www.triplov.com
COMO CONVIVER COM UM HÍBRIDO NO CIBERESPAÇO?
José Augusto Mourão & Maria Estela Guedes

Trabalho realizado no âmbito do projecto "Naturalismo e conhecimento da herpetologia insular" - Protocolo de Cooperação Luso-Espanhola, FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia, Ministério da Ciência e Educação, Lisboa) e CSIC (Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid). Apresentado ao Congreso de la Associación Española de Semiótica, em La Rioja, 2002.

"I think, a really significant shift away from notions of unity, autonomy, individuality into notions of hybridity, mixtures, mongrelism, and it seems that the more radical elements of culture, they are trying to foment change within the culture, are adopting this idea of hybridity as a potent idea that can change some of the status quo" - Katherine Hayles


I - Hibridismo

O termo "híbrido”, em acepção biológica, remonta a Plínio, que o usou para designar o fruto do acasalamento entre a porca e o javali, dois animais do mesmo género de suínos. “Híbrido”, “raça”, “variedade”, “mulato” e “mestiço” estão correlacionados, correspondem ao mesmo fenómeno biológico.

Em grego, “hybris” significa excesso, exaltação, aquilo que ultrapassa os limites de um qualquer cânone. No discurso da sociologia actual, o termo “bricolage” tornou-se equivalente de hibridismo, o que não corresponde à acepção em que o usou François Jacob. De resto, não é imaginável em biologia uma planta que resulte da colagem de pedaços de outras. No híbrido vivo há alguns aspectos a considerar, antes de o transpormos como metáfora para o domínio literário: ele não é resultado de mistura nem colagem, sim de combinação de genes; sendo descendente de um cruzamento, o híbrido pode ou não ter descendência. O híbrido é puro por definição, diz Andrés Galera (comunicação pessoal): poderá o resultado da combinação dar a ideia de impureza, por não ser A nem B. Porém o facto de ser AB faz dele um novo tipo, original e puro. É que o hibridismo diz respeito aos fenómenos da reprodução dos seres vivos, não à infinita reprodução mecânica das imagens de que fala Walter Benjamin.

O híbrido é produto do cruzamento entre progenitores que pertencem a grupos taxonómicos diferentes, mas muito próximos. O milho híbrido, merecida coroa de glória da Genética nos princípios do séc. XX, por ter salvo da fome populações imensas, como a do México, não resulta de acasalamento entre plátanos e acácias, sim do cruzamento de diferentes espécies de milho. Um dos mais clássicos híbridos da literatura é a sereia, metade peixe e metade mulher. Não existem estes híbridos no mundo real, as sereias são fruto da imaginação de Homero, ainda não alcançadas pela experimentação científica.

A hibridação está de há longe enraizada na natureza e na história, mas o ritmo dos cruzamentos acelerou-se e o seu escopo alargou-se com as novas tecnologias aplicadas à genética. Também se fala de hibridação relativamente às organizações cyborgs e à economia, o que resulta de confusão de conceitos, pois não há qualquer similitude entre a hibridação biológica e a hibridação cultural. A inclusão no corpo humano de enxertos mecânicos como uma perna de pau ou uma placa dentária não gera um híbrido, a menos que os filhos de uma mulher com dentes postiços e de um homem com perna de pau nascessem com perna de pau e dentes postiços. De qualquer modo, se tal acontecesse, não estaríamos em presença de híbridos, sim da transmissão hereditária de caracteres adquiridos da teoria de Lamarck.

Um texto que não é prosa nem verso, sim resultado de mistura de prosa e verso, mantendo hoje ainda o seu estatuto de estrutura literária moderna, nenhuma relação apresenta com mulas, peixes dourados, nem com vacas que a biologia consegue que dêem muito mais litros de leite do que as inexistentes vacas selvagens.

No discurso cultural contemporâneo, os fenómenos híbridos estão associados às ideias de impureza, inautenticidade, colagem, monstruosidade. É assim muito fácil o discurso resvalar para o racismo, quando se entende o mulato como ser impuro ou, pior ainda, quando se conota a creoulização com monstruosidade. Ora o excesso e a transgressão representam dois vectores inalienáveis da arte, são o detonador de qualquer renovação. Na cultura antiga, os guardiães dos padrões dominantes repudiavam o hibridismo como infracção do cânone clássico, porém sobreviveram até hoje obras que transgrediram o cânone, como as de Homero e Apuleio, se porventura não sobrevive apenas aquilo que não é a letra morta desse mesmo cânone. Entende-se que o hibridismo só pode significar decadência, nunca inovação ou criatividade, esquecendo que todo o movimento de renovação cultural hibrida antigo e novo, exemplos do Renascimento e do Romantismo, e que nada de absolutamente novo existe debaixo do Sol - o novo tem sempre referências no passado. Deixa-se que interfira o conceito moral no híbrido, como a noção de pureza, quando nem o álcool absoluto é puro a 100%, e quando a História já nos deu provas dos extremos a que pode chegar essa aspiração à raça pura, com os genocídios nazis. Considera-se decadente o resultado da hibridação, quando ela é praticada por produzir animais e plantas mais fortes, maiores, mais resistentes, mais aptos a alimentar a população mundial, e quando em arte o decadentismo é uma estética como qualquer outra, quando não uma pose de artistas criadores de movimentos de enorme renovação, como é ainda o caso de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, cuja obra se mantém moderna há um século. Não há nada de decadente no híbrido em si, pelo contrário: o tabu do incesto prova que já em tempos remotos se sabia que o acasalamento entre parentes muito próximos levava à degeneração da descendência, e hoje é mais do que conhecido o facto de que a pujança de uma população se deve à troca de genes entre parceiros de populações bem diferentes.

Porém a decadência ocorre, ao fim de várias gerações, no seio de populações híbridas, quando se trata de raças puras, exactamente como na descendência de muitos casamentos humanos consanguíneos. A biotecnologia obtém justamente as raças puras – de cães, ovelhas, árvores de fruto, etc.. O que Hitler pretendia era eliminar as raças não arianas, ou seja, todas as que a ideologia nazi considera impuras. “Uma linha pura é constituída por indivíduos que têm o mesmo genótipo em relação ao carácter considerado”, diz Serra (1). Esses caracteres iguais em todos os indivíduos de uma população podem ser, por exemplo, cabelos louros, pele branca e olhos azuis. Há processos de criar raças puras que não passam pela hibridação, como diz Serra ainda, usando o termo clone em 1949: “Um outro processo de obtenção de genótipos iguais consiste na multiplicação assexuada, que dá origem a clones ou conjuntos de indivíduos derivados de um único...”(2) . Citamos esta fonte e não qualquer manual recente de Genética por dois motivos: José Antunes Serra era um geneticista português de grande prestígio, já falecido. Deu à estampa a sua obra em edição de autor, mais tarde reeditada em Inglaterra pela Academic Press. Intitulou-a “Moderna Genética”, o que é surpreendente: como é que em 1949 poderia ser tomado por antigo um tratado de Genética, para o autor se sentir na necessidade de explicitar a sua modernidade? Serra toma em consideração tudo o que no âmbito do seu trabalho já vinha de tempos antigos, talvez até anteriores a Mendel, no século XIX, embora não se chamasse “genética”, sim hereditariedade. As leis de Mendel decorrem das suas experiências de hibridação com ervilheiras.

As raças puras degeneram rapidamente e os produtos que fornecem perdem qualidade, sejam eles o leite, o mel, os cereais ou a lã. Por isso, ao fim de certo tempo, é necessário renovar os rebanhos de carneiros merinos ou qualquer outra cultura de raça pura.

A genética não é a especialidade de nenhum de nós, ambos de formação em Letras. Procurámos apenas chamar a atenção para o perigo que existe num discurso que considera impura, monstruosa e decadente a mestiçagem, por ser um discurso racista. É assim num contexto de grande confusão mental que o hibridismo, desde há algum tempo, vem sendo tema de destaque nos estudos culturais, sucedendo aos temas mais antigos do sincretismo na antropologia e da creoulização na linguística. Nos estudos culturais e literários post-coloniais, hibridismos, sincretismos, creoulizações, “métissage”, tornaram-se tropos comuns. "Hybridity is fast becoming a routine, almost trite point of reference in studies of global culture that speak of the 'mongrel world' and the 'hybridity factor" (Zachary, 2000) (3) .

II – O SITE DO HÍBRIDO

O TriploV", da nossa responsabilidade, de Magno Urbano e de Maria Alzira Brum Lemos é um site híbrido, no sentido de excesso e transgressão contido na palavra “hybris”, e também porque nele se pratica a escrita híbrida e apresentam géneros literários híbridos. É ainda um site de misturas, no qual se cruzam a religião com a magia, as ciências com as artes, as línguas com os falares, os discursos politicamente distintos, e no qual vamos praticando também algum experimentalismo em ciberarte.

O seu conteúdo mais alargado dá conta da descoberta de textos de naturalistas que declaram e insinuam que eles mesmos introduziram híbridos na natureza: deixar híbridos em liberdade na natureza viola a ética científica, podendo envolver fraudes. Vários livros e artigos, indexados em “As gralhas” (4), versam estes assuntos. Analisámos numerosos textos científicos, cujo maior interesse hermenêutico é a proliferação do erro. O erro tanto pode ser voluntário como involuntário; dois caminhos de exegese se abriram, forçando-nos a encará-lo como intencional. Este discurso científico que usa o erro como código é híbrido de vários modos, o principal deles sendo o recurso ao latim macarrónico ou escrita híbrida na nomenclatura - topónimos, antropónimos, nomes das espécies -, o que provoca de imediato uma colagem do signo ao referente, quando o erro incide nos nomes latinos das espécies vegetais e animais: a escrita híbrida refere assim espécies híbridas.

Como se comporta a ciência, em especial as ciências que outrora faziam parte da História Natural, face aos nossos trabalhos? Desde há alguns anos vimos denunciando a subversão e já acusámos de fraude o naturalismo (5). Por extraordinário que pareça, a ciência convive com eles no TriploV sem qualquer hostilidade, do mesmo modo que no site coabitam alquimistas, magos, maçons, portugueses, brasileiros, espanhóis, franceses, dominicanos e judeus. Uma voz discreta por vezes pronuncia o nome de Muhammad sem se esquecer de abençoar o seu nome, e o híbrido não desaparece debaixo dos seus instáveis caracteres.

Como se explica o facto? Provavelmente por a principal atracção e novidade do TriploV ser o seu hibridismo, e os cientistas sentirem prazer nisso, colaborando sempre que são convidados ou tomando eles essa iniciativa, como é o caso de A. M. Galopim de Carvalho, director do Museu de História Natural de Lisboa. Em poucos meses, o TriploV tornou-se um sucesso, apesar de não ser um site de fachada nem de transitoriedades sociais. O tráfego entra maioritariamente por pesquisa, não pela página index.html (6), e a web, que quase diariamente apresenta alguma novidade, vai acumulando conteúdos num depósito muito variado, que está a prestar apoio a investigadores e estudantes sobretudo universitários. Os directórios com maior tráfego são os de bibliografia científica, alquimia, o dossier “Ernesto de Sousa”, artista a quem o TriploV é dedicado, semiótica , crítica das ciências, literária e social, sociologia, geologia, paleontologia, teratologia, etc.. Ou seja, sem concessões à facilidade, o discurso do especialista está a fluir num meio de comunicação de massa, convocando cada vez mais leitores, pelos vistos ávidos do que se diz não existir na Internet – conteúdos – e do que se imagina perdido nos meandros da materialidade do nosso tempo – o desejo de Deus.

Será o TriploV, pelo seu hibridismo, poliglotia e multidisciplinaridade, um site impuro, decadente, monstruoso, sem capacidade criadora? Claro que não: é a mestiçagem de toda a sorte e a transgressão de algumas regras básicas da webpage que lhe conferem vigor e originalidade.

_________

NOTAS

(1) José Antunes Serra, "Moderna Genética - geral e fisiológica", Vol. I. Coimbra, 1949, edição do Autor, pág. 19.

(2) Idem, ibidem.

(3) Jan Nederveen Pieterse, "Hybridity, So What? The Anti-hybridity Backlash and the Riddles of Recognition", Theory Culture and Society, vol. 18, nº 2-3, 2001, p. 222.

(4) Maria Estela Guedes - As gralhas (conjunto de textos) : http://www.triplov.com/

(5) Maria Estela Guedes - Deus não é descartável. Comunicação ao Colóquio Internacional "A Criação", Instituto São Tomás de Aquino, Lisboa, 2001. Em linha: http://www.triplov.com/

(6) Maria Estela Guedes (2002) - Index.html : "Produção para Internet e Vídeo", de Magno Urbano: http://www.triplov.com/magno/.

(7) O directório individual com mais acessos é o livro de José Augusto Mourão, "Para uma Poética do Hipertexto - ficção interactiva" : http://www.triplov.com/hipert/