Aveia

MIGUEL BOIEIRO
Liga dos Amigos do Jardim Botânico de Lisboa


Como é sabido os pensamentos vão evoluindo por sucessivas associações de ideias em que umas vão puxando outras até se lobrigar algo de mais concreto. Vejam só como me chegou a intenção de teorizar sobre a aveia.

O meu velho amigo Manuel Xarepe fez-me chegar a “Gadanha”, suplemento do prestigiado Boletim Cultural dos Amigos de Extremoz, cujo principal artigo abordava o Dia da Espiga. Através duma repescagem histórica, Xarepe traçou o percurso desta popular tradição, com notável expressão no Alentejo. Sendo mero ato primaveril e simbólico destinado a augurar um ano fértil e farto de colheitas agrícolas, evoluiu a seguir para enquadramentos religiosos, primeiro do judaísmo e depois do cristianismo. Afinal este é fenómeno recorrente porque as religiões, para mais facilmente se ancorarem na sociedade, sempre se apropriaram das festividades pagãs que as antecederam. No calendário cristão esta celebração móvel está hoje associada à adoração da quinta-feira da Ascensão de Cristo. Restaram, no entanto, as reminiscências pagãs carregadas de simbolismo. Os crentes (e não crentes) iam aos campos e após alegre piquenique, colhiam a espiga de trigo, a que juntavam o raminho de oliveira, a papoila, a flor de margaça, o crisântemo coroado, a haste de bole-bole (poácea, cujo fruto parece um coraçãozinho) e o balanco (creio que não me esqueci de nenhum ingrediente). O raminho, assim composto, ficava guardado um ano para dar sorte e saúde, afastando as pestes e os vírus que teimavam (e teimam) em grassar na humanidade. Mas era a essa última gramínea chamada balanco que eu agora queria chegar.

O balanco faz parte de um grupo de mais de uma dúzia de aveias espontâneas que medram anualmente no nosso país, sendo consideradas, depreciativamente, ervas daninhas. Foram os balancos, Avena barbata e Avena sterilis que, por metamorfoses e adaptações milenares, ocasionaram a conhecida aveia que consumimos, designada cientificamente por Avena sativa. Ela é, pois, a protagonista da presente croniqueta.

A aveia é provida de caule cilíndrico, formado por vários entrenós, que por vezes chega a ultrapassar 1 metro de altura. As suas folhas são alternas, lineares e planas de um verde levemente azulado. Deita uma panícula com espigueta de 2 cm com inflorescências hermafroditas polinizadas pelo vento como acontece com todas as Poaceae. Os frutos são cariopses e a raiz é fasciculada e potente. Há cerca de 25 variedades cultivadas. A designação latina sativa, quer dizer isso mesmo, aveia cultivada. Dizem que a domesticação e cultivo desta útil praganosa se iniciaram na Europa central e setentrional há cerca de 4 500 anos.

Atualmente a maior parte da produção destina-se, quer o grão, quer a palha, à alimentação do gado, especialmente de equídeos mas, como vamos ver, a aveia constitui um dos mais salutares recursos da nutrição humana. Através dos grãos esmagados (flocos), das papas confecionadas com a respetiva farinha, da pastelaria e panificação associadas a outros farináceos, ou como espessante de sopas e preparação de bebidas (leite de aveia, cerveja), é vasto o leque de utilizações culinárias desta gramínea.

Principais constituintes: amido, fibras solúveis, hidratos de carbono, cálcio, ferro, magnésio, fósforo, potássio, zinco, vitaminas do complexo B (B1, B2, B3, B6, e B9) e K. Realce-se a existência de beta-glucano que é uma fibra viscosa e solúvel e a ausência de glúten, visto que a avenalina é a única proteína presente o que traz muitas vantagens para os celíacos.

Propriedades medicinais: tónica, fortificante, estimulante do sistema imunológico, antiespasmódica, emoliente, regeneradora celular, anti-inflamatória, tranquilizante, afrodisíaca. O farelo da aveia reduz o colesterol LDL, previne as doenças cardíacas e trata irritações cutâneas e eczemas.

O prestígio da aveia é amplamente demonstrado nas obras mais antigas de medicina natural. Tanto nos escritos medievais de Santa Hildegarda, como em “Plantas Mágicas” de Sédir e em “Botânica Oculta” do lendário Paracelso, são numerosas as mezinhas mencionadas contra reumatismos, hidropisia, chagas pútridas e sarna (deitar-se nu sobre um campo de aveia, esfregando-se a pele com um punhado de talos da mesmas planta, molhados em água da fonte. Deixar secar a pele debaixo de uma árvore e a sarna vai desaparecendo).

Oliveira Feijão, em “Medicina pelas Plantas”, recomenda, entre outras, uma decocção a partir do cozimento, durante 30 minutos, de 50 gramas de aveia num litro de água, como diurético e eficaz tratamento da gota, cálculos, retenção de urina, hidropisia, etc.

Também a homeopatia tem vários preparados a partir da aveia.

A cultura das várias subespécies de aveia, Avena spp, apresenta ainda algumas vantagens não despiciendas pela faculdade de dificultar a proliferação de plantas adventícias. Após a ceifa é dispensada a utilização de herbicidas. Ainda bem!

Posto isto, regressemos aos balancos, com que se iniciou esta croniqueta, apenas para recomendar mais respeito por estas plantas “daninhas” desprezíveis que crescem espontaneamente nos nossos campos. Quem sabe se um dia não teremos de aproveitar as suas pequenas sementes para confecionar imprescindíveis alimentos?


Maio de 2020.
Miguel Boieiro