Mais um livro nasceu da pena de Dias de Melo. Poeira do Caminho é um livro de reminiscências do passado e vivências do presente como nos é dito pelo autor em subtítulo. Escrito em estilo epistolográfico, o narrador dirige-se a uma amiga distante 800 milhas que relembra com saudade e com pena de não ter feito “o que a seu tempo, podíamos e teria sido bom que o tivéssemos feito” (p. 21). Uma amiga sete anos mais nova, lisboeta, ou pelo menos vive em Lisboa, e dá a entender que ainda amar-se-iam (p. 110). Em todas as cartas se despede dela e, muito curioso, em Post Scriptum interroga-se sobre o que ainda não resolveu, ou sobre um pormenor qualquer, o que faz prender o leitor. Por exemplo (p. 209), “será hoje, logo à tarde, que me liberto disto, que não sei o que seja, e consigo ir ter com a Maria Simas e a Maria Silveira?”.
Este encontro é sistematicamente adiado até ao fim do livro. Mas o leitor vai conhecendo a figura da Maria Simas, uma namorada do autor, uma mulher robusta e bonita que lia muito e escrevia melhor do que muitos com o curso dos Liceus, uma mulher que é adjectivada várias vezes no superlativo absoluto sintético, “inteligentíssima” e que, na altura da escrita, tem oitenta anos e teve uma trombose. Mas do encontro final no fim do livro (p. 270), fica a saber-se que ela continua com a mesma lucidez de sempre, apesar de bloquear a comunicação. “Sofre. E eu sofro com ela”. Repare-se nesta simbiose pelo sofrimento.
No encontro final com a prima Maria Silveira, também vítima de trombose, mais velha que o autor uns 11 anos, recorda um episódio em que ele, com os seus 11, a convida a dançar e ela o manda crescer primeiro (p. 271), mas perante a raiva de não ter sido aceite, fez a primeira quadra. Sai da casa da prima, “satisfeito” e “acabrunhado” e termina o capítulo com uma frase da sabedoria popular: “quando vires as barbas do teu vizinho a arder, põe as tuas de molho.” As cartas serão crónicas num diário de memórias que pretendem colocar no mesmo pé de igualdade as pessoas importantes que fazem parte do universo vivencial do narrador e as pessoas do povo humilde, o que não tem voz e sempre convive com Dias de Melo e a quem o autor dedica a sua escrita, no meio do qual a família tem um papel de relevo.
A solidão para Dias de Melo tem duas vertentes: é forçada por ter ficado viúvo, e é opcional por precisar dela para a criação artística. Da primeira, queixa-se por vezes. A solidão é acompanhada da decadência do ambiente: a faia que é um esqueleto por causa de um ciclone; a vinha que teve de abandonar (p. 115) e o ódio dos dois filhos mais novos. Poeira do Caminho é um livro muito situado no tempo e é engraçado notar que Cronos é marcado pela escrita da sua última obra. Por exemplo, o leitor fica a saber que este livro foi iniciado antes do término da escrita do Milhas Contadas. Quando o terminou, conta à amiga, em carta de 7-8-2002, do seu alívio, da preocupação em não deixar passar “gralhas”, no entanto, queixa-se: “Estes meus olhos...” (p. 93).
Outros livros aparecerão como, por exemplo, o À boquinha da noite, onde nos é dada a indicação do lugar da criação da ideia, bem como a motivação para a novela A Viagem do Medo Maior (p. 55). Também o livro Crónicas do Alto da Rocha do Canto da Baía, a propósito dos iates Santo Amaro onde fizera a viagem de núpcias, o Ribeirense, depois os navios que os substituíram como o Cedros e o Arnel, mais tarde o Ponta Delgada (p. 95). Sobre o nome de sua casa na Calheta do Nesquim, baptizada por Cabana do Pai Tomás, lembra a situação que se vivia nessa altura, de fascismo (p. 97). Outro livro cuja estória é explicada neste livro é o que conta o desastre do Canal como ficou conhecido, O Mar pela Proa, escrito em 1966, com a idade de 41 anos (p. 108), publicado nove anos mais tarde. Repare-se na intenção do autor de deixar um testemunho de vida, registado em palavras por um processo estético, descrevendo sentimentos, ambientes sociais e materiais, sendo a sua grande preocupação os valores da liberdade, da justiça e do amor.
Através deste livro ficamos a saber os nomes dos seus amigos e tudo o que Dias de Melo acha que vale a pena ser objecto de escrita. Podemos apreciar o que o faz feliz nas horas vagas como a sua preferência por fotografar nuvens e flores. E os passos mais importantes da sua vida de menino e jovem que teve uma vida muito enriquecida pela leitura, amanho das terras, música (tocava trompete na filarmónica), escrita (um grande desgosto por terem desaparecido os escritos que guardara, escritos esses dos 11 aos 14 anos, o melhor da adolescência), tropa, experiência de baleação que fazia durante as férias até “aos quarenta e tantos anos” (p. 155). A sua preferência pela vida do mar surge muito destacada em várias situações como, por exemplo, a do ti Luís, um grande amigo do pai, homem extremamente honesto e digno e ao mesmo tempo um bocado orgulhoso. Ti Luís personifica o grande pescador, aquele que percebe muito bem do seu ofício e por conseguinte também percebe de barcos e mar. “Nascera para o mar, o mar, pois, a sua única terra de eleição. Uma terra enorme: do tamanho do mundo. Uma terra líquida, uma terra viva. [...]” “Quebrantada em suas iras, uma terra cheia de ternura que falava connosco doces palavras de amor” (p. 205).
Reparem como Dias de Melo está lá, nessa terra líquida! O episódio do ti Luís é muito belo a vários níveis: torna relevante a vida de um grande pescador e destaca a forte solidariedade entre as pessoas que se interajudavam no sustento. Ti Luís dá peixe a quem o tinha ajudado noutras situações por ter uma grande família. Mas não só. Dias de Melo conta uma estória passada com ele quando era pequeno (6 ou 7 anos) em que foi na sua companhia à pesca e a importância que teve na sua vida ser tratado como um adulto. Depois de uma zanga, ti Luís dissera-lhe: “Vais aqui pescar comigo como um verdadeiro pescador” (p. 208). E mais abaixo conclui: “Pouco a pouco fui-me fazendo homem a ir com ele ao mar, já não apenas à pesca do chicharro.” Nota-se que as pessoas são reconhecidas ao Dias de Melo como escritor e este diário revela muitos acontecimentos não só de enormes amizades como de reconhecimento. Pode lembrar-se o amigo João Quaresma, da Madalena, que se disponibiliza a emprestar-lhe dinheiro caso precise aquando da doença de sua mulher (p. 212) e, por exemplo (p. 213), os taxistas: “Quantos se me têm negado a cobrar-me frete por pequenas voltas dentro da vila?”. As suas reflexões à laia de interrogações são frequentes neste livro. Quando está a falar de “ti Faidoca”, interroga-se por que não Mestre?
Estes homens na Calheta eram Mestres e agora está-se a perder essa designação... Porquê a resistência ao ir ver as amigas que tiveram trombose? (p. 178). O livro está recheado de estórias enternecedoras como a da cabrita, a Menina que morre por Dias de Melo lhe ter dado milho verde encharcado, o que lhe causou um grande remorso, atenuado pelas palavras amigas da madrinha que o tentou desculpabilizar (p. 69); outra estória de ternura é a que lhe conta a Ti Maria Augusta quando Dias de Melo era pequeno e fez da guitarra da mãe um barco e não foi batido por isso, apesar da mãe ter tido um grande desgosto (p. 122); outra é o salvamento de uma criança (prestes a ser comida por um tubarão) por Mestre José Garcia, homem que revela também grande ternura (p. 127) e reconhecimento ao escritor Dias de Melo pelo gesto de lhe dar peixe (p. 129).
Fica a saber-se o que faz deste autor um escritor: o ambiente em que viveu, e as obras que leu e lê (porque afirma, quem quer escrever tem de ler para aprender, não é para copiar), as leituras que lhe foram proporcionadas pelos tios, e a sua sensibilidade que se encantava com, por exemplo, versos da cantadeira Trelu, da Terceira, que lhe chegavam em folheto de cordel (p. 104) e os versos de escárnio e maldizer do tio Jorge que eram feitos para as festas do Entrudo (p. 104) que nos são descritas em pormenor, as leituras que o influenciaram como, por exemplo, a Ressurreição de Tolstoi que afirma ser para ele uma bíblia (p. 106). E revela-nos em que idade e com que estórias se iniciou na escrita. Estreou-se aos 12 ou 13 anos com uma peça de teatro (p. 107) que acabaria por finalizar com mais de 40 anos ( Mar pela Proa ). A sua personalidade foi construída, convivendo com parentes pró-Salazar e parentes anti-Salazar. A sua personalidade rebelde já lhe vem da infância.
De notar a questão do crisma em que afirma que um mistério se compreende e, por não suportar a reacção do bispo foge e refugia-se numa furna na costa (p. 136). A sua forma de escrever, o português base aprendeu-o com a tia Cecília e com as irmãs Moitoso quando se preparava para fazer exame de admissão ao Liceu (pp. 150-151). O processo narrativo é muito curioso. Vou dar um exemplo: na p. 104, Dias de Melo fala dos livros que o encantaram, salta para os versos que o tio Jorge fazia pelo Entrudo, (o tio Jorge era uma espécie de Gil Vicente ressuscitado a fazer autos vicentinos e é também referido outro autor e declamador de bandos, o mestre Serafim Bogango), lembra a forma como era festejado esse Entrudo nas diversas partes da ilha do Pico e quando chega a uma das freguesias, a Ribeirinha, acrescenta “freguesia de pedreiros” e conta a obra feita por esses pedreiros desde a reconstrução do Faial depois do terramoto de 1926 até à construção da igreja.
Delicia também o leitor os vocábulos que vão caindo em desuso como “mercar” e “merca” como nome, por exemplo, “merca de materiais” (p. 96); “lamparina” (p. 98); “varredoiro de esbarbeira” (de esbarbar?, limar? aparar? Não sei o que é, mas hei-de tentar saber) (p. 98); “fogão primus” (p. 98); “retoiçávamos” e o autor explica, “quero dizer, brincávamos por ali” (p. 103); “acadurmava multidões” (este cruzamento) (p. 105); “neste interim” (p. 138); saber de “carpina” (p. 179). E delicia também ler situações de outros tempos que já não se usam como a candeia cujo fumo “fazia lacrimejar” e o combustível usado era o “azeite de baleia” (p. 102). Mas, a propósito deste azeite de baleia, lembra os outros combustí veis para alumiar desde o povoamento em que recorriam ao óleo de baga de loiro, depois ao azeite de peixe, de toninhas, albafares e moleiros, pois baleias só se começaram a apanhar por volta de 1875 (p. 102). Sobre os serões nos fetais, da descasca e debulha do milho, lembra as leituras que o Tio Jorge ou a Tia Maria Augusta faziam para os circunstantes e onde Dias de Melo tanto aprendeu (p. 103).
Leituras que iam de Camilo Castelo Branco a narrativas em verso editadas nos Açores e diz o nome do editor em Angra, o senhor Andrade, literatura de cordel que era vendida “ao preço da chuva de porta em porta.” Mas este senhor Andrade é elogiado pela sua coragem pois foi ele que publicou, por exemplo, o primeiro folheto de Nemésio e publicava o Almanaque Açoriano. Outras figuras da cultura Dias de Melo vai lembrando, alguns completamente esquecidos. O livro termina com uma extensa carta ao amigo, já falecido, também escritor, também do Pico, José Martins Garcia: “Martins Garcia, grande Amigo, grande Mestre, adeus. Até qualquer dia” (p. 307). Isto são as últimas palavras do livro, datado de Ponta Delgada, 10-12-2002 e assinado J. D. Melo. Se Henry Miller, um iluminado, tem razão ao afirmar que o melhor romance é o autobiográfico, este é o melhor romance de Dias de Melo que partilha com os leitores o que o seu engenho e arte lhe permitiu fazer depois de toda uma vida de trabalho literário. Poeira do Caminho é mais uma preciosidade da literatura portuguesa.
Maria Eduarda Rosa |