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BOLETIM DO NCH
Nº 15, 2006
Dedicado a Pedro da Silveira

Isabel Baltazar

(2005) JOSÉ EDUARDO FRANCO & JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, A INFLUÊNCIA DE JOAQUIM DE FLORA EM PORTUGAL E NA EUROPA . ESCRITOS DE NATÁLIA CORREIA SOBRE A UTOPIA DA IDADE FEMININA DO ESPÍRITO SANTO . LISBOA , ROMA EDITORA .

Isabel Baltazar – Universidade Católica Portuguesa. Palma de Cima. 1649-023 Lisboa.
 

Eis um livro verdadeiramente inspirado, quer pelo próprio vulto estudado, Joaquim de Flora, quer pela sua influência na Cultura Portuguesa, muito particularmente em Natália Correia, quer, por último, pela forma como os próprios autores se deixaram tocar pelos mestres, e nos conseguem elevar à beleza espiritual da sua mensagem. Partindo das doutrinas e dos escritos atribuídos a Joaquim de Flora, mostram como um homem desta natureza nunca está totalmente estudado e, a sua intemporalidade, permite sempre novos olhares e novas interpretações. José Eduardo Franco e José Augusto Mourão curvaram-se perante a grandeza do génio, aproveitando as contribuições bibliográficas e documentais recentes, para mostrarem que o legado de Fiore é de um alcance inesgotável, sendo a sua influência muito fecunda na Cultura Ocidental e, especificamente, na Cultura Portuguesa. Muito para além da boa análise textual, o grande contributo da obra agora editada reside na selecção documental apresentada, que, pela sua densidade em quantidade e qualidade, parece convidar os leitores a continuarem o caminho que os próprios autores percorreram, mostrando a viagem sem fim e cujos caminhos levam, sempre, a novas e belas paisagens.

A beleza da obra, já de si irresistível pelo protagonista escolhido, sobressai por oferecer uma apresentação editorial de qualidade, com uma capa tão densa quanto o seu conteúdo, mas ao mesmo tempo atractiva, envolvendo páginas com uma impressão de qualidade, agarradas por uma lombada que garante a sua passagem pelo tempo, sempre à espera de novos leitores. Um livro que acompanha a qualidade dos vultos estudados e do comentário dos seus autores, que tiveram a habilidade de seduzir, também, pela selecção das imagens escolhidas. Para que nada possa desviar o(s) olhar(es) dos mais distraídos, passo a passo, somos levados à contemplação de pinturas, também, elas fonte de elevação espiritual, da autoria de Francisco de Holanda e de Salvatore Olivero. Nada foi deixado ao acaso. Tudo se conjuga para umas horas de fruição intelectual e gozo espiritual. Uma obra para ler e (re)ler. Com uma imagem de Salvatore Olivero, Liber Figurarum, trabalhada com arte e engenho por Paula Xavier, misteriosamente somos levados ao interior da obra, como se a capa nos avisasse, pelas sombras que saiem de uma figura de sábio, com um livro numa mão e uma bengala na outra, que se trata de descer à profundidade do pensamento de um sábio, em que nos apoiamos para conhecer e reconhecer a influência do seu legado. Disso somos avisados pelo professor Luís Machado de Abreu, quando escreve no prefácio à obra: «Continuamos a olhar para a cultura medieval como quem acabou de a resgatar do estigma de mil anos de trevas e nela descobriu a racionalidade escolástica e o misterioso fermentar da massa que havia de tornar-se o pão que alimenta a modernidade.

Foram assim emergindo da longa noite medieval as várias preparações ou antecipações de mundos que haviam de vir – o movimento urbano do século XII, o renascimento das artes e das letras, o despertar do espírito burguês, a criação das universidades, o surgimento do laicado, a curiosidade científica, o lento delinear do Estado moderno. Mas nem sempre nos damos conta do muito que foi ficando para trás, ainda enredado nas nuvens do obscurantismo, tão cómoda e tão prontamente invocadas» (p. 9). Mas o resultado será positivo, como indica o seu título «Entre Espera e Esperança»: vale a pena esperar, ver passar o tempo, porque a sabedoria não passa nunca, e há sempre a esperança de a desocultar quando parece encoberta pelo tempo.

O Abade Joaquim de Flora seria interpretado de formas tão diversas quanto o horizonte temporal em que é estudado; a introdução avisa-nos disso mesmo: «o horizonte de recepção do Abade de Florença reflecte no tempo as formas de discurso em que cada cultura se espelha» (p. 16). E logo a seguir acrescenta: «A sua textualização conhece tonalidades que vão da política à apocalíptica, da astrologia à moral, da exegese à parenética, sendo praticamente impossível delimitar o seu bom uso ou as boas interpretações que se sucedem ao longo dos tempos.

O tom do messianismo joaquimita era claramente optimista. O tom desta apocalíptica perdurará sob as piores deformações, não deixando de despertar o maior interesse, tanto da parte de quem analisa as ideologias revolucionárias como da parte de quem se interessa por essa forma de textualização da experiência» (p. 17). Por isso, a primeira parte da obra, «Traços da vida e obra do abade Joaquim de Flora» procura voltar à originalidade do próprio Joaquim de Flora, percorrendo o seu percurso existencial e espiritual, tentando interpretar a sua teologia da história e a utopia da Idade do Espírito Santo, além de reconstituir a crítica sócio-eclesial que esta figura sofreu. Repare-se que não parece haver por parte dos autores, a ideia de esgotar a análise de uma figura tão grande quanto enigmática, mas, tão só de aflorar os aspectos sobretudo relacionados com a temática do Espírito Santo, particularmente importante para a Cultura Portuguesa, e objecto de estudo da terceira parte desta obra.

A segunda parte, trata «A influência de Joaquim de Flora na Cultura Ocidental», partindo das correntes espirituais na Baixa Idade Média, da análise dos movimentos reformistas modernos, apresentando os teorizadores das utopias universalistas, até aos autores contemporâneos, da New Age à Cibercultura. Assim, encontramos na Divina Comédia de Dante traços joaquimitas, tal como se encontram, também, em movimentos de emancipação da mulher. Para captarmos melhor o seu horizonte, «o ambiente joaquimita na baixa Idade Média está bem descrito num romance contemporâneo que conheceu grande projecção – O Nome da Rosa de Umberto Eco. O fervilhar de novas ideias em tensão com a preocupação de salvaguarda de uma tradição obscurantista que vedava o acesso a determinados livros, que fossem possíveis fontes de inspiração para a ruptura da ordem estabelecida, expressa a força desestabilizadora e crítica do novo pensamento que encerra a Teologia de Joaquim de Flora e do movimento que ela gerou» (pp. 80-81).

Um homem que influenciou o seu tempo e os que se seguiram, muito particularmente, pela sua visão da história, que determinaria o mundo ocidental moderno e contemporâneo. O seu pensamento teve, igualmente, repercussões nas ordens religiosas, dominicanos, agostinhos e, sobretudo, no franciscanismo.

A história da salvação inserida na história da humanidade conferem ao Homem um sentido completo: eis a grande contribuição de Joaquim de Flora. Também os movimentos religiosos reformistas modernos ou os teorizadores das utopias universalistas descendem do abade calabrês. Como dizia Eric Voeglin « Joaquim criou o agregado de símbolos que governa a auto-interpretação da sociedade política moderna » (p. 93). Finalmente, na terceira parte, há uma análise da «influência do Joaquimismo de Flora na Cultura Portuguesa», desde os descobrimentos e missionação, averiguando os indícios de paracletianismo em Portugal na preparação das descobertas, mostrando o profetismo quinto-imperialista e a mitificação da missão de Portugal. Como dizia o Padre António Vieira, era a abertura do mundo ao próprio mundo ou o rumo na linha da utopia milenarista de Joaquim de Flora.

Jaime Cortesão seria o primeiro historiador português a mostrar a influência do joaquimismo na cultura portuguesa, existente mesmo antes de consciencializada. A sua imagem mais marcante ficaria, para sempre, ligada à doutrina da Idade do Espírito Santo, tão abundantemente espalhada na nossa cultura.

António Quadros mostrou bem a influência espiritual de inspiração joaquimita presente na ideia de Quinto Império. Segundo ele, « em nenhum lugar deitou raízes tão fundas como no nosso país e na nossa cultura, não só inspirando as cerimónias religiosas aristocráticas e populares do culto e das Festas do Espírito Santo, tal como foram instauradas por D. Dinis e Dona Isabel, não apenas emergindo na arte portuguesa dos séculos XV e XVI, desde os Painéis de Nuno Gonçalves à Arquitectura Manuelina, mas também expressando-se como inspiração poética, com força especulativa ou com finalidade mística, na obra de poetas e pensadores modernos, como principalmente Jaime Cortesão, Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro ou Agostinho da Silva » (p. 103).

Há verdadeiras metamorfoses laicas do profetismo nacional, sendo de destacar vultos contemporâneos da Cultura Portuguesa, entre os quais, Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia. Esta última, objecto de um aprofundado estudo, quer de análise quer de recolha documental, sobre o Joaquimismo e a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo, cujo apêndice documental lhe é dedicado, para justificar, aliás, o subtítulo que aparece na capa: Escritos de Natália Correia sobre a Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo . É a visão feminista da terceira idade joaquimita do Espírito Santo. A era messiânica e os valores que lhe estão associados são, essencialmente, femininos: a serenidade, a solidariedade, as pequenas coisas, a ternura, a terra, a conciliação e a contemplação. O essencial escreve-se no feminino: é a descoberta da natureza feminina do Espírito Santo.

Uma excelente e exaustiva bibliografia e um índice remissivo completam esta obra, sem dúvida, uma referência para o estudo de Joaquim de Flora, e muito particularmente, para a sua influência na Cultura Portuguesa. Atrevemo-nos a sugerir uma outra, apenas sobre o Feminino em Natália Correia, que mostre em amplitude a faceta de uma Mulher que, tal como Joaquim de Flora, ainda se encontra por estudar. É esta a convicção dos autores quando na conclusão afirmam: «A interpretação que ainda hoje se faz do Abade de Flora em Portugal não será a mais ortodoxa, e muito menos a mais documentada. Colou-se o termo joaquimismo a uma série de acontecimentos em que quase nada é joaquimita, mas essa é a sina da interpretação. A escatologia torna-se a base de uma ideologia social difusa das regiões meridonais da cristandade ocidental ao serviço de causas diversas, apocalipses de facções, ou utopias insulares. A identidade dos profetas, visionários e beguinos catalães define-se por alguns elementos positivos em que dominam um joaquimismo utópico, uma crença na iminência do fim do mundo e uma adesão à pobreza evangélica, não imune a traços ofensivos: o secular, o judeu e o muçulmano são o pólo repulsivo do beguino catalão. É esta sociologia da esperança que Natália Correia reconhece transplantada para os Açores e presente naquilo a que ela própria chama a mística pentecostal» (p. 139). Joaquim de Flora, uma figura enigmática e controversa, mas, ao mesmo tempo, capaz de influenciar pessoas e movimentos de inspirações antagónicas, tal a riqueza da sua vida e obra, que como afirma Chenu, tem a virtualidade de conciliar «na mesma incomodativa mistura, os mais graves erros e as mais perspicazes inspirações» (p. 140).

ISABEL B ALTAZAR