Os frequentadores das livrarias portuguesas e brasileiras tiveram, certamente, a sua atenção despertada pelas ilustrações de capa de um livro recentemente publicado, que remetem para um cenário apocalíptico, e pelo título sugestivo que ostenta. Referimo-nos a As Metamorfoses de um polvo. À primeira vista, o título sugere um escrito sobre um dos habitantes da vida marinha, mas o leitor rapidamente descobre que tem à disposição uma análise histórica original sobre a Inquisição Portuguesa e os seus regimentos. Que relação possível se poderá estabelecer entre os inquisidores e os moluscos tentaculares, que não têm ossos e vivem camuflados, rastejando junto ao fundo dos oceanos?
O Padre António Vieira encontrou na beleza mutante e, aparentemente inofensiva, dos polvos uma das alegorias para criticar o comportamento dissimulado e enganoso dos colonos do Maranhão, afirmando que “Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro” (1). Com estratégias como esta, também outras criaturas do mar são enganadas e feitas prisioneiras dos polvos. José Eduardo Franco e Paulo de Assunção, estudiosos das questões jesuíticas, inspirados pelo “Sermão de Santo António aos Peixes”, que António Vieira proferiu no século XVII, e nas habilidades e virtudes dos polvos, encontram formas ilustrativas das suas referências aos modos de proceder da Inquisição Portuguesa.
Dificilmente poderiam encontrar metáfora mais adequada e inspiradora para intitular o seu livro. Tal como os polvos, que se comunicam e demonstram as suas habilidades de caçadores eficientes alterando a coloração, a textura da pele ou utilizando os tentáculos para imitar plantas aquáticas, também os inquisidores actuavam para alcançar os seus objectivos, quase sempre ocultos e insidiosos. Mais ainda, os polvos, quando ameaçados, põem-se em fuga ocultos por uma nuvem de tinta escura que libertam, com o objectivo de provocar paralisia, cegueira e a desorientação dos inimigos. Estratégias semelhantes teriam sido utilizadas pelos servidores dos tribunais do Santo Ofício para enredar os indivíduos acusados de heresia em Portugal. Suas atitudes foram facultadas pelas diferentes normas reguladoras dos tribunais, perceptíveis nos processos e nos documentos hoje disponíveis, revelam formas ardilosas, dissimuladas e predadoras de actuação.
Uma análise criteriosa d’ As Metamorfoses de um Polvo demonstra que os autores fazem parte do rol dos estudiosos que consideram não caber ao historiador o papel de juiz diante do acontecimento histórico em análise. Fundados em pesquisa documental copiosa e em arcaboiço teórico e metodológico consistente, buscaram o conhecimento verdadeiro, registando explicações para fenómenos significativos que, sem a sua intervenção, permaneceriam no esquecimento ou no silêncio dos arquivos. Justifica-se assim, plenamente, a abordagem realizada e a edição do estudo sobre os Regimentos da Inquisição Portuguesa, documentos já conhecidos nos séculos XVII e XVIII, mas com teor instigante que suscitam, ainda no século XXI, interesse e polémica. São páginas orquestradas ao ritmo do esmero e da erudição, com a presença da batuta de historiadores talentosos que, de uma forma didáctica, tratam das origens, instrumentalização e vínculos da Inquisição Portuguesa. Não há lugar para a indiferença, apesar do tempo que nos separa dos acontecimentos, diante dos retratos apresentados que revelam relações entre poderes políticos e eclesiásticos, ideologias, interesses sociais e económicos divergentes, diferenças religiosas, em síntese, a mentalidade e a cultura de um longo período da História Portuguesa. Os estudiosos e investigadores têm ao seu dispor informações significativas nos anexos do livro, que correspondem ao conjunto da legislação referente à Inquisição Portuguesa (2).
Aparentemente, a quantidade de Regimentos indica um aperfeiçoamento dos aparelhos da Inquisição. De facto tal ocorreu, mas descobre-se, a partir da leitura de processos inquisitoriais e documentos como Notícias Recônditas (3), que denunciavam procedimentos injustos da parte de inquisidores, ou em livros como o que estamos a analisar, que os tribunais do Santo Ofício de Portugal, nem sempre promoveram a justiça ou a pureza da fé.
Ao contrário, a subjectividade das normas e outros interesses, que não os religiosos, favoreceram atitudes que podem ser consideradas dolorosas, humilhantes e humanamente degradantes, ainda que não envolvendo violência física. Uma denúncia anónima, uma opinião ou intenção tornada pública poderiam ser suficientes para a instauração de um processo inquisitorial. Segredo quanto ao teor das acusações, formas ardilosas de interrogatórios, cárceres imundos, exposições humilhantes dos réus em praça pública e assistência religiosa deficiente são alguns dos tormentos psicológicos aos quais eram submetidos os presos do Santo Ofício em Portugal (4). Na década de 1530, nascia oficialmente a Inquisição portuguesa (5). Mesmo sem um Regimento próprio, embora com normas redigidas pelo Cardeal D. Henrique, nos primeiros vinte anos da sua existência já contava com tribunais instalados nas cidades de Lisboa, Porto, Évora, Coimbra, Tomar e Lamego.
As primeiras normas foram consideradas genéricas, “com denúncias abertas e mais possibilidades de defesa dos incriminados relativamente quer à Inquisição medieval quer à espanhola” (6). Infere-se, porém, que a brandura da Inquisição portuguesa era apenas aparente, pois em 1540 o papa Paulo III suspendeu a execução de sentenças emanadas pelos tribu nais inquisitoriais portugueses, por um espaço de quatro anos, alegando, entre outras razões, que as decisões dos tribunais dependiam da personalidade dos diferentes inquisidores e variavam de tribunal para tribunal. O fenómeno favorecia irregularidades como subornos, denúncias infundadas, testemunhas falsas e questões económicas e sociais. Certamente, foram os excessos praticados pelos inquisidores portugueses que provocaram a intervenção da Santa Sé, em 1540, o que representou um freio às suas acções e a desarticulação temporária dos tribunais portugueses. Em 1548 funcionavam apenas os tribunais de Lisboa e Évora. Somente a partir de 1552 é que as acções dos tribunais do Santo Ofício foram reguladas por Regimentos (7), a partir desta data se verifica um aperfeiçoamento crescente dos aparelhos repressivos da Inquisição.
Tendo como alvo preferencial a “heresia judaica”, os tribunais procuravam identificar os cristãos-novos suspeitos de práticas ligadas à antiga religião. Contudo, continuava a prevalecer a psicologia do medo, através de prisões preventivas por tempo indeterminado, sigilo da identidade dos denunciantes, confisco de bens e a pena de morte (8). Na análise dos três primeiros Regimentos da Inquisição portuguesa, verifica-se que muitas das normas, dada a sua subjectividade, suscitavam diferentes interpretações. Porém, os maiores conflitos, que geravam atitudes desastrosas para os réus, advinham da carência de servidores dos tribunais, das condições físicas dos cárceres, do abandono espiritual e, acima de tudo, do temperamento dos juízes (9).
Entre as formas de pressão utilizadas pelos inquisidores, a fim de induzirem os acusados ao erro e à confissão, destaca-se o desmembramento das acusações, que as tornava aparentemente mais numerosas e comprometedoras do que realmente eram. Além disso, o preso era incentivado a confessar o seu delito e a denunciar o maior número de pessoas com promessas de compaixão.
A denúncia de uma única testemunha era suficiente para a prisão, quando havia laços de parentesco entre denunciante e denunciado, fundada na premissa de que nenhum indivíduo apresentaria delação falsa de um familiar: “E não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada, salvo se for marido ou mulher ou sua parente dentro do primeiro grau de consanguinidade, contado por direito canónico” (10). Porém, são inúmeros os processos e as prisões provocadas por um só denunciante, sem que se evidencie qualquer grau de parentesco, mesmo diante das disposições em contrário do Regimento de 1640 (11).
Verifica-se, que, na prática, “o bom crédito” do denunciante e a “ordinária condição” do denunciado abria uma fenda na lei, que facultava aos membros do tribunal a aceitação, ou não, da denúncia de uma única testemunha. Apresentados os presos à Inquisição, seguia-se um ritual que envolvia o secretário da Mesa, o alcaide dos cárceres e os guardas “e todos estes começam a persuadir aos presos que confessem, para se usar misericórdia com eles, e sairão para suas casas; e como a vida e a liberdade é tão ama da, os que mais amam aqueles conselhos, e vão confessar o que não fizeram; e mais depois que se vêem em cárcere, tal como ao diante se dirá” (12). Acrescente-se à angústia das incerte zas, o ambiente degradante das prisões, o tempo de espera das decisões para mensurar os danos físicos, psicológicos e morais dos prisioneiros. Os servidores dos tribunais do Santo Ofício acrescentavam novos tormentos, pois “ouvindo todos os dias aos guardas e alcaides pregando-lhes que confessem o porque estão presos, assim sucedeu algumas vezes confessarem a culpa de que estão delatados e não porque foram presos; porque, como vãos a olhos fechados, e nem uma nem outra culpa cometeram, não podem adivinhar; e assim cada um diz o que lhe ocorre” (13).
Durante a segunda chamada à Mesa, o preso era intimado a declarar a sua geração, por linha directa e transversal, até ao segundo grau por consanguinidade e primeiro por afinidade. Perscrutava-se sobre a pureza de sangue e os resultados, com poucas variações, eram nocivos aos inocentes, uma vez que “… os presos aflitos e oprimidos, às cegas, e cheios de temor, lhes parece que, perguntando-lhes por sua geração e descrevendo-lha, é para ver se quando confessam, deixam de dar em algum daqueles que ficam escritos, e lhes parece que se em todos dão, não têm remédio para remirem a vida, e daqui vem darem muitos nos pais, filhos, irmãos, primos, e em todos falsamente, e nem assim acertam, e saem a morrer diminutos” (14).
As acções inquisitoriais, preferencialmente voltadas para as suspeitas de judaísmo, alcançavam resultados inesperados. Os estilos praticados pelos tribunais inquisitoriais de Portugal não conseguiram extinguir as crenças e práticas judaicas. Ao contrário, tornavam cristãos em judeus, uma vez que, com muita frequência, os réus, sob pressão psicológica e torturas, admitiam as “suas culpas” em confissões falsas, como estratégia para salvar a vida. Para além disso, as fugas provocavam ainda prejuízos económicos ao Reino. Sem dúvida, a intolerância dos inquisidores e as formas engenhosas e subtis de conduzir os rituais dos tribunais promoviam a violência, o sofrimento e o ódio que separam parentes, povos, amigos e cidadãos. Não nos cabendo o papel de juízes, resta-nos o esforço de compreender fenómenos complexos como o da Inquisição portuguesa que, na sua actuação, ultrapassou quase sempre os limites institucionais responsáveis pela preservação da pu reza da Fé católica.
Os meios e os estilos deixam dúvidas quanto à eficácia evangelizadora de tais acções. A maior motivação para a leitura d’ As Metamorfose de um Polvo encontra-se, certamente, nas indagações que o escrito continua a suscitar. Encerrada a leitura, permanecem ecos que nos levam a indagar sobre o século XXI. Haverá ainda instituições que, em nome da piedade, da pureza da fé e da preservação das tradições, pretendem controlar a manifestação de novas ideias e formas de convivência? Será que ainda subsiste alguma sombra de dúvida no que respeita à origem das mais variadas formas de violência e ódio relacionadas com a intolerância religiosa, racial e cultural? Se estas e outras questões semelhantes receberem resposta afirmativa, seguramente, podemos considerar que “as virtudes” dos polvos continuam a inspirar acções humanas muito além dos limites dos oceanos.
Valmir Francisco Muraro |
(1) Vieira, P. e António, Sermão de Santo António aos Peixes , prefácio e notas de Rodrigues Lapa, 7.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1978, pp. 56-57.
(2) Foram publicados os seguintes anexos: o Regimento do Cardeal D. Henrique (1552), o Regimento do Conselho Geral da Inquisição (1570), o Regimento de D. Pedro de Castilho (1613), o Regimento de D. Francisco de Castro (1640), o Regimento do Cardeal da Cunha (1774) e o Projecto do Novo Regimento de Pascoal José de Melo.
(3) Vieira, P. e António, Obras Escolhidas com prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade, Lisboa, Sá da Costa, 1951, vol. IV.
(4) Muraro, Valmir Francisco, “ Inquisição Portuguesa : a Violência psicológica nos modos de proceder”. Conferência proferida no Congresso Internacional “Inquisição Portuguesa: Tempo, Razão e Circunstância ”, Lisboa, Outubro de 2004.
(5) Com a Bula Cum ad Nihil Magis, expedida pelo papa Clemente VII, em 17 de Dezembro de 1531, passava a existir formalmente a Inquisição portuguesa. Porém, só a 23 de Maio de 1536, com a publicação da Bula Cum ad Nihil Magis - mantendo o nome da anterior, mas com teor profundamente alterado e com novas disposições – “se instituía definitivamente a Inquisição em Portugal”, após conflitos de naturezas várias. Detalhes sobre todo o processo gerador da Inquisição portuguesa poderão ser lidos in Herculano, Alexandre, História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal , Lisboa, Livraria Bertrand, II tomos, 1979.
(6) Outras informações sobre o tema poderão ser encontradas em Mea, Elvira Cunha de Azevedo, “Um século de Inquisição em Portugal (1531-1640)”, in Nova Renascença , Porto, Primavera/Outono de 1998, vol. XVIII, pp. 259-277.
(7) Dois Regimentos foram atribuídos ao Cardeal D. Henrique, um de 1552, outro de 1570. A D. Pedro de Castilho foi atribuído o Regimento de 1613. A análise comparativa dos Regimentos revela um processo de sofisticação, com acréscimo de livros, títulos e capítulos, bem como de Adições e Declarações. Os Cardeais pretendiam garantir a ortodoxia católica com tribunais auto-suficientes em recursos financeiros, instalações e funcionários. Cf. Franco, José Eduardo, Assunção, Paulo de, As Metamorfoses de um polvo , Lisboa, Prefácio, 2004.
(8) Mea, Elvira Cunha de Azevedo, op. cit., p. 260. A autora denomina a mesma pedagogia de “método da catequização pelo medo, um compellere intrare”.
(9) Cf. Muraro, Valmir Francisco, Padre António Vieira: retórica e utopia , Florianóplis, Insular, 2003.
(10) Regimento de D. Francisco de Castro (1640), Livro II – Da ordem judicial dos Santo Ofício –, Título IV – De como se há de proceder contras os acusados – Com que prova se procederá a prisão. Cf. Franco, Eduardo, Assunção, Paulo de, op. cit., p. 299.
(11) Ibidem, Decreto por uma só testemunha
(12) Vieira, P. e António, Obras Escolhidas …, p. 143.
(13) Ibid., p. 163.
(14) Ibid., p. 164 |