Nos últimos tempos temos
dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente às questões
ambientais e aos desafios que as mudanças climáticas implicam para o
futuro de nossa civilização, para a produção e o consumo.
Nem por isso devemos
descurar os problemas cotidianos, a construção continuida de nossa
identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca
terminada. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos
que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de
desapegar-se.
Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria
natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe barreiras de toda
ordem, de lugar, de profissão, de inteligência, de saúde, de economia,
de tempo. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E às
vezes nos sentimos impotentes face a dados que não podemos mudar como a
presença de um esquisofrênico com seus altos e baixos ou um doente
terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível.
Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que
ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos
crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se
unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a
sabedoria oriental:"se alguém sente profundamente o outro, este o
perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância". Se
te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que
irradiará para os outros.
A outra tarefa da autorealização é a capacidade de desapegar-se. O
zenbudismo coloca como teste de maturidade pessoal e liberdade interior
a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o
desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno, em
seguida, da meninice,da juventude, da escola, da casa paterna, de
parentes e da pessoa amada. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos,
de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que
irrefragavelmente vão se desgastando até despedirmo-nos da própria vida.
Nestas despedidas deixamos um pouco de nós mesmos para trás.
Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade
irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável.
Mas será que ela não guarda um sentido existencial, a ser buscado pelo
espírito? Se, fenomenologicamente, somos um projeto infinito e um vazio
abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não
significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não
seria o Supremo Ser, feito de amor e bondade, que nos vai tirando tudo
para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca
finalmente descansará?
Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que
esta foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de
Gandhi, de Madre Teresa e de outros.
Talvez um estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o
sentido da perda que produz um ganho. "Era uma vez um boneco de sal.
Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir o mar que nunca
vira antes e por isso não conseguia comprendê-lo. Perguntou o boneco de
sal:" Quem és tu? E o mar respondeu:"eu sou o mar". Tornou o boneco de
sal: "Mas que é o mar?" E o mar respondeu:" Sou eu". "Não entendo",
disse o boneco de sal. "Mas gostaria muito de compreender-te; como
faço"? O mar simplesmente respondeu: "toca-me". Então o boneco de sal,
timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que
aquilo começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam
desaparecido as pontas dos pés. "Ó mar, veja o que fizeste comigo"? E o
mar respondeu:"Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens
que te dares todo para me compreender todo". E o boneco de sal começou a
entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a
coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia entrando, ia
também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o boneco
continuava perguntando: "que é o mar". Até que uma onda o cobriu
totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no
mar: "Sou eu".
Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu. |