Auspícios de Verão

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS


1.

Desarranjo

 

Doem-me as vísceras. Assim, num sentido que bem posso dizer, visceral, apodreço. Sempre fui daqueles ingénuos que acreditavam que o pensamento era tudo. Agora, sei que não. Sei que isso é uma vã ilusão porque posso senti-lo. A dor é grande e todos os dias piora e já há algum tempo que não penso em nada senão nesta dor. Vivo com ela, almoço com ela, passeio-me nela e com ela, respiro-a. É o alfa e ómega do meu cuidado, sentido pulsante das coisas do mundo e do espaço de mim, a pequena esfera em que só eu habito, eu que sou de hábitos recatados e longe dos outros. Assim o dita a minha desconfiança e misantropia, e se tenho de viver a sós comigo e comigo está sempre esta dor, posso dizer, sem medo de engano ou exagero, que ela é a minha única amiga, a parceira fiel de todas as horas do dia, amalgamada nos sonhos, se sonhos ainda tenho, e presidindo ao pesadelo, afinal, o ímpeto geral da minha existência. Não fora a dor, tão dolorosa, como forçosamente o é, e até vós concordaríeis que não poderia desejar melhor companhia, sempre fiel, sempre constante, sempre igual a si própria e tão certa como a noite se segue ao dia ou regular como a horológica perfeição do tic-tac do relógio. E assim é sem surpresa que vou vivendo o quotidiano, excepto pelas ínfimas variações dela que aprendi a detectar à força de a sentir e a prever como efeito de a tentar compreender. Até nos raros momentos em que ela me dá um pouco de trégua não consigo pensar noutra coisa a não ser na podridão geral que, mais tarde ou mais cedo, chegará a todos. Mesmo naqueles jovens que agora são prodígios de energia e vigor, plenos de actividade, iniciativa e coragem, nada lhes dói, nada lhes atrapalha o movimento livre, andam por todo o lado, folgando, no seu estrepitoso e despreocupado existir, eximidos a este peso de apascentar uma dor constante, exigente, teimosa, vivaz de caprichos, que me deixa insone e exausto, tira o apetite e a vontade sequer do mais breve passeio, é prostração contínua, pensamento único, intermediação universal com o mundo, porque para chegar às coisas, ainda que banais e corriqueiras, há que passar por ela, brilhante na sua nitidez de dor, como uma luz. Não, esses jovens não sabem o que é este cansaço, este exaurimento, este perene padecer e, constante, penso neles, nesta dor, no mal de ter nascido. E na brevidade da vida.

2.

Olhos de Lince

 

Vã é a ciência pois tudo é podridão. Presente ou que espera porque declarada ou abscôndita, como um abscesso silencioso que, lentamente, irá ulcerar, ninguém escapa à decadência.

Ele, que nunca foi estúpido, antes pelo contrário, que sempre exerceu, para mal dos seus pecados, uma lucidez de lâmina, sabia disso. Por isso, nunca se considerou um niilista, mas sempre, um realista que só vivendo excessivamente numa esbórnia, medida com a exactidão de um maníaco, podia exorcizar a angústia transbordante de ver diante dos olhos a imagem maligna de uma universal corrupção. Era, na realidade, uma festa triste. Quanto mais envidava pelo excesso mais o vazio, o oco de tudo, o chamava. Se via a vida vazia e como um sofrimento isso era tão nítido que o encandeava, uma grande luz que tolda o discernimento pela força de se fazer presente. Pois bem, era uma lucidez irracional, transformava-o num paradoxo de carne, em carne viva, à flor da pele e, nas profundezas do corpo, num mártir sibarita do seu próprio consolo urgente. Por isso, só por isso, passava semanas seguidas em pura festa, sem paragens, sem interrupções, um dia fundindo-se no seguinte numa cadeia inquebrável, alucinada e espúria. Só Deus sabe como o corpo aguentava tamanho abuso. Mas a verdade é que o apetite voraz acompanhava a copiosa bebida, a aptidão para a dança não ficava atrás da prodigalidade do faro para as situações extremas, a energia frenética não soçobrava nem pela necessidade de dormir. Sim, porque era urgentíssimo não só o furor da alienação como a obtenção dos meios para a praticar. Pois não se admitia, sob pena de queda imediata nos abismos de desespero que para si engendrou, um momento de pausa, o mais breve instante de reflexão, a oportunidade, ainda que fugaz, de um lampejo de consciência por onde logo poderia entrar o enxurro dessas evidências malsãs que o consumiriam se ele as deixasse.

3.

Sabbath

 

O grande Bode louvávamos sem pensar no amanhã. Sem temer a escuridão, nem as encruzilhadas, nem a tempestade, nem a peste, nem o fio da gadanha. Era secreta essa vida? Apenas sub rosa conseguíamos comunicar entre nós. Por olhares oblíquos, por sinais arcanos, por subtis insinuações entretecidas com aquela paz quotidiana que torna os assuntos proibidos tão inocentes como a alvorada. O reconhecimento mútuo não era fácil, mas não impossível. Trata-se de assunto delicado, a exigir delicadeza e cuidado, alguma intuição e bom-senso, não é conveniente, por motivos óbvios, anunciar às claras, a qualquer um, de qualquer maneira, quem somos. Um breve diálogo, insinuando aqui e ali, algumas palavras cifradas, gestos pueris, em aparência banais, mas carregados daquela intenção que transcende o mero intuito quotidiano para chegar à profundidade do reconhecimento de uma irmandade espiritual e funda. Há, no entanto, que ter cuidado, andam no nosso encalço, nem sempre o que é secreto permanece desconhecido e alguns impostores usam destes mesmos estratagemas para nos caçarem, e são tão habilidosos quanto tenazes. A sua perfídia persecutória só é comparável à sua manha, pois também eles intuem que não é o que se diz, mas uma infinidade de pequenas entoações, um pormenor insignificante que pode ser a cifra do mistério e por isso, não sabendo de ciência certa a linguagem exacta do nosso código podem, por aproximação, dar a entender que o conhecem tão bem que se permitem certas variações o que só aumenta a veracidade do embuste. São os riscos que corremos, é difícil o caminho que escolhemos, talvez as recompensas o justifiquem, talvez a curiosidade pelo saber arcano o exijam ou, tão-só, seja a vontade de se ser insubmisso aos poderes espirituais que nos dirigem, que nos reprimem, que nos sufocam, que impõem uma verdade que urge rejeitar pois não sobreviva uma lei que não seja analisada criticamente por cada um, segundo o seu arbítrio, os ditames da sua razão e a força de uma convicção pura e limpa, ainda que tenha de recorrer-se às pulsões negras do cosmo para se chegar à verdade, essa a promessa da nossa caprina divindade, inverso Deus de força escura, que nega, nega sempre até poder afirmar, por fim, a justa medida do mundo. Ainda assim, mantínhamos diálogo incessante, intensos conciliábulos de um saber à margem e antigo, tão antigo que ninguém sabe de onde veio. Ah, mas ainda assim, absolutamente eficaz. Que ninguém duvide do nosso poder, da vontade férrea que dirige o mundo, as coisas naturais e praeternaturais, das esferas sub e supra lunares, que inauguram o dia e a noite, o trânsito das tempestades, o cantar do galo, as marés, por vezes, a hecatombe. Mas essa supervisão das coisa só funciona se for abscôndita e secreta, operada na mais estrita penumbra, pois se todos conhecessem as arquitraves do mundo nada poderia ser feito porque ninguém se iria entender ou sequer saber como usar tal desmesurada potência.

4.

O Pêndulo

 

Outrora, a perfeição na figura, alto e esbelto e atlético e forte, capaz de resistir à tormenta, de sorrir com a dentição luminosa de um espécime solar. É sabido que nada dura. A decadência chega a todos, mas no seu caso a queda foi uma corrupção da vontade, um demorado decair a partir do momento em que aquela aura fresca e sadia se começou a desvanecer. Mas não foi logo. Não foi depressa. Foi uma lenta e finíssima fissura que despontou no mais íntimo e profundo e que foi alastrando, crescendo, alargando-se, transformando-se em atravessado abismo que, a seu tempo, usurpou a matriz, se fez detentora mesma daquilo que se poderia designar pela essência do seu ser a ponto de o contaminar por completo. Agora, é figura de decadência, com a cerviz quase a rasar o solo, descuidado, frenético de impotência, irascível na frustração, é completamente desdentado, a boca uma caverna espumosa de impropérios contra o Sol, o mundo e os homens. Não já, também, aquela luminosidade pujante, apenas, a penumbra de quem está a cair, uma sombra, é hoje um vislumbre ao habitar um tugúrio de onde mal sai, arrastando-se, arquejando a carcaça quando, outrora, viajava pelo mundo com a leveza suave de quem se sentia em casa em todo o lugar.

Escuso de vos dizer que, ainda assim, morreu cedo demais.

5.

Dos Tormentos de Job

 

Viver, é a consolação da criatura. Matar é a compulsão do Criador. Como? Explico. É insciente a criatura, antes de ser criada. Mas, a dado momento, desperta. Vê-se no mundo, engasga-se, convulsa, de espanto por ter nascido. Encontra tantas coisas doces, e também que há o doce, que já não quer tornar ao nada, à anulação disso tudo que é a consciência de ser e teme — descobre-o com horror — a hora negra de abandonar tal ventura, ainda que sofra e lhe pesem os ombros e se lhe cinja a cerviz quase até ao chão pois, como um círio, gasta-se a vitalidade em breve sopro.

Já o Criador, que foi e é para sempre, entedia-se, arrepende-se e anula a criatura com o mais leve menear da sua mão omnipotente. Tal é a economia do cosmo, a diferença entre a potesta de um e a fragilidade do outro que mesmo quando não decide aniquilar soe entreter-se amargando a vida ao humílimo servo da Sua imensidão. Ou, se não é jocoso o intento, então o mero testar do propósito e fortitude da criatura, retirai a fazenda a Job, matai as reses, devastai a família, deveis, amorosamente, colocar a cabeça do primogénito no cepo. E se o anjo, in limite, lhe sustém a mão, já é critério acidental do transe. Na verdade, já as maleitas de se existir, breve e precário debaixo do Sol, deviam ser cadinho suficiente para aferir a têmpera da criatura, frágil, pequena, condenada a perecer. Condenada a ser, a decair após o mais breve esplendor ou a ser tolhida cedo e fazendo questionar se não seria Sileno quem teria razão.

Eis pois, aquele príncipe da perfeição, que naquela manhã soalheira e propícia, ledamente, saiu à rua sem sequer imaginar que, nesse preciso momento, começaria a segunda metade da sua vida, plena de dor e sofrimento.

Nada ou pouco há a dizer do acidente, um instante fugaz de desatenção, não foi culpa de ninguém. Ele é que nunca recuperou das sequelas, dorido e desfigurado. Perdeu, a partir desse dia, a prodigiosa ventura que até aí tinha gozado pois trazem vantagens o corpo escorreito, a beleza, o vigor e a tremenda alegria de poder viver sem a dor intensa que não mais o largou pelas restantes décadas de uma longa e desafortunada vida.

6.

A casa

 

Sempre gostei de casas grandes e portanto era natural que a minha também o fosse, embora seja também devido a um pouco de sorte que tive a ventura de possuir e habitar esta, que é imensa. Na verdade, vivemos apenas numa sua parcela ínfima porque somos dois e precisamos de pouco, mas é agradável, por vezes, sobretudo em momentos de tédio, dar um longo passeio e visitar todas aquelas divisões e pequenos jardins que compõem esta habitação. Aliás, nem vos posso dizer qual o seu exacto tamanho, já aqui vivo há tanto tempo, e mudei tantas vezes de «zona» (chamemos-lhes assim, à falta de melhor nome, às diferentes secções desta desmedida casa) que os contornos se tornaram imprecisos, a memória, sozinha, não chega. O certo é que ainda há poucos dias encontrei uma pequena saleta, com uns grandes sofás de pele de almofadões confortáveis onde pretendia passar muitas e muitas horas dedicado à leitura para, logo então, a abandonar em favor de uma área mais moderna que nem sequer era muito distante. Ainda lá encontrei um isqueiro BIC em muito bom estado, a funcionar pois esteve guardado todo este tempo numa pequena bolsa em pele com os outros apetrechos do tabaco. Ou daquela vez em que fui surpreendido num jardinzito de tijoleira com uma miríade de gatos e outros animais simpáticos como uns macacos, um tapir, aves de vário porte onde se incluía uma majestosa coruja com o seu ar circunspecto, um dinossauro em miniatura e até um jacaré que insistia em tentar atacar quem por ele passasse. Depois, apareceu a família, o que é sempre agradável apesar da exposição prolongada à parentela provocar um certo cansaço natural. Suportei-os de bom humor, mesmo que isso tivesse ocorrido após uma noite de sono agitado. É tranquilizador ver caras conhecidas. Se forem demasiado ruidosas tenho sempre a hipótese de ir para outro lugar já que não faltam secções para explorar. Duvido que me encontrassem se eu não quisesse. Vivo aqui e conheço-lhes os cantos, os cantos à casa, mais com o instinto do que com um mapa veraz do espaço. E foi bom que o tivesse feito não por antipatia ou uma ponta de misantropia para com eles, que, a certa altura, tivesse fugido, mas porque encontrei uma curiosa feira que prometia a mais sedutora colecção de panaceias para os males deste mundo e do outro, se outro houver, que eu nunca vi nem consta que alguém tivesse retornado para contar como é. Por mim, sempre céptico, tive a oportunidade de questionar os vendedores sobre o mérito de cada artigo e não tendo sido convencido por nenhum, nada comprei. Isto era prometedor até surgir a notícia que andava por ali a rondar um tigre possante, recém evadido e com um fome de caça que não deixava ninguém a salvo. Mais uma vez, obrigado pela vossa compreensão, enfureceria o mais fleumático e faria tremer o mais corajoso o tentar recapturar essa fera, e o melhor foi fugir o quanto antes.

Voltei ao espaço em que, ultimamente, tenho habitado. Lá, estou mais confortável e seguro. Mais em casa dentro da minha casa. Ademais, ando ocupado. Já estou a preparar a nova mudança.

7.

Do Tempo

 

Preconizai um desprezo pelo tempo. E, no entanto, tempo é tudo o que se tem. O tempo é um núcleo essencial da dinâmica na tão-pouco-e-mal-governada estação política do nosso Ministério.

Com a perda de tempo das máquinas, também se torna difícil conciliar o tempo dos funcionários sem emprego, sem vida e sem amor. Acredito que, ao longo dos próximos quatro anos, os funcionários serão impedidos de terem algo, até as coisas mais simples, e por isso há que olhar para o forno como solução.

O começo deste pequeno excurso de divulgação incide no nosso quotidiano, sem esquecer que estas iguarias, passando por dois milhões de pessoas, têm um rosto. É uma carne que, sendo de difícil maturação, com preços muito conturbados, não seria possível sem os rios cristalinos de água puríssima e os rios que atravessam as pequenas comunidades dedicadas a esse labor, o melhor que temos. É carne sofisticada e desafogada, carne rica, carne adormecida, carne específica, carne crua de sabor a azeitona, carne viva, carne, em extremo, apetecível, carne mágica, carne seca, carne de ovo, carne em pimento, carne incrível, carne de molho, carne salada, carne com brio, carne broa de mel, carne solúvel na boca, de tão tenra e gostosa, carne que em comum com qualquer outra carne só tem a cor vermelha. Dizer que as carnes feitas pela natureza são iguais é quase uma blasfémia. A não ser por si, um funcionário não tem mais nada a oferecer à sociedade que o viu nascer.


João Pereira de Matos