ANTÍMIO DAMIÃO
Após carradas de mensagens trocadas, a editora, sediada nos limites da cidade, telefonou a avisar que a publicação do livro estaria para breve. O escritor, como é óbvio, recebeu a notícia com agrado e entusiasmo, e agradeceu aos céus o fim do demorado processo. Finalmente, pensou ele, deixaria de ser o autor obstinado dos últimos tempos e voltaria a ser o sujeito pacato e cordial que sempre fora. Desligou o telefone e, recordando os anos de vida e a avultada maquia dedicados à sua obra, verteu uma sentida lágrima. O suplício do reconhecimento literário terminava naquele preciso instante. Vestiu apressadamente o casaco, pegou nas chaves de casa e do carro, e saiu. Desceu as escadas do velho prédio onde vivia havia para mais de dez anos e, uma vez na rua, meteu-se no carro, pisou o acelerador e arrancou a toda a velocidade. O mundo em redor parecia agora mais vivo e real; a luz do Sol reflectia-se nas águas do rio como prata ondulante; os passantes tinham destinos de ventura nas andanças da vida.
Passado um tempo, chegou à editora à hora marcada e subiu de elevador até ao andar respectivo. O edifício, pérola arquitectónica do anterior regime político de má memória, tresandava a mofo, couro velho e madeira podre. Tocou à campainha da porta e uma jovem mulher de óculos de aro negro, franja pelos olhos e vestimenta exótica, veio abrir.
“Entre”, disse ela, e, sem olhar para ele, voltou costas e foi sentar-se à secretária, onde teclou algo breve ao computador.
A seguir, convidou-o a sentar-se no sofá ao pé da porta, pegou no telefone e, sorrindo, informou a editora de que o escritor havia chegado. Ele sorriu de volta, à laia de agradecimento, mas a mulher, por sua vez, trocou a simpatia mostrada ao telefone pela atitude glacial de antes. Fitando-o por instantes, virou de novo o rosto e pôs-se a teclar. O escritor, aborrecido com o comportamento da mulher, resolveu ignorá-la e passeou o olhar pelas menções honrosas e pelos prémios literários que, emoldurados, guarneciam, aqui e acolá, as paredes da divisão. Embora admitisse não estar a par do trabalho de todos os escritores que ali figuravam, ousou, ainda assim, imaginar-se um dia a fazer parte daquele laureado panteão de autores.
Minutos depois, surgiu a editora – mulher vistosa e bem conservada nos seus quarenta e poucos anos, de cabelo longo e negro, porte encorpado e empresária de reputado gabarito – que, ao contrário da jovem assistente, logo o cumprimentou com apurada diplomacia. Não obstante a polidez, os seus gestos, se bem que femininos, pareciam dotados de uma estranha insolência, como se por detrás do profissionalismo apresentado escondesse uma rudeza de longe contrária à conduta de uma empresária e, sobretudo, de uma mulher.
A reunião teve lugar no gabinete da editora, onde muito se debateu e ralhou, pois, apuradas as linhas contratuais e a percentagem de dinheiro das vendas que caberia a ambas as partes, a capa do livro, escolhida pela editora, não agradou de todo ao escritor. Por tal razão, este desatou a protestar através de uma diatribe infantil e nada habitual nele. A editora, cansada de o ouvir, fez orelhas moucas enquanto revia as provas finais de um livro que, entretanto, lhe chegara às mãos por intermédio da assistente. Por fim, finda a obstinada arrelia do escritor, a editora, adoptando para o efeito uma conspícua seriedade, ajeitou com esmero o cabelo negro e, de costas hirtas, mandou-o à fava e a outra editora caso as decisões dela não o agradassem, uma vez que, explicou ela, em causa estava a linha gráfica das publicações, algo que, obviamente, não se alteraria expressa nem propositadamente de modo a satisfazer o capricho estético de um autor principiante. O escritor, indeciso entre a sinceridade de uma resposta pronta ou o silêncio obediente, elegeu, como se entende, a segunda opção, a fim de obter com isso uma boa vantagem no negócio em curso. Por fim, ainda que a capa não traduzisse a essência da obra escrita, acabou por aceitar os critérios legais e estéticos de publicação propostos pela editora. De qualquer das formas, pensou ele, o conteúdo literário da sua obra-mestra superaria em muito a feiura da capa. Um firme aperto de mãos e as rubricas de ambos no final do contrato ditaram o fim da reunião.
Passada uma semana, o livro enfeitava quiosques e livrarias, disposto com pompa e circunstância em numerosos acervos nos escaparates, o seu preço estampado a vermelho e em letras graúdas nos cartazes promocionais. Segundo dados de um estudo de mercado encomendado pela editora, as vendas prometiam números auspiciosos, embora a capa continuasse a aborrecer o autor.
Certo dia, após uma das muitas sessões de apresentação do livro – tida numa ampla sala com uma tribuna superior a toda a volta e presenciada por seis velhas ensonadas, uma mulher fazendo tricô, três curiosos de passagem, um par de académicos e um senhor com um caniche – o escritor foi passear até às docas da cidade. Aí, num estaleiro ao acaso, descobriu páginas e páginas do seu livro embrulhando o peixe fresco e acabado de sair da lota. Pela cabeça lhe passaram as mais sórdidas suspeitas, os mais vis pensamentos e o diabo a quatro. Era a visão perfeita do Inferno: os seus ditos memoráveis em páginas de um branco acetinado a acondicionarem as escamas e o olhar sem vida do peixe fresco; quilos e quilos de guelras e barbatanas misturadas com frases magníficas da verve de um Proust.
O escritor rondou o estaleiro como um felino à cata de presa e foi perguntar a um grupo de robustos e barbudos pescadores onde tinham encontrado, em tão grande quantidade, o papel de embrulho que, ao que parece, muito lhes agradava. A resposta, rude e concisa, não se fez esperar:
“No último armazém do cais”, disseram eles, em uníssono.
O escritor, instruído pelas direcções dos pescadores, foi a pé até lá. Palmilhava o molhe de um velho estaleiro quando deparou com dois números garrafais por cima do portão de um grande hangar composto de tijolos escurecidos, telhado de chaparia, duas filas de janelas subidas e outros três portões de correr metálicos. Ao chegar, bateu ao portão principal e aguardou. Um homem encorpado, alto, de aspecto rústico, barba de três dias e olhos doces, içou o portão de correr, que chiou ao subir.
“Em que posso ajudá-lo?”, perguntou ele, com voz grossa.
“Dá-me licença que entre?”, pediu o escritor.
“Depende”, disse o homem.
“Preciso urgentemente de ver uma coisa”, volveu o escritor.
“Ah, sim?”, disse o homem, sorrindo.
“Caso não saiba, sou autor do que guarda aí dentro.”
O sorriso do homem dissipou-se.
“Perdão?”
“Eu sou o autor do livro que os pescadores aqui vêm buscar para embrulhar o peixe.”
O homem, de ar incrédulo e um tanto clemente, posicionou-se de viés e deixou-o entrar. O escritor, não se fazendo rogado, irrompeu sem pedir licença pelo armazém adentro e, uma vez aí, não quis acreditar no que os seus olhos viram: pilhas e pilhas de livros distribuíam-se na mais pura e anárquica desordem como se ali tivessem sido descarregados à toa, sem dó nem piedade. Aliás, não eram apenas livros mas anos de trabalho e dedicação que ali jaziam à mercê do pó e do esquecimento, ao monte e à bruta, acumulados como que numa lixeira. Seria este, afinal, o destino das obras da editora ou um mero excedente de publicações? Fosse como fosse, só o seu livro se amontoava ali, a perder de vista. Como tal, não tardou a que o seu espanto se convertesse em fúria.
“Pode-me explicar a razão disto tudo?”, alvitrou, de dedo em riste.
O homem baixou o portão e, indeciso entre o raspanete ou o riso, perguntou:
“Disto?”
“Sim, isto!”, instou o escritor, apontando a toda a volta.
O homem aproximou-se do escritor e, em frente deste, ensombrou-o com o seu porte altivo.
“O senhor sente-se bem?”
“Não podia estar melhor. Onde está o gerente? Quero falar com ele agora mesmo!”, despachou o escritor, mais histérico do que nunca.
“Tem-lo à sua frente”, revelou o homem.
“Você é o gerente?”
“Vê mais alguém aqui?”
“Muito bem, se assim é, gostaria de saber o porquê desta pouca-vergonha.”
O gerente encolheu os ombros e, de modo teatral, abriu as mãos em guisa de ignorante.
“Qual pouca-vergonha?”
“Esta!”, instou o escritor, apontando novamente para as pilhas. “Na verdade, pouco me importaria este ultraje se os livros não fossem da minha autoria!”
“Foi você que escreveu isto?”
“Exactamente.”
“Bom papel, sabe? O melhor para embrulhar peixe”, afirmou o gerente.
O escritor, acometido de um desencanto inqualificável, emudeceu. De resto, para além de parte de si mesmo, senão a parte mais significativa do seu espírito obreiro, repousar naquele purgatório de tijoleira com cheiro a peixaria, havia sempre a hipótese de ir queixar-se à editora, porém, sabia bem que tal não lhe adiantaria nada, pois, de uma forma ou doutra, a editora tinha a faca e o queijo na mão. Além do mais, quem era ele ou qual a sua verdadeira importância no mercado literário? Bem vistas as coisas, era apenas um simples estreante, uma fatuidade efémera na arte das letras e da escrita criativa, um autor que nem chegava a ser uma nota de rodapé nos anais da Literatura. Olhou desesperadamente em volta como se à procura de um qualquer ponto de referência ou de conforto que, diga-se de passagem, não encontrou. A seguir, encaminhou-se desamparadamente para uma plataforma de aço de meio metro de altura, junto à parede, e nela se sentou. Ao lado havia um enorme sifão cujas águas corriam ruidosamente e de vez em quando pelos canos enferrujados, que, como os tentáculos de um polvo, contornavam as paredes do pavilhão. O escritor vergou lentamente as costas e, de braços cruzados sobre os joelhos, pousou neles a cabeça e começou a chorar. O gerente, apiedado, acudiu-o entregando-lhe um lenço de pano, com o qual o escritor limpou as lágrimas. Do mesmo modo, o gerente, sem saber ao certo o que fazer, afagou-lhe os ombros como um pai dedicado a um filho pródigo que se arrependia das suas acções passadas. Na verdade, disse o gerente, seria pior se o escritor não tivesse escrito nem publicado nada. De facto, acrescentou, havia motivos de sobra para que o escritor se vangloriasse, dado que, no fim de contas, estava vivo e as vendas da primeira edição iam de vento em popa, assim como a quantidade de livros que ali se armazenava era prova inequívoca de que a primeira edição se esgotaria em breve. Mais ainda: a saúde não lhe faltava e estava um lindo dia de sol, por isso, faria melhor se se alegrasse e aceitasse as coisas tal como eram em vez de estar para ali a lamentar-se.
O gerente tinha razão, pensou o escritor levantando lentamente a cabeça e arregalando os olhos em redentora expressão de fascínio como se a Divindade se lhe tivesse aparecido adiante. Com efeito, a percentagem monetária que lhe caberia poria fim à sua vida caótica e miserável, e, acima de tudo, facilitar-lhe-ia o merecido descanso que ele tanto precisava. Nisso, foi agarrado repentina e inadvertidamente pelo gerente, que, com uma força descomunal, o ergueu no ar pelas axilas e pelas pernas. O escritor, aflito e indefeso nos braços do gerente, berrou e esperneou sobremaneira, ordenando-lhe para que o pusesse imediatamente no chão.
“Esteja calado”, ordenou o gerente, e atirou-o com desembaraço e relativa facilidade para cima de uma pilha de livros.
O escritor, furibundo, gritou até não poder mais. Nunca fora tratado de modo tão reles e insolente, vociferou. Não se contendo, mandou um salto acrobático por forma a deslizar pela pilha abaixo, porém, sem querer, tropeçou numa lombada e foi estatelar-se na plataforma de aço mais adiante, embatendo aparatosamente com o nariz no sifão. O sangue jorrou-lhe em abundância das narinas e, ao mesmo tempo, uma descarga de água percorreu ruidosamente os canos.
“É o fim”, proferiu, desgostoso.
“Ainda não”, disse o gerente.
E, agarrando-lhe o pescoço, rodou-lho violentamente. O corpo do escritor caiu desamparado no chão, qual peso lasso e já sem vida. O gerente, então, arrastando-o pelo braço, estacou no centro do armazém e atirou o escritor para o topo da pilha mais alta.
“Com sorte, o tempo resgatá-lo-á”, disse ele, afastando-se a assobiar.
ANTÍMIO DAMIÃO
Autor / Designer Gráfico / Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa