Localizando a correspondência epistolar de Pedro da Silveira e se acedendo a um todo de correio permutado, assim se abriria a outra avaliação, reforçada, da personalidade deste nosso autor de significativas autorias cuja presença de animada intervenção pessoal resultava com naturalidade e, não raras vezes, em colorido de pitoresca difusão. Era Pedro figura distintivamente cordial, pronta em atendimentos prestimosos. Era expansivo (não para além duma medida sensível) ao som e tom, inclusive, de assomadiço dito, convenientemente expresso, ou remoque necessário no acertamento de opinião e entrada de elemento esclarecedor no elenco de tema em face. De Pedro, amigo desde um conhecimento de escolares em Angra, ele, depois, frequentador da Biblioteca Municipal e a percorrer, estante a estante, livros e livros apetecidos, pois até ao inesperado desaparecimento (2003) e sem descuido, foi-me dado guardar letra impressa sua e quanto de cartas, todas as cartas que se contam por quatrocentas, só as posteriores a 1980, que as precedentes se foram irremediavelmente nos sumiços de casa arruinada pelo terramoto redutor do dia primeiro de Janeiro. Semelhante acervo de variado conteúdo, despertador de interesse, se, com outros equivalentes que tenham subsistido, serviria, pletórico de dados reveladores, para aquela sugerida avaliação, destinada pontualmente a acentuar o perfil silveiriano, já por demais impressivo no todo da escrita poética e na prosa, excelente, a de tomo e a das páginas de boletins, revistas e jornais, actas de congressos e de outras manifestações, designadamente as de directa cooperação de saberes que lhe solicitavam. Na realidade, o Pedro, um amigo que, memorialmente, retenho e de quem me coube redigir notícia cronológica que o Instituto Histórico da Ilha Terceira fez imprimir, ele mais evidentemente será conhecido graças à escrita epistolar por desinibida, não afectada por condicionalismos. A das referidas quatrocentas cartas (pouco menos são) é, obviamente, um tanto apenas de tanto com a firma do escritor, brilhante epistológrafo também, para o qual a língua portuguesa sempre foi de culto exemplar.
Simples – simples na aparência concisa – é um autógrafo, este aqui à vista na mesa de trabalho, um máximo de deferência que tanto me tocou e agradeci:
Para o velho amigo / João Afonso / (ass.) Pedro da Silveira / 7-3-84.
Pois agora, com o necrológio publicado, cumprem-se estoutras linhas destinadas, também a honroso pedido, à letra de forma. De singelas reminiscências de companheirismo é que são em notas soltas, pudessem ter interesse estas como aditamento, parco embora, às homenagens que, em vida, lhe foram prestadas. Quanto a isto é suficiente referir a que culminou nas Flores, a ilha natal, e a do Vale de San Joaquin, em Tulare, Califórnia, cidade irmã de Angra em reunião de salão repleto, assistência a escutá-lo, palavra a palavra e o Pedro felicíssimo a contar quanto de seus percursos cheios de interesse. O Pedro não deixava em vão o carteamento decorrente, mesmo se alguma impertinência se metia de permeio, ele, porém e a jeito, tinha, por vezes, de ferir a nota do que a si próprio também se impunha, ou seja reservar tempo para acudir ao principal. E sublinhava que a sua vocação epistolar não coincidia com a de Dom Francisco Manuel nem no barroquismo fraseológico de seu precioso engenho nem só no cúmulo (estatístico) de extensas cartas familiares, a seis por dia e todas expedidas em seguimentos imparáveis. Todavia, demorar-se o Pedro, isso não, para mais que duas laudas... O tempo e uma como que veneração têm contemplado, muito atenciosamente, a obra literária do Pedro da Silveira em geral, a poética especialmente. Os poemas designadamente os repassados de Açores e o do seu auto-retrato em soneto (obra prima nos exímios 14 versos) lido, post mortem , no parlamento nacional em homenagem, são objecto de acalentada difusão aquém e além. Vai-se, também, mencionando as suas antologias poéticas que, preparadas criteriosamente, se oferecem quais realengas mesas de amigo, com os quais ele conversava ou no Português ou, com empenho de tradutor habilíssimo, a navegar pelo Castelhano, Galego e Catalão, também pelo Francês e Italiano, chegando até, por sua curiosidade, a atender ao Leonês dos mirandeses e ao Sardineano sem deixar de ir pelo Romeno. Quanto ao léxico da língua pátria são múltiplos exemplos os de sua afeição apaixonada, patente (caso entre vários) de quanto na versão do Dom Quixote adaptado à leitura juvenil... Desde quando jovem e sempre adian te, foi sendo Pedro da Silveira considerado, com sensível atenção, no que nele confluía em superioridade de conhecimentos. Cooperador, era-o naturalmente de empenho terso, qual dadivoso pólo irradiante dos produtos dos seus selectivos interesses, concretizados em realização de cuidados extremos, de valimento correcto, tudo expendido com naturalidade e, para mais ainda, servido por memória robusta, pronta, jamais hesitante, tudo a transpassar os limites da generosidade e sem afectar um ar de cedência. As anuências, se não eram consistentes no imediato, iriam revelar-se num tempo prometido e bem cumprido de serviço. Mas... correspondência epistolar:
– qual, de que época ou épocas, de quem ou com quem? – quê de conteúdos? expositiva ou distribuída ponto a ponto? – e, além de cartas, um que outro postal? – se carimbada no país ou com endereço de fora? – se eventual ou se continuada? – se é possível jogar uma espécie recebida com a remetida para contexto? Por informação do próprio, procedeu Pedro, a intervalos, a depósitos na Biblioteca Nacional de Lisboa de seus arquivos epistolares e de outro género, aos quais, por morte, acresceu a parte final do espólio, incluído originais literários, alguns dos quais facultados, em cópia, a alguns amigos em busca de opinião. É, entretanto, de registar que à sua livraria oferecida, nos anos 60, à Biblioteca Pública e Arquivo de Angra se juntou ainda um considerável número de obras, tendo o mesmo sucedido em relação ao que, em duas ocasiões, é do Museu Regional. Com o poeta Pedro da Silveira morava não apenas um mas mais que um Pedro, o de toda a escrita, o da presença pessoal, ele tão característico que era. Fossem eles quais fossem, uns mais coincidentes com ele próprio, outros nem tanto, essoutros Pedros eram objecto de entendido alcance, directo ou indirecto, acatados ou nem tanto, convergentes ou divergentes como também de facto, sendo que ele, ao manifestar-se menos razoavelmente, não omitia as suas razões, expondo-as se necessário em público e de rasa linguagem como sucedeu no seu depoimento político (derradeiro) a uma revista de Lisboa, por sinal a jornalista açoriano na capital do país. Haveria, com efeito, que ter-se presente o retrato, mais que um só retrato de Pedro. O iconográfico de pintor retratista, também e por sinal açoriano – obra excelente, recolhida post mortem no Museu de Angra – jamais apanharia a realidade animosa de um Silveira de traço flamengo de ascendência provecta, ele também Pedro de brasão que, a recato, usava por vezes, tal como – e também a recato – expunha uma venera honorífica que lhe fora aposta em Dia de Portugal nos Açores depois de ter acompanhado o Chefe do Estado em todas as ilhas do Arquipélago (1989). Eis que é este, quanto em resumo, o Pedro: Pedro Laureano Mendonça da Silveira / 1922-2003 / Ilha das Flores-Lisboa / 5 de Setembro-13 de Abril / de morte súbita / de obra literária em cautelosa revisão e com inéditos (p. ex. alguns contos dados a ler a dois ou três amigos) / ele de seu inteligente amor ao terrunho florentino à vista de ilhéu o Monchique – derradeiro adeus geográfico da Europa e nome do jornal florentino, o último das colaborações de Pedro / ele, na Angra estudantil, de memórias para sempre, e na Ponta Delgada também sinalizando «literatura açoriana»?, «literatura cabo-verdiana»? e algumas interrogações mais / ele, a rumar à capital do país na mira de carreira, ao impulso de escritor «continental», o Assis Esperança, mais idoso que nós e da nossa atenção juvenil debilmente politizada ou nem sequer / ele (o Pedro), pelas funções correctamente assumidas nas envolvências coordenadas da «Seara Nova» (para mim... seara alheia) / ele, no tão lisboeta como assaz literário Café Gelo e no Portugal cosmopolita, também ao Rossio / ele, na Sociedade de Geografia a recomendar-me, na Biblioteca, A. Marques Pereira, com vista a espécies de «Açoriana» / ele, na Biblioteca Nacional, para, por vinte anos, ou assim, se movimentar em efectivas acessorias de Alta Cultura e a remeter-me, p. ex., para a medieval Bíblia de Cervera (de 1299) mais antiga de meio século que a Kenicot Bible, da Boldeian Library (Oxford), da qual retiraria, eu próprio, a imagem de Jonas e o Peixe para o então antevisto «Mar de Baleias e de Baleeiros» (editado pelos Açores com vista à Expo-98) / ele (o sempre irredutível amigo) a desvendar-me catálogos à margem da dita B. N.; ele, o sempre Pedro, a informar-me de que abrira vaga na B. N. de Macau para director da mesma e que eu só conheceria, de passeio, e muitos anos depois, pelo Extremo Oriente, por onde ele andara nos rumos também de Wenceslau de Moraes e não só / ele, sempre de sinais positivos... Era, realmente, o Pedro de agradável proximidade como em longa deslocação aérea (catorze horas seguidas, nós quase octogenários, eu a tomar conta do casal Silveira, ele e Athiná a tomarem conta de mim,..). E, depois, em festa do seu aniversário natalício que seria de despedida, só um convidado como que a representar todos os amigos e com fixação de fotografia a dois, a derradeira no seu último 5 de Setembro (Rua Freitas Gazul, 14-2.° Esq.) / ele, nesse mesmo dia, a usar sinal heráldico e, sem ostentação, o de uma condecoração, a de 10 de Junho, Dia de Portugal, nos Açores, ano de 89 / ele, até, a apontar-me uns Dias, florentinos – dos Dias Rodovalhos, assaz antigos, do tronco dos mesmos duma quintinha das Flores, a do... Bezerro Assado, na Fajãzinha de imponente cenografia. Pedro Laureano Mendonça da Silveira será, cada vez mais e após os que se ocuparam do poeta e prosador, o objecto de aprofundados estudos complementares dos que são conhecidos por impressos. Será, como novidade, o que ficou no seu espólio (Biblioteca Nacional), dele que, nos últimos tempos, volteava pelos poetas açorianos, de Emanuel e Rui Rodrigues aos mais recentes (o Ivo e o Rui Machado, chegados a nós no grupo de poetas açorianos que desfrutaram uns dias de Heidelberg), ele, Pedro, a colocá-los ou a recolocá-los em antologia, a querer ordená-los, com justeza, pelo seu valor. Ele, que sempre era criterioso, não deixava de actualizar o seu interesse pelos conterrâneos Mesquitas e Alfred Lewis e, como se deixa entender, de imediato, Vitorino Nemésio, cujo Mau Tempo no Canal, acabado de imprimir, fomos lendo, desde Lisboa a Angra, em cinco dias de um regresso... E por aqui – e com tão corredia escrita... – se fica este amigo de Pedro.
Agosto de 2005
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