta de difícil catalogação, pois que em nenhuma estética e em nenhuma ideologia se entrincheirou. Segundo Couto Viana, que assina o Prefácio da obra, estamos justamente perante «um poeta não alinhado». Saliente-se, a propósito, o criterioso e minucioso Posfácio de Onésimo Teotónio Almeida, intitulado «Esboço de uma Biobibliografia». Pessoalmente considero que existe um sentido de modernidade na poesia de Eduíno de Jesus. Tal poesia tem o selo da modernidade (há meio século que ele é apelidado de «poeta modernista»...), por isso esta é uma poesia de todos os tempos e de todos os lugares. Este sentido de modernidade está na maneira hábil como ele soube e sabe situar-se entre uma tradição literária e poética e uma renovação dessa mesma modernidade.
É óbvio que alguns dos seus poemas denotam algum (neo)romantismo, mas Eduíno de Jesus está longe de ser um poeta romântico. Esteve por dentro das vanguardas literárias e artísticas, é dado a experimentações linguísticas, mas não é autor de rupturas nem de transgressões. É certo que bebeu fundo da fonte do Simbolismo, havendo quem o considere um dos mais significativos poetas simbolistas da «geração de 50» do século transacto. E, no entanto, ele não é propriamente um simbolista «puro e duro», nem tão pouco enveredou por um «simbolismo insular», à maneira de Roberto de Mesquita.
Apesar de uma ou outra influência, o Surrealismo e o Concretismo passam de raspão na sua poesia, onde nem tão pouco se vislumbram ressonâncias da «Presença» ou do Neo-Realismo (a arte social versus arte pura passam-lhe de largo). Para mim Eduíno de Jesus é tão somente um imenso poeta. Isto é, um incansável trabalhador (artesão) da palavra. Um poeta lírico sui generis, profundamente humano, que observa o real e disseca a sua vida (a sua alma?) – como Vernet agarrado ao mastro do navio para estudar a tempestade... Na ilha (a real e a imaginária) guardado está o mistério. Também a memória, a liberdade e o mito.
A ilha é espaço propício ao sonho e dela o poeta parte para o mundo. E, pesquisador subtil de realidades visíveis e invisíveis, envereda por uma poética da intimidade, da expressão amorosa e da contemplação erótica... Esta intimidade não é mais do que a relação que o sujeito estabelece com a sua escrita: é a sua atitude (vigilante) em relação às palavras, a sua maneira de as acolher e de as convocar, de as surpreender e de se surpreender com elas. Perante o enigma do real, o poeta dirige a sua atenção (nua e pura) não só para dizer o que o seu olhar vê, mas também para ordenar e exprimir (recriar) o caos interior, a vertigem do inumerável e do inexprimível. Daí que ele parta em busca do indizível. Porque, em poesia, o indizível é dizível: Quando as minhas palavras, gastas de repetirem a definição das coisas tal como vêm nos tratados, procuram dizer ainda o indizível; (...) (p. 312).
O poema é nada e é tudo. Começa por ser a fascinação do incriado. Na sua génese, está uma experiência de desolação e de vazio perante a nudez do papel ou do écran do computador. O que ele nunca será é obra do acaso ou de uma súbita inspiração divina. E isto porque qualquer produção poética é sempre fruto de um trabalho árduo, por vezes penoso, numa conquista sílaba a sílaba, numa procura da «Beleza» em cada verso, enfim, numa busca incessante da palavra exacta e essencial. Herdeiro assumido da tradição oral, Eduíno de Jesus escreve afectos, emoções e sentimentos, reabilitando a palavra poética e o sentido mágico do poema. E fala sobre as encruzilhadas da vida e sobre mitologias do quotidiano. E, com mestria, busca o silêncio que há nas palavras. E tudo isto através de versos certeiros e harmoniosos. Porque a sua poesia é isso mesmo: a busca de um silêncio e de uma harmonia em tempo de muitos ruídos e de múltiplas dissonâncias. Por algum motivo (e não obviamente por Eduíno ser de Jesus...) estes poemas são atravessados por um sopro bíblico.
Alguma coisa aprendeu ele da lição simbolista: efectivamente os temas bíblicos estão patentes em muitos poetas do Simbolismo: Roberto de Mesquita, por exemplo. Versos como «nem esta paixão que me buleversa» (p. 58), «Progénito de um Pégaso longínquo» (p. 265), «Que flébil fátuo vagalume desce» (p. 325), entre outros, dão testemunho de alguma influência simbolista. Dentro e fora do espaço simbolista, admiráveis são os poemas «Quadro Antigo», «Vem, como a Noite, Imperceptível», «Saudade Marítima», «Ladainha à Grande Estrela», «Epitáfio Romanceado para um Vencido», «Intróito», «Elegia da Chuva», «Gaia Ciência», «Navio Fantasma», «Guitarra Portuguesa», «Já Não São Precisas As Vossas Ferramentas», «A Longa Espera» e «Ode Elegíaca a Luzília Afogada» – poema de grande beleza plástica e simbólica; de resto há, na poesia de Eduíno de Jesus, aquilo a que me apetece chamar de mito de Ofélia, pois que em vários poemas há esta visão de alguém morto a boiar serenamente em límpidas águas: «(...) (É bonito um morto/ no mar a boiar!)» (p. 274). Por outro lado, Eduíno de Jesus é capaz de escrever versos de grande originalidade, como estes:
(...) Deus boceja, de puro enfado, volta-se para o outro lado e adormece (p. 135).
Tal originalidade está bem patente nos poemas «Conquista», «Um Ramo de Flores para o Salvador da Pátria», «As Figuras de Cera do Museu das Janelas Verdes», «Simples Aponta mento Coreográfico», «Artesania Poética», «Jonglerie da Sede e da Fome», entre outros. Ao escrever poesia, Eduíno de Jesus mantém uma relação com o tecido literário, poético, cultural e civilizacional que a precede. Aplica-se aqui o que escreveu Rui Belo: «De olhos postos no futuro, o poeta moderno escreve com toda a poesia anterior, com toda a poesia e a arte anteriores e contemporâneas por trás». Daí que, ao ler a poesia de Eduíno, se possa escutar vagos ecos de Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Eugénio de Castro, António Nobre, Fernando Pessoa, José Régio, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Miguel Torga, David Mourão-Ferreira, entre tantos outros. Através deles, encontrou Eduíno a sua própria voz, a sua linguagem, a sua «petite musique». Por isso escreve com esmero técnico, apurado sentido estético e grande sensibilidade artística. Por isso os seus versos são de boa ressonância musical, prenhes de poeticidade e de sedutora prosódia. Ou seja, são envolventes e fascinantes e de grande beleza plástica e visual. Os Silos do Silêncio é, por conseguinte, o livro que faltava e que eu pessoalmente tanto ansiava... É, enfim, o livro que vem a calhar para quem gosta de boa poesia. E para quem quiser saber um pouco mais sobre o destino da vida humana no teatro do mundo.
Victor Rui Dores
Horta, 29 de Agosto de 2005 |