A ALMA AZUL DE MARIA AZENHA - MARIA ESTELA GUEDES

MARIA AZENHA
NOSSA SENHORA DE BURKA
Edição Alma Azul, Coimbra, 2002, 60 pp.

Maria Azenha, de quem no TriploV conhecemos poesia esotérica de raiz egípcia, acaba de publicar "Nossa Senhora de Burka", um conjunto de cinquenta e sete poemas. Distribuem-se por dois lados, como num velho disco de vinil: "Da guerra - lado A" e "Da morte - lado B". O livro remete para www.alma-azul.pt, lugar de edição - pouco importa que corresponda ou não a frase a um endereço de Internet, e pouco importa onde publicamos no ciberespaço, isto é, qual a natureza do suporte que em livro corresponde ao papel. Tal como em rádio ou televisão, "pomos no ar" os nossos trabalhos. Pessoalmente, costumo avisar alguns colaboradores do TriploV de que "já está no céu". O jornal da Tripla Aliança (Alô Música, Agulha e TriploV), que lhe leva por e-mail notícias dos três portais, chama-se Ser Espacial. É curioso notar que alguns leitores respondem, não a nós, editores humanos, sim ao próprio Ser Espacial: "Oi, Ser Espacial! Gostei de te ver, um abraço!" E já alguém perguntou: "Quem é o Ser Espacial"? Nós somos seres espaciais, eu vou ser espacial, mas antes de nós havia já outros seres espaciais, como os anjos, os ETs, e Mercúrio, mensageiro dos deuses... E mais, não é verdade? Quem costumamos pôr no Céu, ponto verticalmento oposto da zona ínfera, esta bem nas entranhas da terra?

Bicolor a capa de "Nossa Senhora de Burka", azul e amarela, é feita a partir do quadro "Alma Azul" de Miró, uma imagem do céu, com o ouro solar, o azul do firmamento e os círculos dos astros. O livro é no seu todo um objecto gráfico muito belo e é interessante a aliança intertextual estabelecida não só, neste caso, com outras artes - a pintura do quadro e a música dos lados A e B do disco -, como com outros livros, seja "A colher na boca", de Herberto Helder, seja com "Flores do Mal", de Baudelaire, ou com Fernando Pessoa, de quem aparecem fragmentos não referidos como citação, ou que aparecem como personagens interpeladas, no último caso. Também o aspecto gráfico dos poemas desliza do verso-frase para o verso-palavra, ou menos ainda, se há translineação, tendendo para um compromisso da literatura com a arte visual. Outros deslizamentos ocorrem entre a prosa e a poesia, ou mesmo entre o prosaico e o lírico, entre a oratória e a coloquialidade, entre o murmurado e o gritado, oposições entre o voo do espiritual e a atenção presa ao incidente doméstico, quotidiano. Deslizamento ainda, já implícito na informação de que Álvaro de Campo/Fernando Pessoa e outros heterónimos são interpelados como personagens, é o que vai da lírica para a narrativa.

A poesia narrativa implica toda a tradição dos romanceiros, mas no caso de Maria Azenha a fábula não é redonda, inteiramente popular ou mágica, há nela um corte muito nítido entre dois momentos da criação: o lugar de onde a autora parte, realista, e o lugar a onde chega, absurdo. De facto, há um anedotário no livro, que, originado na realidade, na sequência do discurso se lança no território do fantástico, como em "A Dona Alice teve um avc" ou "Não é nada":

o meu tio por exemplo
que já morreu e tinha por sinal
a alcunha de Poliban
enterrava todos os dias
um pedaço da minha tia
dentro do colchão

(isto é para disfarçar a palavra
que devia ser dita e não disse)

Que palavra devia ser dita e ficou no teclado? Eis um exercício de adivinhação, proposto ao leitor. Proposta de resposta: a palavra interdita é Taliban (Poliban).

É preciso que o leitor repare na repressão exercida sobre a mulher em geral, e não só nos países de islamismo intransigente. Aliás, é bom não confundir imposições sociais, políticas, ou mesmo falocêntricas, com religião. O Alcorão apenas preceitua que homens e mulheres devem vestir-se com modéstia, não exige que a mulher seja ocultada por detrás de um véu ou burka. Essa repressão também não se manifesta só em imposições suaves como a proibição de frequentar locais públicos como cafés: a violência exercida sobre a mulher existe no ocidente e assume formas variadas, como a do espancamento, com a agravante de tal prática ser aceite por muitos com alegações tão estúpidas como essa de que "Quanto mais me bates, mais gosto de ti".

O discurso pró-feminista é um dos temas maiores do livro, que se debate entre a liberdade de a palavra não se ocupar senão de si mesma e da sua aspiração ao azul, e o dever ético sentido por qualquer autor de a usar como instrumento de denúncia social, e por consequência de pôr a sua palavra ao serviço do bem comum. "Nossa Senhora de Burka" é um livro híbrido de todos os pontos de vista, e por isso aberto à experimentação por parte da autora, e à descoberta de outros recantos de sentido nele por parte do leitor.

Explicitamente inspirados pelo caso Bin Laden, ataque terrorista que derrubou as Twin Towers, em Nova Iorque, os poemas abrem-se a outro tipo de reflexão, que parte da grande para a pequena efemeridade (efémeras as torres e as casas das cidades, efémeras as páginas da Internet), do grande terrorismo para o pequeno (Bin Laden contracena com os vírus informáticos), do "grande tempo de terror" para o "pequeno barulho da guerra", da grande presença de Nossa Senhora de Burka, quando entra em nossa casa para sempre, para "o vazio das grandes ausências" - o da mãe, por exemplo. Em suma, uma poesia tecida com imagens posicionadas em pontos extremos, que de um lado evocam a Tábua de Esmeralda, com o preceito de que os opostos se igualam, de outro se contrabalançam, relativizando o acidente, o drama, o mundo material desta "minha vida terrena", em que abrir cartas é perigoso, podem esconder um pó mortífero, ainda que esse quotidiano das cartas profanas possa ser combatido pelas do Tarot.

E voltamos a www.alma-azul.pt, apenas para terminar com uma consideração que já vai sendo regular em quantos estão mais atentos às inquietações sociais: se houve uma tendência materialista a marcar a arte no século XX, se a intelligentzia na sua maior parte aceitou o dogma de Nietzsche segundo o qual Deus morreu, essa tendência está hoje ultrapassada. Entre as contradições do alto e do baixo, a arte debate-se, mas sem dúvida nenhuma, e o ciberespaço é bem um espaço que metaforicamente o reflecte no seu angelismo, ela esforça-se por recuperar o seu meio tradicional, que sempre foi o alto - o céu, o da alma, o da generosidade do espírito a dominar a volúpia da matéria.