JESSICA ATAL
Tradução ao português: Mary Anne Warken / Leo Lobos
Jessica Atal é escritora, editora, crítica literária e ministra oficinas literárias. É autora dos livros em prosa, Ella también se va (2018) y WhatsApp, Amor (2016); e dos livros de poesia, Carne Blanca (2016), Cortina de elefantes (2014), Arquetipos (2013), Pérdida (2010) e Variaciones en azul profundo (1991). Estudou literatura na Universidade do Chile e se graduou com um Bacharelado em espanhol na Universidade de Utah, Estados Unidos. Escreveu no jornal El Mercurio durante 27 anos, entre 1988 e 2015. Foi gerente e editora do selo editorial El Mercurio-Aguilar, entre 2000 e 2009. É colaboradora das revistas Al Damir e Capital. Detentora do Prêmio Edward Said de 2014. Tem poemas traduzidos para o inglês, árabe e romeno, e publicados em diversas antologias, revistas e jornais internacionais. Atualmente trabalha como editora independente e ministra oficinas de escrita para adultos. É colaboradora permanente da revista cultural La Panera. Vive em Santiago. É mãe de Elisa, José e Nicolás.
Mary Anne Warken é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. (PGET / UFSC). Bolsista CAPES. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
Leo Lobos Leo Lobos poeta, ensaísta, tradutor e artista visual chileno. Fez residências criativas em Centre d´Art Marnay em Marnay-sur-Seine, França em 2002, e em no centro de cultura Jardim das Artes en Cerquilho, SP, Brasil. Publicou, entre otros, Cartas de más abajo (1992), +Poesía (1995), Perdidos en La Habana y otros poemas (1996), Ángeles eléctricos (1997), Camino a Copa de Oro (1998), Turbosílabas. Poesía Reunida 1986-2003 (2003), Un sin nombre (2005), Nieve (2006), Vía Regia (2007), Nieve (2013), Coração (2018). Gestor cultural do Espaço Cultural “Taller Siglo XX Yolanda Hurtado” da Fundação Hoppmann – Hurtado, em Santiago do Chile.
Já conheço esta sensação. Os seios inchados, febris, a ponto de explodir. Ao mínimo toque a dor. A menstruação não chega. Dias de atraso. Nem sei quantos. Três ou quarto. O suficiente para perceber a mudança hormonal. Algo está acontecendo por dentro. Me dá medo o que pode estar acontecendo lá dentro. Vou até a farmácia. Compro um teste de gravidez. Minto. Digo que é para minha filha adolescente sem que ninguém desconfie. Não sei se acreditam em mim. Quem se importa? A vendedora nem ao menos me olha nos olhos. Seria o mesmo que estivesse vendendo aspirinas, ou escova de dentes, ou algodão. Me sinto mal. Tonta. Abro a embalagem de plástico espesso e branco. Por que fabricam estas coisas tão complicadas de abrir? Luto desesperada com o plástico até terminar rompendo com os dentes, com as unhas.
No interior tem um instrumento também branco. Parece um termômetro. Claro que estou febril. Leio as instruções. Abrir a tampa vermelha. Não sei por que é lilás, a cor da esperança. A cor do estojo dos meus lápis. Por algum motivo escolhi essa cor para guardar meus lápis. A esperança do meu trabalho. Por algum motivo eles escolheram, pessoas do laboratório, a cor da esperança da vida. Não quero nem pensar nisso. Entro no banheiro e me sento. A taça do vaso sanitário está solta desde que eu vim para esse apartamento e ainda não o organizei.
Apenas apoio a nádega esquerda, me deslizo para um lado. Fico sentada com os quadris tortos. A tampa bate forte. Ferro contra ferro. A caída brusca desnecessária. Sigo as instruções. Urinar e deixar cair umas gotas de urina sobre a ponta do aparelho que é do tamanho de um lápis. O líquido amarelo sai sem direção fixa. Tento pegar a urina com minhas mãos para pôr no aparelho-lápis-termômetro-bendição ou castigo que deve empapar-se com minha estúpida urina. Bem. No final. Consigo. A ponta aberta para o exterior fica molhada. Deve-se esperar um minuto e deixar o aparelho sobre uma superfície plana. Deixo sobre a beirada da banheira enquanto lavo as minhas mãos e me limpo entre as pernas.
Me seco. Subo as calcinhas, as calças. E olho. Olho como a urina avança por uma janelinha do aparelho com fundo branco. Se tinge escura, amarelenta, e logo marca uma linha vertical rosada. Se marca uma só linha, tudo está bem. Não tem gravidez. Alívio. Não quero continuar olhando. Mas pouco a pouco se esboça uma segunda linha. Fica cada vez mais escura até que alcança a mesma intensidade da primeira. Droga! Isso sim é gravidez. Duas linhas paralelas. Resultado positivo. Fixo os olhos nessa linha. A segunda. Não desaparece. Não muda de cor. Não se esfuma. Ao contrário, vai ganhando força, torna-se uma realidade enorme, gigante. É uma parede. É um muro grosso, de cimento, é o muro de Belém, a barreira impossível de evitar, transpassar, botar abaixo. Oito metros de altura, e o dobro do que media o muro de Berlim. A toco, me queima. Me dessangra. Não. Não me dessangra de verdade. Tomara que me dessangrasse, e por primeira vez quero ser um desses palestinos mortos entre o pó e o sangue. Tomara fosse capaz de colocar, de despejar a terra com todo esse sangue que está protegendo as paredes do útero. Esse sangue que protege um grupo de células que daqui um tempo, em pouco tempo, terá órgãos e um corpo que integre esses órgãos, os organize e entregue uma estrutura. Um ser humano. Be. Ela é Be. Uma menina. Eu sei. De cabelo castanho e crespo e olhos claros, azuis. Já sabemos, tu e eu, como é. Sabemos como se chama. Desde o primeiro momento. Ainda bem que você está perto de casa e vai chegar logo. Toca a campainha. Sabe que o meu marido está viajando. Abro sem cumprimentar você. Vem, te digo. Me segue até o banheiro. Fecho a porta, apesar de estarmos sozinhos. Olha. Mostro o tubo-destino-realidade-futuro-força-vida. Be. Mas você tem certeza, me pergunta. Quem sabe é um falso resultado, um engano. Não, nunca é um falso resultado. Estes testes são noventa e nove por cento confiáveis. Certeiros. E meu corpo também não se engana. Sou mulher. Sei o que está acontecendo comigo. Não quero acreditar no que está me acontecendo. Estou em um pesadelo. E como se sai daqui. Não, não se pode sair. Não se desperta de este pesadelo. Invade todo espaço. Todo o espaço. Físico e mental. Minha pele está branca. Suo frio. Perco a cor. Já não imagino nenhuma cor que não seja o vermelho que espero que flua e que tinja a terra. Quero sangue, mas por outro lado, sinto terror. O que faço? Não posso ter esse filho, filha, ou o que seja. Você me olha. Não reage. Mas no final pergunta, como se não tivesse nada que ver com tudo isto, e o que quer fazer? Não sei. Não a ter? Mas você me detém aí. Não. Você está louca. Eu não quero carregar com esse Karma. Se você não a quer, dê para mim. Eu a criarei. Levo para longe. Não terá que ver nunca mais. Só mantém ela aí, no teu ventre, nove meses. Depois esquece. Sim, claro, Franco, com certeza que esquecerei. Está louco. Essa é mais uma das suas ideias brilhantes. Bom se não a quer, entregue em adoção. Você está falando sério? Não. De nenhuma maneira. Prefiro que morra antes de entregar para estranhos. E se a maltratassem. Se forem maus, abusadores, doentes. Não. Então o que. Assuma, você me diz. E por que eu, como se estivesse só nisto. Claro que estou só nisto. Bom, temos que assumir, me diz em um tom mais carinhoso. Por primeira vez brilham um pouco os seus olhos, como quando sonhas com teus planos que nunca se fazem realidade. Vamos para longe. Você sempre quis ir para longe, Luz. Quem sabe esta seja a única alternativa. Fugir. Mas eu não sei se posso. Não sei se quero. A essas alturas da minha vida. Fugir para onde. Já tenho quatro filhos. Não. Impossível, Franco. E o que você quer fazer, você me pergunta outra vez. Não sei, respondo alterada. Por enquanto não pensar. Bom, como quiser. Me dá as costas. Logicamente você me deixa, vai embora. Fico sozinha no banheiro. Me olho no espelho. Sinto a cerâmica branca e fria abaixo dos meus pés descalços. Sou uma cerâmica fria. Corro até o telefone. É o primeiro passa pela minha cabeça. Peço uma consulta com Luís, meu ginecologista. Urgente. Hoje mesmo às seis da tarde. Vou só, claro, com quem mais. Me fazem esperar. Como sempre, me fazem esperar. Durante vinte cinco minutos fico observando mulheres grávidas acompanhadas de seus maridos, felizes, conversando devagarinho, pensando qual o nome do bebê, nas ecografias, se já se parece ao papai ou a mamãe, no quanto são felizes. Não, não tenho paciência. Me aproximo da secretária. Quanto falta para eu ser atendida? Por que o médico está tão atrasado? Já está por sair a paciente anterior, senhora Luz, responde a secretária com toda calma do mundo. Como são as secretárias. Treinadas para isso, para ter paciência com pacientes histéricas. Assim que ela saia, faremos a senhora passar de imediato. Sente-se por favor. Retorno obediente ao meu assento de plástico azul. Que significa o plástico. Que significa o azul. Na minha frente tem uma tela. Em todas as salas de espera de esta clínica existe telas. Em todas partes a informação é bombardeante. Espessa. Desfilam um sem fim de doenças e os especialistas falam de como os médicos desta instituição tão prestigiosa tem curado e salvado milhares de pacientes. Lhes devolveram a felicidade para suas vidas. Agora um médico fala de gravidez. Estão brincando comigo? Os cuidados com o recém-nascido. Não quero mais saber. Conheço todos de memória. Quatro vezes passei pela mesma coisa, droga. Era uma etapa fechada na minha vida. Mas aqui está outra vez diante de mim. A possibilidade de ser mãe. De trazer mais vida ao mundo. Como se não tivesse suficiente. Não pode ser. Me chama. Senhora Luz, consulta 7. Luis não está na sua oficina. Tem um imenso janelão com vista para árvores tristes. Tenho que esperar e me submerjo nessas árvores, em suas poucas folhas. Alguma vez fomos juntos, Cristián e eu, nesse consultório. Na verdade, mil vezes. Entra Luís, me saúda carinhoso, como é ele. Consegue somente me preguntar como estou e rompo em prantos. Grávida, respondo. Estou grávida. Como você sabe. Pergunta, interrogando a vida. Fiz o teste. Hoje de manhã. Sem mudar a expressão do seu rosto nem sequer um pouco, me pergunta o de sempre, a rotina. Quando foi minha última menstruação, quando tive relações pela última vez. Não parei de ter relações, Luís. Com Cristián e com alguém mais. Veremos, Luz. O que você quer me dizer. Bom, que tenho um amante. Luís continua sem modificar a expressão do seu rosto. Como se isto dos amantes pudesse causar espanto nele. Sendo ele um ginecologista. Mas o pai é o Franco, não meu marido. Sei disso pela data. Cristián viajou. Minhas mãos tremem suadas. Luís não se envolve em drama passional. Nem uma só vez me olhou nos olhos. Melhor assim. O que importa para ele são os dados, os fatos, o que se pode comprovar cientificamente. Me pede que passe para a outra sala, que me desvista e que eu coloque a bata. A enfermeira me pesa. 64, 7 kilos. Não posso estar tão gorda. No final da gravidez estarei com 120. Ninguém repara em meu comentário. As árvores lá fora seguem triste. Melhor nem falo bobagens, ainda que o único que quero é falar, falar do que seja e que alguém me escute. A enfermeira me pede que eu suba na maca. Um pé em cada estribo, por favor. Que me sente mais abaixo. Sim, na borda. Luís monitora uma tela e tem outra na minha frente. Ali está. A imagem cinza. O tecido, o útero. Uma pequena mancha negra. Apenas um ponto. Minúsculo. Ali está, Luz. Efetivamente você está grávida. Desabo em prantos uma vez mais. Luís me consola pela primeira vez. Tá, tranquila, não fique desesperada. O que mais poderia dizer. A face descomposta pelo pânico, eu sei. Mas existe uma esperança. Na tua idade, me explica, é difícil que a gravidez prossiga. As estatísticas são muito baixas. Em toda minha vida profissional eu tive duas mulheres da tua idade com um filho nos braços. E se eu for a terceira? E Cristián? Sim, já sei que estou velha. Aos 49 quem inventaria pensar em ser mãe. Vista-se, Luz. Atendo o pedido. Entro ao banheiro com os olhos nublados, empapados, minha vida nublada no pequeno banheiro do consultório. Sem saída. Sem janela. Não me tranquilizo. Nada me tranquiliza. O que vou fazer. Aí está. Be. Recém a vi. Gestando-se. A vida. Tenho o olhar fixo no meu estômago. O vejo gigante. É uma bola gigante. Um planeta. Uma menina. Volto para o escritório de Luís. Escreve meu prontuário. Me pede alguns exames. Para que fique tranquila. Medem o nível dos hormônios. A gonadotrifina cariônica e a progesterona. Se os níveis forem baixos, é difícil que a gravidez prospere. Repete para mim. Uma e outra vez. Mas isso não anula minha angústia. Se não te chamo hoje, Luz, amanhã ao meio dia sem falta teremos a resposta. Olha a hora no seu relógio. Sim. Talvez não alcance me chamar hoje. Por agora tranquila, me diz por enésima vez. Mas eu sei que não vou estar tranquila. Desço para o subterrâneo, ao laboratório. Necessito fazer estes exames. É urgente. A enfermeira me pergunta qual o motivo de me pedirem estes exames. E digo que não sei. Foi meu médico. Ele quer. Ela me pergunta a data da minha última menstruação. Não lembro bem. Acredito que foi próximo ao 3 de maio. Não quero entregar informações. Não quero que saiba nada de mim. Me pica. O tubo enche de sangue vermelho que não parece vermelho, nem sangue, mas sim um líquido gelatinoso e muito escuro. É a cor da minha resistência interna. Negra. Os resultados saem em quatro horas, me diz a enfermeira. O médico não conseguirá ver esta noite, mas eu posso ver eles online. Às 11 PM. Vou para casa. Os meninos me esperam. Não sei que cara tenho. A pior. Abraço meus filhos, são tão inocentes ainda. Vou para a cozinha. Devo preparar a comida. Abro uma garrafa de vinho. Quero beber. Não suporto pensar no que poderia acontecer, no que está acontecendo. Você chega de surpresa. Que saber como estou. Como você acha que estou, Franco. Por acaso é um castigo? me pergunta. Um castigo. Ninguém nos mandou um castigo, nem do céu, nem de nenhuma parte. É a óbvia consequência de nossa inconsciência, tua e minha, de nossa irresponsabilidade. Com estas coisas não se brinca. Por acaso não sabia? É consequência de pensar que não vai acontecer nada, como se estivéssemos acima das leis da natureza. Imaginando que controlamos tudo. Não é um castigo. É o que nós mesmos buscamos. Tu e eu. Ainda pode ser uma maneira de castigar a nós mesmos. Isso sim. Porque agora perdi o Cristián. Perdi ele para sempre. Você acredita que ele vai me perdoar uma infidelidade assim? Não. Nunca. Eu também não faria. Jamais o perdoaria se se metesse com outra mulher. Vai me odiar pelo resto da sua vida. Mas você não tem porque contar, Luz, me diz como se fosse a fórmula mágica. Por que você teria que contar? Como? Como eu poderia esconder algo assim? Por acaso você não sabe que o que tenho dentro de mim vai crescer e vai ser notado e viverá aqui, nesta casa, com estas crianças? Bom, mas poderia ser dele, não? Essa criatura poderia ser dele. Isso desejaria você, Franco. Isso desejarias. Está louco. Eu sinto muito, mais isso é impossível. E como você pode estar tão certa? Como sabe que é minha. Você está brincando comigo? Por acaso não sabe? Pela data, Franco. Os dias de fertilidade são específicos e em um desses dias estivemos juntos, você e eu. Sim, maldita a hora em que estivemos juntos. Em que momento pensamos que isto podia funcionar. A vida dupla. O amor clandestino. Você tem a sua vida com a sua esposa. E eu com meu marido. E éramos felizes. Era tão fácil. Agora então. Perdi tudo. Perdi tudo para sempre. Quero ficar sozinha, digo para você finalmente frustrada, enjoada. Por favor vá embora. Vá sem dizer adeus. Vou colocar as crianças para dormir. Melhor vou dormir. Mas não. Não durmo. Espero que sejam 11. Vou para o computador. São mil números. Percebo que os níveis estão altíssimos. A gravidez é real. A infidelidade é real. Não sei se consigo dormir um pouco durante a noite. Tenho os olhos inchados pela manhã. Pego o telefone. Peço outra hora urgente. Mas desta vez com a Silvia, minha psicóloga. Vou correndo. E conto tudo. Sua primeira reação é de alegria. Quer me dar os parabéns. Mas eu não deixo. Choro aos prantos mais uma vez. Ela tenta me dizer que tudo está bem. Que Deus sabe porque faz as coisas. Que as crianças são anjos que chegam do céu. Que é um presente. Que eu devo estar agradecida. Silvia é tão católica que me desespera. Me pergunta se conheço a história de João Paulo II. Lógico que não. E não quero ouvir, mas me conta mesmo assim. Sua mãe era viúva, com idade já avançada, tinha seis filhos. Quando soube de uma nova gravidez, aconselharam ela por uma questão de saúde, abortar, mas ela não quis. Teve ao seu filho sozinha. E sabe quem foi o seu sétimo filho, Luz? Não, logicamente eu não sei e nem me importa, respondo impaciente. Foi o Papa. João Paulo II. Olho para ela com indiferença. O último que eu queria no mundo era ter um filho padre, cardeal ou papa. Que nojo. Você não sabe o destino que espera essa criatura, me diz Silvia. Não sabe o que é que fará neste mundo. Não te diz respeito saber também. Explico então que este filho não é do meu marido. Este filho é de uma relação com meu amante. Entende, Silvia? Fui infiel. E me custa dizer. Amante. Porque o amor não está em jogo. Eu amo o meu marido, mas enganei ele. E olha o que aconteceu. O que quer fazer, Luz. Esta criança chegou para que resolva o seu destino. O destino de todos. Se você foi infiel é porque algo não anda bem no seu casamento. Eu não quero resolver nenhum destino. Ou sim: não posso ter outro filho. Sim pode. Mas Cristián não vai me perdoar. E Franco tem sua mulher a quem ama, e eu sei, e também gostaria de estar com ele. Então fique sozinha, Luz. Nem um nem outro. Você será uma guerreira e enfrentará sua vida sozinha. Essa criatura vem para isso. Para que de uma vez por todas você assuma a sua vida. Não necessita de um homem ao seu lado. Só a você mesma. Você sai daqui para enfrentar o mundo. Não, Silvia. Eu não sou capaz de enfrentar ninguém. Nem a mim mesma. Silvia me pede que eu tenha fé. Me diz que tudo vai sair bem. Que um filho é uma bendição. Pura luz. É verdade. Não posso negar isso. Mas esta filha não era esperada e toda a angústia que sinto ela já deve ter incorporado no seu núcleo, no seu ADN, na sua essência. Sei que sente. Be sente tudo. A rejeição. E eu não quero trazer ao mundo um ser que foi rejeitado desde o primeiro instante de sua concepção. Então tens que ficar tranquila, Luz, me diz Silvia. Em paz. No fundo, veja. Tua essência é essa, a de ser mãe. Porque você fala desde sua essência de mãe. Jamais poderias machucar um filho seu. E desde aí deve tirar a força. Essa é você. Não. Eu sou muito mais que isso. Muito mais que mãe. Quero ser eu mesma, mulher, individua, habitante do mundo, livre. Mas não digo nada. Já quero ir embora. Não encontro consolação. Estou aqui para o que precisar, me diz ela, me abraçando, carinhosa. Sim, eu sei. Muito obrigada, Silvia. Saio do consultório. Pago. E digo para a secretaria que voltarei na próxima semana. Não sei se vou voltar na próxima semana. Volto para casa. Fico dando voltas sem saber o que fazer. De noite tomo um remédio para dormir. Não quero despertar de todas maneiras ao outro dia e o pesadelo estar aí, mais real que ontem. As crianças vão para o colégio. Eu vou para a academia. Levanto pesos. Por muito tempo. Essa é uma maneira de abortar, tinha escutado por aí. Levantar peso. Estou matando alguém. Até que eu canso. Eu canso de querer matar alguém. Eu tomo banho. Volto para casa. No trabalho hoje. Não quero ver ninguém. Escrevo para você. Digo que amo você. Falo que te perdi. Sei que perdi você. O que passou, meu amor. Não quero te contar por mensagem. Quando falemos por telefone, Cristián. Ou quando voltes da tua viagem. Não, você me diz. Conta agora. O que passou. Não tenho coragem. Franco me alertou: que não me passasse pela cabeça contar a Cristián nem a ninguém. Franco continua pensando que ninguém tem porque saber. Franco se enfurece: até quando vai ficar pelo mundo magoando as pessoas, Luz. Você vai causar uma dor desnecessária ao Cristián, só para você se sentir melhor, para se livrar da sua culpa. Você é egoísta. Deixa de pensar em você. Não, não é isso. Ou quem sabe sim. É que já não quero passar o problema para outro, para Francisco, para você. Quero andar pela vida sendo verdadeira, mas sem carregar essa verdade. Qual é minha verdade, droga. Quem sabe essa é a lição que Be quer entregar para nós. Franco termina me dizendo para fazer o que eu quiser. Não é meu problema. Claro que não é seu problema. Você é um estranho na minha vida. Como eu gostaria de voltar para o Cristián, para esse pedaço de história real. Para meu equilíbrio. Cristián me chama ao telefone. Diga para mim de uma vez por todas o que está acontecendo, meu amor. Não tenho forças. Algo muito terrível. Percebe. Me diz que não tenho nada que dizer para você, nada que explicar. Que isso era, no fundo, o que eu queria. Que nunca fechei esse capítulo com esse homem do passado, que finalmente me dei conta que ainda o amo. Que nunca deixei de amá-lo. Durante todos estes anos. Que nosso casamento não vale nada. Que por fim decidi. Que finalmente tenho claro meus sentimentos. Você nunca me amou, Luz. Franco sempre foi o homem da sua vida e continua sendo. Então, que eu faça minha vida com ele. Francisco vai desaparecer. Já não tem nada comigo. Não vai querer me incomodar mais. Não quer ser um obstáculo para a minha felicidade. Para a felicidade da minha nova família. Nunca mais. Já verá a forma de estar em contato com as crianças. Sem me ver. Espera, Cristián. Te peço, por favor. Não é isso. Então o que. O que mais você quer me dizer, Luz. E aparece toda inteira, Be. Te digo a verdade. Estou grávida. Mas no início você não entende que posso estar grávida de Franco e logo vejo a punhalada que estou te dando pelas costas. Cai no chão. Você sim que se dessangras. Se desarma em prantos. Não tem limite a dor. Por que. Por que você me fez isto. Por que você fez isso ao nosso amor. Ao nosso amor que era o mais sagrado, o mais puro. Eu também me desarmo. Apenas balbucio umas palavras ridículas de perdão. Sei que não tenho perdão. Te enganei. Fui infiel. Algo que nunca iríamos nos permitir. Havíamos jurado, Luz. E eu. Desliga o telefone em meio dos prantos e gritos. Me dá raiva que te desarmes, que você não me contenha, porque eu também estou sofrendo. Mas sei. Qual a contenção que eu mereço. Você é que não merecia essa canalhice. Mas eu fiz. Enganei você. Fui infiel. A dor da infidelidade é só comparável com a dor da morte, você tinha me dito uma vez. Sim sei. Mas não. Não registrei na minha consciência. Como se meus atos não tivessem consequências. Não dormi. Não dormimos por toda a noite. Treme. Você não tem forças para caminhar pela manhã. Chama sua terapeuta. Sim, é o melhor Cristián. Ela vai poder ajudar. Aconselhar. Aliviar. Depois me conta o que ela disse para você. Quem foi infiel sempre encontrará uma desculpa para justificar sua infidelidade. Que você não se dá o valor. Que uma ação desse tipo causa uma ruptura definitiva em quase todos os casais. Que a infidelidade é como a droga.
Uma vez que se prova não se pode deixar. Sei a raiva que você tem de mim. Tenho medo. Sei que você nunca vai me perdoar. Sei que esse rancor vai crescer dentro de você como um câncer. Você me diz que agora não devo me preocupar com isso. Que existe uma criatura no caminho. Um novo ser em gestação dentro de mim. Devo tentar transmitir para ele amor. Devo estar feliz por esta vida que começa. Mas não posso estar feliz, respondo para você. Não quero que comece outra vida dentro de mim. Muito menos se não é sua. Não podemos falar mais. Nem você nem eu. Desligamos. Então tenho uma ideia. Pesquiso na internet. Métodos abortivos naturais. Ervas abortivas. Se misturam 100 gramas de artemisa, 50 gr de arruda, 50 gr de sabina, 100 gr de hipericum e 30 gr de orégano em 3 litros de água. Se dissolve uma dose de diclofenaco de 75 gr. Se ingere. Logo de poucas horas virá uma hemorragia. Fico com medo da hemorragia. Procuro mais informações. Esta vez encontro uma alternativa química. A combinação mifpristona-misoprostor. Mas esses comprimidos não se vedem no Chile. É ilegal esse tipo de aborto. Qualquer aborto é ilegal neste país. Mas eu também tenho direito a vida, quero gritar. Volto para pensar no composto de ervas. Ligo para o Franco. Peço que compre as ervas e o diclofenaco na farmácia. Mas aos cinco minutos ligo novamente. O que você quer agora, me pergunta. Não continue, respondo. Eu continuei lendo. Existe risco de morte para a mulher ingerir essa mistura. Pode produzir envenenamento. Melhor, então, tomar veneno para ratos diretamente. Melhor jogar-se ao rio Mapocho, você me diz. E acaba de uma vez com tudo. Desligamos furiosos, com vontade de nos mandar cada um a merda. Me chama Luís, o ginecologista. Me dá o resultado dos exames que já sabia. A nova notícia é o tempo. Não tenho mais de vinte dias. E falo dos métodos naturais. Das ervas, dos remédios, das intervenções cirúrgicas finalmente. Não. Calma, Luz. Avisei você que devemos esperar. A natureza deverá fazer a sua parte. Não se precipite. Não faça uma ação da qual depois você poderá se arrepender. E quem sabe sem necessidade. Não, Luís. Não posso esperar. Me pede quatro dias. Bom. Concordo. Vou engolir a ansiedade por quatro dias. Vomitarei, não sei. Em quatro dias mais vejo você e toma sua decisão. Está bem. Obrigada. Me deito. O ventre treme. Outra vez está transformado em uma bola enorme. O que você quer me dizer, Be. Porque você não vai. Porque não procura outro lugar para nascer. Eu já com quatro filhos não dou conta. É sério. Porque você não vai para outro lugar. Eu não quero você. Me deixe. Me deixe livre. Tiro um cochilo. Somente por uns instantes. Tenho dormido pouco novamente. Não tenho vontade de me levantar, não tenho vontade de tomar banho, mas de todas maneiras vou até o banheiro. Me sento na vaso sanitário solto do banheiro. A tampa faz barulho e meus quadris se movem colocando minhas nádegas ao ar. Escuto sair minha urina estúpida. Me limpo. Olho o papel. Tem uma mancha grossa e vermelha no papel.
Jessica Atal