MILTON REZENDE
AS CISMAS
Juiz de Fora. Rua Oswaldo Aranha
dirigindo-nos ao Bar Esperança
situado na confluência do sonho
juvenil de se fazer jornal literário
(“a arte vale o risco, e o risco é
inerente à arte”), dizia o slogan
estampado no editorial número
zero zero que foi até o quarto
e sucumbiu por falta de verbas
e de leitores.
antes tinha sido, mimeografado,
Espaço Aberto e finalmente
Contraponto, jornal de sindicato,
antes de naufragar entre egos
nas engrenagens coletivas.
éramos alguns ao redor de uma
mesa ou de um pensamento e nos
amávamos com receio. o passo
seguinte foi abrir a Editora e
Livraria Vértice que durante
cinco anos mudou três vezes
de lugar até o “the Dream is Over”.
Da Essencialidade da Água
AUTORRETRATO I
Eu não sou somente
este rosto jovem
sou também
este corpo magro
estes pulmões doentes
este ser descrente.
Eu não sou somente
estas cicatrizes
na testa braço e perna
sou também
e principalmente
a lembrança delas.
Eu não sou somente
este sorriso
e estes olhos míopes
minha gente
sou também
humano e tenho
(como vocês)
cáries nos dentes.
Eu não sou somente
este sexo masculino
sou também
os momentos de carinho
e a ausência deles
quando se utiliza
o recurso das mãos
e da mente.
Eu não sou somente
o que como e o que bebo
sou também
o que excreto no banheiro.
Eu não sou somente
um amontoado de órgãos
sou também
a função de cada um deles
isoladamente.
Eu não sou somente
as palavras e os atos
sou também
(e antes)
os gestos que os/as
determinaram.
Eu não sou somente
o caminhar e o seu contrário
sou também
o percurso no escuro.
Eu não sou somente
poeta
seus estetas
sou também
funcionário público.
O Acaso das Manhãs
AUTORRETRATO II
Eu sou aquele
que teve que vender
a alma ao diabo
para se ver publicado.
Eu sou aquele
que teve que vomitar
o próprio sangue
para se fazer aceitável.
Eu sou aquele
que teve que buscar
entre os malditos
um convívio possível.
Eu sou aquele
que teve que sufocar
o hálito rebelde
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que invocar
o sarcasmo irônico
para se vingar dos homens.
Eu sou aquele
que se vestiu de palhaço
e depois do espetáculo
matou toda a plateia.
Eu sou aquele
que amou sozinho
a impossibilidade
do amor compartilhado.
Eu sou aquele
que engoliu todos os sapos
e os digeriu com álcool.
Eu sou aquele
Fausto egocêntrico de Goethe
que mesmo vendendo a alma ao sucesso
ainda assim morreu inédito.
O Acaso das Manhãs
AUTORRETRATO III
Eu não sou apenas
este rosto envelhecendo
sou também
aquele corpo ainda magro
mas com os pulmões já curados
e um pouco menos descrente.
Eu não sou apenas
aquelas velhas cicatrizes
numa epiderme manchada
sou também
(ainda e sempre)
as circunstâncias
daquele passado.
Eu não sou apenas
aquele sorriso juvenil
disfarçado em lentes
de óculos para miopia
minha gente
sou também
a alegria mais escondida
e um grau bem diminuído
da acuidade visual, e quanto
às cáries que vocês tinham
eu não sei,
mas as minhas
eu obturei.
Eu não sou apenas
este sexo masculino
sou também
aquele menino que imaginou
culminâncias de carinho
e acabou meio sozinho
entre hiatos e ausências
tendo que recorrer às vezes
ao antigo método.
Eu não sou apenas
aquilo que comi e que bebi
ao longo desse muito tempo
sou também
os excessos, a parte excretada
e as consequências atuais
dos hábitos continuados.
Eu não sou apenas
aquele amontoado de órgãos
sou também
as cirurgias que tive de fazer
em alguns deles
isoladamente.
Eu não sou apenas
aquelas palavras e atos
e gestos da juventude
sou também
(e depois de tudo)
as circunstâncias
advindas.
Eu não sou apenas
as caminhadas e as pausas
que fazemos para avaliar
sou também
os descaminhos, os equívocos
e o mesmo percurso no escuro
(nisso eu não mudei nada).
Eu não sou apenas
funcionário público
seus merdas
sou também poeta.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
AUTORRETRATO IV
Eu sou aquele
que teve que recolher
o corpo da multidão sorridente
para não ser pisoteado por suas botas.
Eu sou aquele
que teve que lamber
as próprias feridas
para poder seguir em frente.
Eu sou aquele
que teve que enfrentar
o convívio cotidiano com a morte
por não ser adaptável às normas.
Eu sou aquele
que teve que se libertar
da imaginação literária
para poder sobreviver.
Eu sou aquele
que teve que aturar
um sorriso sardônico
no ambiente de trabalho.
Eu sou aquele
que se escondeu do palco
bem na hora da apresentação
por não saber representar.
Eu sou aquele
que viveu pelo caminho
com a consciência embotada
em consequência das pancadas.
Eu sou aquele
que digeriu todos os sapos
na falta de melhor cardápio.
Eu sou aquele
fantasma embolorado do armário
que mesmo revestido das melhores intenções
ainda assim foi recusado.
O Jardim Simultâneo
AVALIAÇÃO NOTURNA
Este pedaço de céu
que me foi permitido entrever
entre os edifícios,
assemelha-se a uma parte de mim
que ainda se resguarda
para nada.
Areia (À Fragmentação da Pedra)
AVES NO DICIONÁRIO
galo
faisão
perdiz
pomba
avestruz
abertada
grou
garça
perna-de-pau
pássaros-mosca
ave-do-paraíso
rouxinol
pega
pardal
toutinegra
abelharuco
martim-pescador
andorinha
gaivota
pato
pelicano
pinguim
cisne
coruja
águia
abutre
cacatua
arara
tucano
inambu
rola
sabiá-branco
alegrinho
coruja-do-campo
coleirinho
bem-te-vi
anu
tangará
galinhola
gavião
joão-de-barro
curiango-tesoura
beija-flor
pica-pau
lavadeira
tico-tico
mocho-orelhudo
irerê
colibri-abelha
e os 28g de peso
deste último,
semelhante
ao peso que
perdemos
no ato de
morrer.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
AZ-2
Vozes inaudíveis
golpeiam meu silêncio
de bicho entocado.
Sou perseguido por fantasmas
(desdobramentos de mim)
e os apascento
em precária unidade.
Sei da existência sem vida
e dos hálitos fétidos da morte
que povoam a noite dos túmulos.
Meu corpo é um mapa
onde se cruzam
os mais diversos caminhos
da imaginação fantástica.
Tenho todos os demônios
empalhados no quarto
e cada dia escolho um
para sustentar os pesadelos.
E sobre os meus despojos
carcomidos pelo tempo
e pelas mortes diárias
que impus a mim mesmo,
nascerá uma flor infernal
para devorar todos os homens.
O Acaso das Manhãs
BALADA DAS DUAS MULHERES NA PRAÇA (*)
Gostaria de saber
quem são aquelas
mulheres da capa
do livro dos Aflitos.(*)
Quem sabe assim
eu pudesse, voltando
ao passado e aos
costumes antigos,
dar a volta no sentido
contrário aos das moças
e perguntar-lhes:
“Quer voltar?”.
E aí, se fosse aceito o pedido,
eu estaria abrigado sob as
saias e a proteção do grande
guarda-chuvas de uma delas,
a do canto.
Uma Escada que Deságua no Silêncio
(*) refiro-me à capa do livro “De São Sebastião dos Aflitos a Ervália – Uma Introdução”, de minha autoria.
BALADA DO HOMEM INVISÍVEL
Tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
Estar invisível
é ir-se apagando
aos olhos dos outros.
Ser uma memória
antiga que ninguém
se lembra mais.
Viver num quarto
menor e anexo
ao quintal vazio.
As pessoas jovens
o sinaleiro verde
e sua janela fechada.
No meio da conversa
dizer algo singelo
que ninguém percebe.
Não ser convidado
para nada porque
o seu lugar não existe.
Tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
Talvez fosse cedo
mas tive um derrame
e deixei derramar
a caneca de café.
Da Essencialidade da Água
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www.miltoncarlosrezende.com.br