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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

TOMÁS DA ROSA, A TARDE E A SOMBRA
Rosa Maria Goulart
(2005) TOMÁS DA ROSA, A TARDE E A SOMBRA (CONTOS). HORTA, NÚCLEO CULTURAL DA HORTA
Rosa Maria Goulart – Departamento de Línguas e Literaturas Modernas, Universidade dos Açores, Rua da Mãe de Deus. Apartado 1422. 9501-801 Ponta Delgada Codex.
 

Escreveu um dia Vergílio Ferreira, justificando o seu desamor por Cesário Verde – sobre o qual não deixou de escrever um belo texto –, que há os escritores que se ama e aqueles que se admira. Queria com isto separar o que é da ordem da emoção, fruto de uma adesão pessoal, subjectiva e emocional, nem sempre a mais justificável pela qualidade estética da obra lida, daquilo que não pode deixar de reconhecer-se como efectivamente merecedor de uma admiração intelectual, não já propiciada por razões primárias de ordem afectiva, mas, talvez, como diria Fernando Pessoa, pelas emoções da inteligência.

Poderíamos acolher-nos à sombra destes dois escritores para, desde já, afirmar que não é obrigatório amar-se a obra literária de Tomás da Rosa para que a admiremos e reconheçamos. O amor dos textos significa uma adesão não inteiramente consentida e implica uma relação de empatia que tem muito a ver com idiossincrasias, hábitos de leitura, sensibilidade e mundividências que variam de leitor para leitor. Assim sendo, e porque aqui entra, necessariamente, um critério de gosto, não se estranhará que um se entusiasme com uma obra que a outro oponha forte resistência. São assim os caminhos da pragmática literária, das relações que se estabelecem, em termos de comunicação, entre o autor que escreve o texto e o leitor que o lê e o interpreta, o que não autoriza, porém, a desvalorização pura e simples da obra lida sem tentar compreendê-la. Compreensão que tem, certamente, de passar por um aberto e paciente diálogo com a mesma, o que, no presente caso, se tentou fazer.

O meu conhecimento do Dr. Tomás da Rosa, objecto da homenagem que, muito justamente, o Núcleo Cultural da Horta lhe está a prestar, contempla estas duas vertentes: a do intelectual e o professor de grande competência científica e, ao que ouvia aos seus alunos (que nunca fui um deles), o notável purista da língua, por um lado; e, por outro; a do escritor, poeta e contista, faceta que só tardiamente lhe vim a conhecer. Quanto ao professor – e também nunca esqueci, ainda aluna do Liceu, as elogiosas referências à sua tese de licenciatura –, habituei-me a respeitar a sua figura de ar um tanto ascético, assim me parecia naquela altura, culto e sabedor. O conhecimento do escritor deu-se tardiamente, o que terá, possivelmente, influenciado a ordem por que valorei o seu magistério e a sua obra literária. Desta, veio em primeiro lugar a poesia, num volume significativamente intitulado Trovas ao Bom Jesus do Pico. Título que nos sugeria já duas pistas de leitura: o fundo religioso sobre o qual se recortaria esta poesia lírica e uma insinuada homenagem, na paradigmática figura do «Ecce Homo», à própria ilha de nascimento, à qual Tomás da Rosa sempre voltaria na sua obra, como uma espécie de local de culto obrigatório. Foi assim também com as duas colectâneas de contos de edição póstuma, Ilha Morena e A Tarde e a Sombra, agora lançado.

Recorde-se da primeira algumas das linhas de força temáticas e estéticas dos contos aí reunidos. Começando pelo título, vale dizer o que ficou dito em relação à poesia sobre os lugares da escrita do escritor: ainda e sempre a sua ilha do Pico, restringida, no caso das narrativas breves aqui incluídas, à sua freguesia da Candelária e, mais precisamente, ao lugar do Monte, aquele que, sem dúvida, melhor conhecia. Sublinhe-se, assim, o carácter regionalista dos mesmos contos, o qual marca tanto o espaço como as personagens, que se diria, numa espécie de prolongamento da estética naturalista, forjadas de acordo com o meio em que vivem e, certamente, com a educação que tiveram; a relação dos lugares da ficção, propriamente dita, com as experiências vivenciais e o conhecimento do autor empírico (por exemplo, a árdua vida do trabalhador rural, a travessia do canal nos barcos de cabotagem, enfrentando a fúria das ondas, os espaços geográficos de existência comprovada, às vezes como lugares de refúgio e de fuga ao bulício das cidades ou de re torno ao berço acalentador); em última instância, a análise, por parte do escritor, de sentimentos de nostalgia, dor, desilusão, amargura, ânsia de justiça, resistência aos revezes da vida, frustração perante os sonhos desfeitos. Talvez seja este o ponto em que essas narrativas conseguem soltar-se do mero regionalismo para perscrutar sentimentos mais fundos do ser humano em geral, aspecto a que, segundo parece, o Autor terá sido sensível. E sensível terá sido, sobretudo, aos aspectos mais doloridos e disfóricos da labuta pela vida e dos sentimentos mais recônditos, às vezes numa espécie de decifração de enigmas que explicam certos actos humanos.

Quanto à técnica narrativa, o Autor privilegia uma narração frequentemente submetida ao sabor de recordações do passado, para o que se lhe apresentou como um recurso disponível e eficaz o discurso indirecto livre. Servindo eficazmente a técnica da analepse, ou seja, ou recuo até a um momento do passado que se quer relatar, este expediente do discurso, fazendo coincidir o discurso da personagem com o discurso do narrador, torna presentes, de forma menos mediatizada, os sentimentos e atitudes da personagem. Podemos verificar que as linhas de rumo evidenciadas em Ilha Morena têm continuidade nesta segunda colectânea, que bem poderia formar uma unidade com a primeira.

Continuamos, com efeito, a ler pequenas histórias de gente comum, rural e trabalhadora, lutando pelo sustento, que é pertença de uma pequena comunidade que vive e discute os problemas que são de todos, mesmo se feitos de pequenos dramas, sonhos ou realizações individuais. Continuamos ainda com idênticos procedimentos narrativos, com frequentes diálogos e pontos de vista das personagens, remetendo-se o narrador à posição de um discreto relator que não imiscui no mundo narrado. Assim sendo, parece-nos ver uma atitude que se move em duas direcções opostas (que o mesmo é dizer, em dois sentidos divergentes): na de uma manifesta proximidade, que é solidariedade, para com as suas raízes e homenagem à terra natal; na de um distanciamento crítico a insinuar que, sendo embora aquele o mundo do Autor, não é exactamente (ou só) aquele o seu mundo.

Não cabe agora tentar dilucidar as fontes referenciais dos eventos ou das personagens que se movem nestas curtas histórias. Mesmo se hoje, investigação que não cabe aqui empreender, fosse, para quem tivesse conhecido o meio, possível encontrar nas narrativas, lugares referidos, nomes e apelidos que nos podem fazer pensar que o Autor poderá ter-se inspirado em pessoas ou factos reais, o leitor mais distanciado dessas experiências, e sobretudo o leitor do futuro, terá de lê-los com outra chave, aquela que só a literatura permite e que consiste em interpretá-los como construtos que nos dão uma certa «versão de mundo» e não o real em si próprio. Explicando melhor, dir-se-á que a realidade textualizada em literatura (objectivo certamente perseguido por Tomás da Rosa), se alguma mensagem deixa para o leitor do futuro será a de que a actualização, por cada um, do mundo narrado, fazendo-o presente a cada leitura só pode interessar-nos enquanto veículo de informação cultural, de ideias e valores que transcendem os reduzidos espaço e tempo das histórias particulares ou a limitação espácio-temporal relativa ao trajecto de vida do respectivo autor. Assim sendo, quanto menos circunscritos aos referentes localizáveis no mundo empírico maior abertura interpretativa eles facultarão.

No caso de personagens como as que vemos por estes contos desfilar, diremos que quanto menos se parecerem com indivíduos reconhecidos ou reconhecíveis mais se deixarão ver como representantes de algum aspecto do homem em geral, com as suas alegrias e, acima de tudo, com as suas dores. Com as suas dores, note-se, porque esta colectânea, tal como aquela que a antecedeu, é principalmente tecida das pequenas tragédias vividas em mais ou menos recato, dos sonhos (in)confessados, das labutas diárias, mais do que de eufóricas realizações ou de grandes sucessos. Como se da ilha do Pico, bem sua conhecida e não menos amada, se destacasse aos olhos do Autor aquilo que, tecido no esforço diário pela sobrevivência, na mágoa e no sofrimento, terá ficado a marcar a personalidade dos seus habitantes. Mesmo nos casos em que alguma ligeireza nas peripécias ou no convívio em diálogo mais descontraído ou brincalhão (cabe aqui destacar o bom humor presente em «O Quinto») aparentemente nos insinua o contrário, uma leitura mais subterrânea não deixará de pôr em destaque o que acabo de afirmar, confirmando os outros casos como verdadeiras excepções. Recorde-se, por exemplo, «As Sacas de Carvão», onde, reportando-se, como em outras narrativas, à labuta diária e à vida dura (“muito custa tirar pão destas pedras negras”, desabafa João Ramona, p. 14), o narrador desdobra analiticamente a sintética frase (a que se poderia juntar esta outra de «Manhã Raivosa»: “O que somos nós! Viver é sofrer até à morte, – conclui o Júlio”) da personagem sobre a vida (“Nasce-se, pena-se, vai-se penando, e está feita a viagem”, p. 10), nos seguintes termos:

“Viagem trambulhada a dele. Muito havia penado aquele homem forte. Sem contar o árduo amanho de terras, lá para norte junto às “criações” de gado… E in cultas agora, porque as inutilizara o trovão do Frei Matias, ele lembrava-se… Sem contar o duro trabalho nas vinhas, para conseguir que as pedras dessem uva… Sem contar os sustos que o diabo lhe pregava de tempos a tempos em fundões pedregosos e infestados de silvas, ou entre as sombras de arvoredos cerrados… E ainda por cima nem todos na aldeia acreditavam que ele andava farto de encontrar o diabo e coisas do outro mundo! Muitas penúrias sofrera ele para granjear o seu sustento. Se a gente nova soubesse ao menos o que representava na vida um bolo de soca de jarro ou raiz de fetos! – ia pensando!” (p. 10).

Confronte-se esta, da responsabilidade do narrador, com a perspectiva interna da própria personagem, a qual, na dureza do trabalho, consegue ainda descobrir-lhe alguma beleza:

“O trabalho nos matos para produzir o carvão, tanto como cavar o cascalho das vinhas, é que lhe encarquilhara a pele do rosto. E tantas vezes com um bocado de bolo seco para o dia inteiro. Ninguém cortara nos baldios tanta lenha para carvão, acendera tantas fogueiras, acarretara tantas sacas. Oh mas era bonito ver, nos dias claros, o fumo das fogueiras dos carvoeiros, em flexíveis novelos brancamente esgalhados! Salpicavam toda a encosta verde-negra. E ao fundo, como uma árida angústia interrogativa na imensidão do ar, afunilava-se o perfil montanhoso do Pico. Vida angustiada a dele, o experimentado carvoeiro! O Boa Esperança – há que dezenas de anos! – é que lhe transportava as primeiras sacas” (p. 12).

Excepções são, portanto, aqueles contos que relatam histórias felizes sem sombra de tristeza ou “de pecado”. «O anel», conto que finaliza a colectânea, saldando-se por um final feliz, traduzido em compensação monetária pela entrega do anel de estimação perdido, constituindo uma dessas excepções, não deixa, porém, de, pelo meio, ir registando a história triste de Manuelzinho e respectiva família (mãe e avós), sem dinheiro para tratar o avô doente. E se agora, com o dinheiro, se altera a perspectiva e, portanto, a esperança de cura, isto constitui verdadeiramente uma história de sucesso sem eco ao longo das histórias que a precedem e de que recordaremos apenas algumas. Este final feliz contrasta, aliás, de forma chocante, até pelo lugar destes dois contos na respectiva colectânea, com «Vigia», precisamente a narrativa que a abre, e «O irmão». Aí a impressionante morte da cadela «Vigia», vista pelos olhos do Albino, que recorda uma relação com o animal desde a sua perspectiva de criança, é mais um exemplo de que essas histórias sem final feliz podem estender-se aos animais, tomados estes como uma natural extensão dos humanos com quem vivem. Nesta perspectiva, podem ser pretexto tanto para actos de amor e generosidade como para actos de grande crueldade sem remorso, o que no caso vertente se verificou. Contrasta igualmente com outros, como «O irmão», onde perpassa toda uma atmosfera de mistério e falta de entendimento das coisas da vida, por parte de uma criança que, já desconhecedora da vida da mãe e respectivo afastamento, acaba, afinal, por receber a pior das notícias, a da morte da mãe e do irmão que estava para nascer.

Em «A Tarde e a Sombra», a qual nos surpreende pela tentativa de equilíbrio, no final do conto, entre uma perspectiva negativa e demasiado maniqueísta das personagens, construídas segundo uma tipicidade talvez demasiado ingénua, e outra que procura ainda vislumbrar alguma positividade no que parece negativo, a acção é quase toda percorrida por essa «sombra negra» que atravessa a vida de José Ti-Mariana, fruto de um frustrado casamento. De um esquematismo que se nos afigura bastante pobre na construção das personagens, incluindo o respectivo lado psicológico por demais simplista e estereotipado, surge inesperadamente aquilo que, a meu ver, acaba por redimir este conto: uma espécie de serenidade de vida e de aceitação final sem ressentimentos, numa submissão ao que, afinal, ela nos traz, misto de tristezas e alegrias. Também de remissão final e inesperada da personagem feminina central. E, no meio da recordação, a discreta presença do ambiente circundante – a que o narrador destes contos não dá grande relevo, sobretudo em termos de descrições, por se centrar primacialmente na vida das personagens e respectivas vicissitudes – vem introduzir inesperadamente uma leve nota de lirismo, infelizmente não explorada pelo Autor, que faz esquecer a vida que lhe estava para trás:

“A tarde de Setembro amaciava-se com o sol em declínio sobre os morros do oeste. E no seu íntimo espalhava-se, entre fresca e tépida, uma doçura poucas vezes saboreada. Conservava a janela aberta e via recortarem-se no silêncio do ar as casas monótonas do bairro. No mar as lanchas de pesca, baloiçando nas enseadas, marcavam a paisagem das ilhas com sinais de alegria e beleza” (p. 55).

“Janela aberta! As lanchas de pesca no mar ao cair da tardinha!… E a sombra da nuvem flutuando sobre o canal! Havia anos que a Idalina tinha fechado os olhos à vida, e ele e aos filhos chorosos então a seu lado. Tarde de recordações à janela! Janela aberta para um mundo desaparecido… Suspendeu sem esforço o veio da imaginação. E o passado velou-se numa cortina de bruma indecisa, quando ele baixou de novo os olhos pensativos para as velas brancas, a baloiçar na frescura das baías” (p. 56).

«Abel Cevada» inclui ainda um novo elemento nestes contos, a saber uma espécie de conclusão moral explícita, na atitude do moribundo que, antes de partir, reconciliando-se com o filho, «mostrava nas atitudes a humildade de quem pedia perdão antes de mor rer» (pp. 26-27). Cabe ainda dizer que o apego à condição de ilhéu, estendendo-se, de um modo geral, a todos estes contos («Chico Manuel», salientando-se como excepção, não dispensa, ainda assim, o estudante açoriano em Coimbra), nos mostra às vezes uma insularidade duplamente realçada: em si própria, como meio geográfico e social; no confronto com outros meios, a representar outros olhares, outras formas de vida e, talvez sempre, a conotação sugerida de campos abertos a outras realidades. Estarão elas presentes tanto nos sonhos de emigração que já víramos em Ilha Morena , onde a grandeza territorial é também sinal de conforto e largueza de horizontes, como na recordação de África que Lúcio, o filho de Abel Cevada, no conto do mesmo nome, consigo transporta como sinal de um deslumbramento de quem descobriu que para lá das ilhas há mais mundo e outras promessas de vida:

“Depois do serviço no Ultramar, o Lúcio apresentou a farda às autoridades militares, e voltou à aldeia, para casar com a Maria Augusta.

Mas aquilo, no Ultramar, eram outras terras. Grandezas e mais grandezas. Eles, ali, vegetavam no resto do mundo, fechados por círculos de água salgada, abafados por uma atmosfera de nuvens e brumas. Lá, não! Claro que bem lhe custara suportar a vida da tropa naqueles matos, com traiçoeiras arremetidas de terroristas, o rebentar imprevisto de bombas e os estilhaços nas picadas. Mas os campos, as paisagens, a imensidão! A vida europeia irmanada aos costumes nativos! E o rebrilhar dos olhos de estranhos animais nas florestas, o seu resfolgar e as suas vozes comunicativas ou ameaçadoras! Enfim, um mundo aberto e vasto!” (pp. 24-25).

Difícil será, para os que o conheceram mais de perto ou mais distanciadamente, pesem embora as proclamadas e já em descrédito, teorias da “morte do autor”, ler estas curtas narrativas sem ao mesmo tempo evocar a figura do Dr. Tomás da Rosa. Evocamo-la, no entanto, apesar da presença discreta deste narrador que também nada nos oferece sobre si, a não ser o de guardião de memórias ou o fiel depositário de um passado que se não quer de todo esquecer. Não sabemos quais teriam sido as motivações de Tomás da Rosa ao escrever estes contos, os quais se nos afiguram vindos mais espontaneamente de um conhecimento empírico e de uma sensibilidade individual do que do convívio literário com os grandes contistas modernos do século XX. O que se percebe, todavia, é que há, da parte do escritor, uma necessidade de preservar um passado, a transmitir a um presente que estava em vias de deixar de o ser e de um futuro que, sem sombra de dúvida, não se reconheceria nestes ambientes nem nestas histórias. Corrigindo um pouco esta afirmação, nelas não se reconheceria, tendo em vista uma curta perspectivação instalada no viver quotidiano meramente empenhado na sobrevivência mais imediata. Porque, se pensarmos que o nosso presente também é o nosso passado e que a nossa personalidade é feita de tudo o que nos precedeu, então o mundo destes contos de Tomás da Rosa permanece vivo na nossa memória cultural ou, sem que verdadeiramente lhe delimitemos as fronteiras, incorpora-se ao nosso presente para nos lembrarmos hoje do que ontem fomos.

Rosa Maria B. Goulart