8. A HETERONÍMIA COMO UM SITEMA ABERTO
Temos vindo a reflectir sobre o "eu" poético, núcleo gerador de eus parciais , e também de futuros parciais. No fundo, em análise mais profunda, estamos também a falar de heterónimos.
Os "eus" heterónimos não são mais que desdobramentos do "eu poético" ORIGINAL, ou seja, MÁSCARAS DE UM "EU".
Mas que importância têm estas reflexões sobre o acto de escrever? Mais ainda, sobre o acto de escrever Poesia?
Se aceitarmos que ESCREVER é uma modalidade de se ser Outro, este acto implica , além do que já disse, abrir um rio de sinais através do quem sou e do que sinto , por onde passarei no Poema.
Quer dizer: ESCREVER É NECESSARIAMENTE OUTRAR-ME
E também, o Poema não é apenas o que o "eu poético" colocou nele.
É ainda o que quem o lê, vê ou ouve, - (O OUTRO) - aí encontra.
Quer dizer: como essencialidade os "eus" parciais, os "eus" construtores de Poesia, excedem sempre os limites da compreensão humana, sobretudo de quem os escreveu.
Eles permanecem com a face "visível" no mistério das coisas.
Escrever, nem que seja para o Nada, vale sempre a pena.
Avancemos só mais um pouco nestas reflexões.
Mas se o total dos "eus", no processo destes sucessivos desdobramentos heteronímicos, não é um Eu da mesma classe dos "eus parciais", que vivem no conjunto dos heterónimos, esse Eu não pode ser um heterónimo.
E não podendo ser um heterónimo, o que é? Será um não-heterónimo?
Será então o Ortónimo (supondo que este é um não- heterónimo)?
O que quero dizer é que o caminho dos desdobramentos do Eu é o que conduz inevitavelmente ao Conhecimento do Eu que escreve como futuro de si mesmo.
A heteronímia, parecendo um processo de divisão, não o é.
Bem pelo contrário, é um processo aberto de reintegração no Todo.
Ele contém dois movimentos: O primeiro: construção dos "eus parciais" : outragem.
O segundo: completamento pelo fecho do conjunto dos "eus parciais": unagem
EM SUMA:
É INEVITÁVEL A HETERONÍMIA PARA REALIZAR UMA CLASSE DE NÍVEL SUPERIOR À CLASSE DOS "EUS PARCIAIS".
O POETA É NA TOTALIDADE DOS EUS UM OUTRO EU.
Escrever ,nem que seja para o caixote do lixo, vale sempre a pena pois escrever é ser Outro.
E para fechar esta Comunicação gostaria de vos contar uma história do folclore Japonês, história adaptada por mim ao objectivo desta intervenção.
A CASA DOS MIL ESPELHOS (Folclore japonês)
Tempos atrás num distante e pequeno vilarejo, havia um lugar conhecido como a casa dos 1000 espelhos.
Um pequeno e feliz cãozinho soube deste lugar e decidiu visitá-la
Chegando lá, saltitou feliz escada acima até a entrada da casa.
Olhou através da porta de entrada com suas orelhinhas bem levantadas e a cauda balançando tão rapidamente quanto podia.
Para sua grande surpresa, deparou-se com outros 1000 pequenos e felizes cãezinhos, todos eles com suas caudas balançando tão rapidamente quanto a dele.
Abriu um enorme sorriso, e foi correspondido com 1000 enormes sorrisos.
Quando saiu da casa, pensou:
Que lugar maravilhoso! Voltarei sempre, um montão de vezes.
Neste mesmo vilarejo, um outro pequeno cãozinho, que não era tão feliz quanto o primeiro, decidiu visitar a casa. Escalou lentamente as escadas e olhou através da porta.
Quando viu 1000 olhares hostis de cães que o olhavam fixamente, rosnou e mostrou os dentes e ficou horrorizado ao ver 1000 cães rosnando e mostrando os dentes para ele.
Quando saiu, ele pensou, - Que estranho lugar é este, aqui.
Todos os rostos no mundo são espelhos.
Mas esta história não acaba aqui.
Falta agora reunir todas felicidades e infelicidades dos cãezinhos e olhar onde já não está o espelho. Falta reunir todos os pedaços do Espelho que já lá não estão.
E nessa reunião o que se descobre?
Que o Espelho era apenas um método de abordagem do Todo.
E o Todo, para além de todos os Poemas escritos é esse inefável mistério da Escrita, que todos os dias reinventamos, para sermos
maria azenha
2 de Fevereiro de - 2003
Lisboa
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