Será que Portugal é um país realmente importante para os EUA? A enorme maioria dos responsáveis políticos nacionais e açorianos pensa que sim e vê os Açores, com as suas comunida des de emigrantes nos EUA e a Base das Lajes na Ilha Terceira, como importantes pilares dessa relação especial luso-americana. «A utilização dos Açores permite a Portugal uma proximidade verdadeiramente especial com os Estados Unidos», defendeu um alto responsável nacional em 2003 (1). Ao mesmo tempo que isto é dito e reafirmado existe no país um sentimento de insatisfação em relação ao actual estado das relações luso-americanas. Portugal, e os Açores em particular, têm uma relação especial com os EUA mas a história e a experiência mostram que o inverso não é verdadeiro.
A dura verdade é que, salvo raras excepções, Portugal contou pouco em Washington. Esta situação não tem nada de extraordinário já que não é fácil a um pequeno país euro peu influenciar o processo de decisão político de um país como os Estados Unidos. Existiram, todavia, algumas situações em que aquilo que se pensava e decidia em Lisboa era atentamente seguido em Washington. No Coração do Atlântico. Os Estados Unidos e os Açores (1939-1949), de Luís Nuno Rodrigues, analisa detalhadamente uma dessas situações.
Luís Nuno Rodrigues fez o seu mestrado e doutoramento nos EUA, é doutorado em História Moderna e Contemporânea, Professor no ISCTE e membro do Instituto Português de Relações Internacionais na Universidade Nova. A sua bibliografia publicada inclui importantes trabalhos sobre as relações luso-americanas como o livro Salazar-Kennedy: A Crise de uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961-1963 . Nuno Rodrigues pertence à nova escola portuguesa da história relações internacionais. No Coração do Atlântico. Os Estados Unidos e os Açores (1939-1949) é o seu último livro. É também um livro muito bom. A investigação nos arquivos nacionais e estrangeiros é rigorosa e metódica e a bibliografia secundária usada tem em conta o que de melhor tem sido publicado nos últimos anos em ambas as margens do Atlântico.
O resultado final é um estudo político e diplomático de gran de qualidade académica e, pormenor importante, de fácil leitura. No Coração do Atlântico está dividido em três partes. A primeira analisa o período entre 1939 e 1943 e dedica particular atenção à política externa portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial e à delicada tarefa de manter a neutralidade numa altura em que coexistiram planos alemães, americanos e ingleses para ocupar os Açores. A segunda parte aborda as negociações luso-americanas entre Novembro de 1943 e Novembro de 1944.
A última parte do livro estuda a evolução das posições luso-americanas após o final da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria. As estantes de história política e diplomática estão cheias de estudos áridos e difíceis de atravessar como os desertos. No Coração do Atlântico não é mais um destes livros. E não é porque Luís Nuno Rodrigues nunca esquece o contexto político e intelectual em que as negociações entre Washington e Lisboa decorreram entre 1939 e 1949. Em 1941 Washington podia estar a caminho de entrar na II Guerra Mundial no Pacífico e no Atlântico mas, como Nuno Rodrigues torna penosamente claro, ninguém no Departamento de Estado americano estava interessado ou minimamente informado sobre o que Lisboa pensava em relação aos Açores, império colonial ou sobre política internacional.
Em Washington as coisas passavam-se como se Portugal não existisse. Em Lisboa, o ministro americano Bert Fish achava Salazar excessivamente inteligente e não estava disposto a ir a S. Bento para «levar uns bons pontapés no traseiro». A geografia e as necessidades da guerra no Atlântico, Norte de África e Europa Continental é que levaram Washington a descobrir Portugal de uma forma algo apressada.
Apesar dos melhores esforços do excelente e bem informado George Kennan em Lisboa, a descoberta portuguesa pela Administração Roosevelt foi algo complicada. O processo de decisão político-militar americano sempre foi sinuoso e Washington levou bastante tempo a compreender o que verdadeiramente motivava Oliveira Salazar na questão dos Açores – a soberania nacional, a sobrevivência do seu regime e do império colonial português.
O interesse americano pelos Açores foi profundamente perturbador para Salazar. Por um lado, Salazar, um homem que raras vezes saiu de Portugal, pertencia a uma geração de homens políticos europeus que tinha má impressão dos EUA. Como Nuno Rodrigues acentua, a democracia e a imprensa americana, Wall Street e Hollywood suscitavam horror a Salazar. Além disso, a pose e a prática imperial de Washington eram consideradas na capital portuguesa como extremamente negativas para o futuro de Portugal e da Europa. Ver os militares americanos nos Açores, mesmo que isso implicasse a sobrevivência do regime e do império colonial português, era uma operação de alto risco para Lisboa.
O colapso do poder inglês, a necessidade de impedir o isolamento português no início da Guerra Fria e a importância de garantir que os EUA ficariam na Europa para enfrentar po lítica e militarmente a URSS levaram Salazar a iniciar e a manter um cauteloso processo de aproximação política a Washington. E assim, mais uma vez, os Açores cumpriram a sua função histórica e permitiram a Lisboa uma coisa invulgar no seu relacionamento com Washington – lutar acima do seu peso político. No Coração do Atlântico é um excelente estudo sobre a maneira como um pequeno e esquecido país europeu negociou com uma grande potência numa altura de transição do sistema internacional.
Miguel Monjardino
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