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MARIA AZENHA

Alguns  e   outros  poemas  -  
“de amor ardem os bosques”

 

I

Pesei a minha melancolia e angústias:

uma tonelada cada uma,

o que significa que cada uma se prende e atrai de igual modo à Terra.

verifiquei no entanto que a quantidade de massa corpórea de que sou portadora

não me mortifica, e todos os meus livros não pesam mais de 20 quilos,

o equivalente a uma criança de dois anos de vida.

lembrei-me de aferir o peso de uma caneta que normalmente me escreve:

vinte e poucos gramas, pouco mais,

a mesma atracção que a Terra exerce sobre a minha colher de sobremesa.

inquietei-me , e fui pesar a Terra: a agulha não saiu do zero.

(a Terra não se atrai a si mesma.)

reiterando o procedimento quis conhecer o peso de deus :

verifiquei que eu e deus tínhamos pesos iguais.

II

Na neve primeira ofereci-lhe o sangue, na segunda e na terceira

o negro e o branco.

Nu, o pelicano, de peito amplo 

retira da sombra da noite

o rosário do manto.

III
alva morada

Queria semear-me nas algas da casa

num refúgio fundo

antecipar o meu cipreste de neve

sobre as raízes da terra,

para quando os relógios da floresta me viessem chamar

batendo à porta de minha alva morada

eu dissesse:

“ aqui já ninguém está”

IV
alquimia

Na cozinha dormem as minúsculas laranjas,

são quase duas horas da manhã.

O luar entrou pelos lírios da casa,

já lá estive perdida antes, e mais só.

A noite, uma página onde os ourives do sol

trabalham na mais completa escuridão.

Escondidos do tempo,

adiantam-se para as montanhas.

As suas vozes tornam-se cada vez mais amáveis e estranhas,

clamam da distância.

V

Respira a neve no encosto alvo da madrugada:

rosa branca de água no pedestal da montanha

naufrágio da prata ou de minúscula aranha

que nos cedros do coração vem, exacta,

quebrar a dália do mármore.

O vidro , reflectido  nas palavras do chão,

recomeça

buscando em cada superfície pombas de claridade

VI
Natureza quase morta

O José está ao telefone,

aos quarenta e dois anos

chora como um adolescente.

Pequenas palavras à mesa da cabeceira

rodopiam no espaço

dividido por lágrimas e uma floreira.

Tomou só três,

"não há que ter receio",

chora bem alto ao ritmo do vento .

Tão negra a luz , as mãos são espadas.

Flores, não as quer para nada.

Faço o ensaio de ser náufrago sem barco,

Sentada na cadeira do quarto

VII

Era este o verso que faltava

passada a chuva

sobre o teu corpo e o meu,

agora me alegra.

a neve colocou sobre a Terra

a última flor de açúcar

VIII

A mão treme sobre a flor,

dos rios dos dedos nasce a fonte de Outono

onde se afiam lápis de ouro.

As nuvens trabalham em seu duplo esplendor

para que a lua da neve regresse

ao seu trono

 

IX
um tempo para tudo

Escreve:

No alto da manhã

prepara-se o sol

para uma chávena de chá quente.
 

caderno e lírios surgem mais tarde

entra,

fecha a porta.

agora precisamos de paz

X

À luz da lâmpada do anfitrião da casa

o voto de silêncio é um pequeno lume.

Que dele se aproxime a boca sem palavras

e o coração cheio de vinho.

XI

Esta é a página onde o poema não se deu

onde o alfabeto e a tinta se encontram

onde não há nenhum poeta nem acontece o som

as vogais voam sem produzirem eco

abrem o corpo através do espaço aberto

uma nuvem tão terna um espelho tão doce

as crianças celebram-no esquecendo o seu nome

 

XII

O poema é feito de nossas próprias vértebras

disse-o Maiakowski

indicando onde começa a direcção da montanha

aguarda longas estações no decorrer do gelo

a meia distância do silêncio e das flores do sândalo

os brotos mais tenros

chegam com a luz da primavera

XIII

Faz tempo as algas tinham braços

e reflectiam as alas da água em flores marinhas

inebriadas em redor pelo fósforo dos peixes

direccionavam faróis para as gemas das ilhas

faz tempo cruzavam a eternidade as bagas e os corais

em voos desdobrados cúmplices dos lagos

e vinham dar à praia fadas e sereias em colmeias

fundeadas por âncoras e auroras límpidas

faz tempo os amantes vinham partindo e chegando na nave do dia

pelas rosas da tarde em dulcíssimos navios

e recolhiam a luz do silêncio imortal entre o centeio e o milho

faz tempo os humanos percorriam as pálpebras dos bosques

entre folhas de sol e abrigos de mel

e eram estrelas

ampliavam uma nova língua

se não fossem as algas que saberíamos da alegria?

XIV
objectos do meu vocabulário, eu vos destruo

porque uma lâmpada chorou,
disse mal da hora do dia
em que se substituiu à luz de uma estrela,
e uma chávena amaldiçoou o espaço escuro
ocupado por um prato de louça antigo,
uma porta se fechou
com a solidão do vento lá fora,
uma janela atormentada pelo tinteiro da neve
partiu-se em mil bocados no espelho da aurora.
objectos do meu vocabulário , desaparecei!,
eu vos destruo,
para que o poema não retorne ao seu naufrágio

XV
laboratório

Disse a neve:

“Eu nasci do pólen das nuvens

depois de uma noite inteira de labuta.

A minha balança é firme como uma cordilheira de cisnes.

O meu salário nasce da flor do lúmen do leite e do açúcar.

Nenhum deles foi feito por mim.

Em minhas oficinas de música

o osso e o pinguim são insígnias distintas.

Bem ou mal não tenho consciência da natureza humana.

Sou tão forte como o crânio do gelo que verte da geleira das montanhas.

Digo-vos:

o meu trabalho não é imaginar mundos nem ousar ter sonhos.

Nasço a cada instante do caos

dos lábios das criaturas

em seu jade imortal.”

 

Maria Azenha
2009, Dezembro, 21, Lisboa

Maria Azenha nasceu em Coimbra .
Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra .
Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa.
Exerceu actividade docente no Quadro de Nomeação Definitiva na Escola de Ensino Artístico António Arroio.
Escritora. Membro da Associação Portuguesa de Escritores (APE) .
Está representada em Antologias de Poesia:
.MADRUGADA 2,3 (Edição do Movimento de Escritores Novos 1982,1983);
.ANUÁRIOS DE POESIA 1,2 , 3 e 4 (Assírio & Alvim, 1984,1985,1986,1987);
.ÁGUA CLARA (Edições Património XXI, 1988);
.HORA IEDIATA (Hora Extrema) (Edições Átrio, 1989);
.100 ANOS(Federico Garcia Lorca), (Universitária Editora ,1998)
.VIOLA DELTA (Edições Mic, 14º Volume 1989);
.ANTOLOGIA de HOMENAGEM a CESÁRIO VERDE (Edições da Câmara Municipal de Oeiras, 1991);
.SIMBÓLICA 125 Anos (Ateneu Comercial do Porto, 1994).
.REVISTA DE ARTES E IDEIAS,nºs 4/5 (Alma Azul,2002)
.25 POEMAS NO FEMININO, (Edição da Junta de Freguesia da Penha de França,2001)
.GABRAVO,(Artdomus, S. Pedro de Sintra,2002)
.POVOS E POEMAS(Universitária editora,2003-edição bilingue)
.NA LIBERDADE,(Garça editora,2004) homenagem de poesia aos 30 anos do 25 de Abril
.ANTOLOGIA / PABLO NERUDA,( Universitária Editora, 2005)
. POEMA COLECTIVO “ O Fulgor da Língua”, projecto inserido nos eventos de COIMBRA, CAPITAL NACIONAL DA CULTURA.(2003/2004)