CONSTRUIR UMA MEMÓRIA DA TERRA A FAVOR DO DESENVOLVIMENTO
Liliana Isabel Gonçalves Póvoas* & César Lino Lopes*

Resumo

O conhecimento científico sobre a História da Terra - que é a casa comum da humanidade - constitui um contributo para a identificação do Homem com o seu Meio e a sua condição de filho do Universo. A preservação e valorização, sobretudo in-situ, dos documentos que testemunham e simbolizam essa História, inscreve-se também num processo de produção da paisagem - que integra o cultural e o natural - abrindo novas pistas para o aprofundamento das relações das populações com o seu território e as suas origens mais remotas, mesmo as anteriores à individualização do grupo biológico a que pertencemos.

Introdução

Passados 4 600 milhões de anos de existência do planeta que habitamos e cerca de 4 milhões de anos de humanidade, qual a necessidade de construirmos hoje uma memória da Terra? Propomo-nos contribuir para o debate abordando esta questão em torno de um processo museológico específico: o da preservação e valorização de locais interessantes para o conhecimento da evolução do território português no decurso dos tempos geológicos.

O facto de o Museu Nacional de História Natural (MNHN) e, em particular, a sua secção de Mineralogia e Geologia, onde trabalhamos, ter vindo a propôr e a dinamizar, sempre em colaboração com as autarquias e, por vezes, com associações locais, processos conducentes à conservação e valorização de sítios de interesse geológico, significativos quer pelo seu carácter pedagógico, quer pelo seu interesse científico, permitiu-nos reconhecer neste processo uma base adequada a esta reflexão.

Pelas suas características específicas e pela vocação que terá para estabelecer comunicação com públicos diferenciados, estamos perante um processo que poderá não ficar por uma mera actividade de preservação e utilização do património geológico numa perspectiva funcionalista, mas, pelo contrário, actuar ao nível das mentalidades e das ideologias.

Assumindo nós a Museologia como o estudo de uma relação específica entre o homem e a realidade mediada pelos bens culturais (entre os quais consideramos incluído o património, designado natural), a reflexão a que nos propomos passa por confrontar o processo em questão nos seus enunciados, premissas e perspectivas próprias, com os conceitos hoje em debate como elementos estruturantes de uma teoria museológica em construção. Até porque, enquadrando-se este projecto de um EXOMUSEU (Galopim de Carvalho et al, no prelo) no âmbito de novas tipologias de museus hoje em surgimento, e a que a museologia "normal" (sensu Kuhn,1972 ) já não responde cabalmente (Chagas, 1996), cremos que desse confronto poderá resultar um aprofundamento da consciência do alcance do processo que o MNHN tem em mãos e uma maior clareza em relação ao significado dos conceitos envolvidos.

Por outro lado, uma vez que os objectos a musealizar são da Natureza e estão in-situ, o espaço/cenário onde acontece a relação homem/sujeito com o objecto/bem cultural é o território, o que nos remete para a organização do espaço e, eventualmente, nos sugere uma articulação com as necessidades de desenvolvimento das populações /comunidades.

Todo este processo vai levantando problemas vários que lhe são inerentes, acrescidos dos que resultam das características próprias da sociedade portuguesa onde decorre. Donde a necessidade de políticas de preservação particulares (a preservação pode passar inclusivamente por luta política) para uma musealização na perspectiva do desenvolvimento.

Musealizar sítios de interese geológico, porquê?....

As colecções de História Natural, nas quais se integram as de Geologia, são hoje consideradas verdadeiros bancos de dados à escala planetária e constituem recursos fundamentais para a acumulação do saber científico sobre a diversidade da biosfera e litosfera. Por vezes tais colecções encerram, mesmo, os únicos e últimos testemunhos dessa diversidade cada vez mais ameaçada pelo modelo de crescimento da sociedade industrial dos nossos dias.

Mas, ainda que as peças, os elementos desses bancos de dados que são as colecções, sejam contextualizadas ou integradas em exposições explicativas dos processos naturais, não poderemos prescindir de musealizações in-situ. Além da dificuldade ou mesmo impossibilidade física de, por exemplo, um grande trilho de pegadas de dinossáurio no fundo de uma pedreira ou uma mina abandonada serem retirados do meio em que se inserem, ex-situ perderiam parte do significado que lhes advém da leitura das múltiplas interrelações existentes só realizável no seu contexto próprio.

Articulando este último aspecto com o princípio de que em Museologia se trabalha com objectos representantes de ideias, de conceitos ou de processos, e que a produção de um determinado objecto ou a escolha de uma peça específica (que comunique a ideia, o conceito ou ilustre o processo) está necessariamente de acordo com o sistema de representações de quem produz ou decide, poderemos então considerar que com este processo de musealizações de sítios estamos, no fundo, a tender para substituir o representante pelo todo, procurando, dessa forma esbater os equívocos que resultam da interpretação do representante por dois sistemas de representação diferentes: o de quem concebeu e o do outro que observa.

A musealização de ocorrências geológicas mais significativas e exemplificativas surge, então, como o complemento necessário aos Museus de História Natural para o exercício da sua função por as transformar em locais onde os fenómenos naturais, uma vez apresentados de forma clara e atraente, são mais facilmente (ou naturalmente) intelegíveis por públicos mais vastos.

Mas este processo tem outro mérito: o de garantir a salvaguarda de sítios de interese geológico que constituem recursos culturais não renováveis (Muñoz,1988): recursos culturais, pois lendo neles como quem lê num livro, sempre actualizado, a história da Terra, se pode aprender, de forma agradável e significativa, a conhecer o planeta e as leis que o regem; não renováveis, porque os processos naturais que os geraram ao longo de milhares ou milhões e anos são irrepetíveis na sua singularidade. A sua destruição implica, portanto, perdas de informação irreparáveis. Assim, uma vez definida a carga valorativa destes sítios e depois de salvos da destruição ou degradação, passam a integrar o património da humanidade (Chagas, 1993). De facto o património geológico constitui a nossa herança comum mais remota.

Por isso o Museu Nacional de História Natural (Secção de Mineralogia e Geologia) tem vindo a conceber um grande projecto à escala nacional de musealização in-situ de ocorrências passíveis de serem consideradas monumentos naturais (no caso geomonumentos) ao abrigo da legislação em vigor e que designou por EXOMUSEU (Galopim de Carvalho, 1989) .

...... E para quê?

" Os patrimónios - desde que assumidos como tal - têm uma função social interessante: fazer existir uma entidade colectiva, sempre abstracta, tornando-a visível metaforicamente por exposição pública dos bens que possuíria em comum" (Micoud, 1994). No caso do processo “Exomuseu” julgamos que ele pode contribuir para que o cidadão, ao reconhecer um determinado elemento geológico como património, esteja a aprofundar a consciência da nossa identidade colectiva de filhos do Universo, feitos dos mesmos elementos químicos que as estrelas; esteja a tomar consciência do lugar do Homem na Natureza: ser vivo habitante do planeta Terra, produto e agente de uma cadeia longa e complexa de interrelações entre litosfera, hidrosfera, atmosfera e biosfera, (Galopim de Carvalho, 1991) cadeia que teve início há 4600 milhões de anos e da qual só temos conhecimento directo de uma ínfima parte: o momento presente.

"Porque já não temos memória, precisamos criar lugares de memória" (Nora, 1993). A partir do património geológico o que se pretende não é avivar ou transmitir a memória de vivências pois, na esmagadora maioria dos casos que esse património representa, não as tivemos (como espécie, claro!), mas sim criar ou recriar uma "memória" do que terá sido a Terra antes de nós, dos fenómenos que sucessivamente se produziram e foram possibilitando a Vida até às formas que hoje conhecemos. Tudo isto para adquirirmos a tal consciência da nossa identidade de filhos do Universo e, na prática, conseguirmos um viver mais harmónico com a Natureza, decorrente de um mais profundo conhecimento do seu "pulsar". Enfim, procuramos promover uma intervenção ambiental e cívica recorrendo ao poder da memória.

Assim, os sítios geológicos seleccionados, apesar de, como diz Nora (1993), se caracterizarem por à partida serem dotados de "ausência absoluta de vontade de memória", porque necessitamos de compreender as nossa origens e nossa identidade como espécie, acabam por ser investidos duma "memória" que, existindo já recriada na mente dos que trabalham nesta área da ciência, se deseja cada vez mais partilhada, mais colectiva: a "memória da Terra" cadinho onde se gerou a Vida e se tem verificado a mudança constante a que esteve e está sujeita. Porque a face do planeta e a Vida que hoje conhecemos são o resultado duma longa evolução em que interagiram um sem número de factores. Porque essa evolução vai continuar. Porque nós, e o Ambiente em que vivemos, não somos mais do que uma fase efémera de transição entre passado e futuro da história da Terra e da Vida que ela transporta (Carta de Digne, 1991). E esta memória continua a ser a projecção de um tempo passado num outro tempo que é o presente. Só que a imensa maioria do tempo passado não foi vivenciado pelo género humano. Foi apenas reconstituído ou recriado. Mas alguém duvida de que os Dinossáurios fazem parte da nossa memória colectiva?

E este apelo à criação de uma memória é, ainda, feito, como em qualquer outra construção museal a partir de restos (Nora, 1993) dos fenómenos havidos porque apenas uma parte, mesmo que significativa, dos processos que se deram no decurso dos milhões de anos ficaram registados nas rochas que chegaram até nós; porque nós ainda não saberemos retirar toda a informação que elas contêm, e porque os elementos com que vamos construindo a “memória da Terra” são os que o conhecimento da nossa época permite interpretar e acha significativos. E estes serão necessariamente diferentes dos que no futuro a natural evolução das ciências, do desenvolvimento experimental e, até, das ideologias, permitirão obter.

Donde a escolha de uns locais e não de outros, a relevância que se dá a uns aspectos e não a outros, a informação que se consegue extrair e divulgar e o modo de o fazer, a concepção estética e arquitectónica dos projectos de valorização. E tudo contribui para apor ao objecto geológico o selo, a assinatura duma pertença cultural e de uma época, de uma perspectiva social e, talvez também, de uma determinada “memória” de vivenciar a Natureza. Quem nestes processos poderá distinguir entre património natural e cultural?

Embora haja uma selecção dos elementos a tratar, anterior à nossa intervenção, que é da autoria da Natureza e não do Homem, estes processos não são diferentes dos vividos noutras áreas do conhecimento em que se lida com testemunhos de vivências da humanidade, pois segundo Le Goff (1984) “a intervenção do historiador que escolhe o documento extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra” do que a sua intervenção. O documento não é inócuo (....) O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntaria ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias”.

Portanto, como acontece com qualquer processo museológico, também os sítios geológicos musealizados existem a partir de uma política selectiva e voluntária. Escolhemos os que podem simbolizar fenómenos mais amplos, nos parecem mais interessantes, mais didácticos, mais promissores no futuro em termos da informação a retirar. E neles o testemunho de caracter ideológico também se manifesta por ausências e lacunas. Ainda neste caso continuamos a programar o esquecimento, a programar a deterioração.

Com tudo isto queremos dizer que consideramos os sítios geológicos musealizados incluídos entre os lugares de memória, lugares de poder e lugares de esquecimento. E partilhamos a opinião que podem ser ainda lugares de contemplação e contituírem assim, espaços de reencontro connosco próprios, espaços de resistência à voragem da vida actual. A comunicação a partir deste tipo de património pode ter particular importância para nos remeter à nossa verdadeira dimensão, para nos situar na nossa relação com o Universo (em parceria com o resto da humanidade), por se estabelecer a partir de lugares privilegiados de articulação com o Tempo através do tempo de existência deste planeta, do tempo do Universo.

“Sem dúvida, para que haja um sentimento de passado é necessário que ocorra uma brecha entre o presente e o passado, que apareça um “antes” e um “depois”. Mas trata-se menos de uma separação vivida no campo da diferença radical do que um intervalo vivido no modo da filiação a ser restabelecida. Os dois grandes temas da intelegibilidade da história, ao menos a partir dos tempos modernos, progresso e decadência, ambos exprimiam bem esse culto da continuidade, a certeza de saber a quem e ao que devíamos o que somos” (Nora, 1993). O património geológico “fala-nos” de um tempo “antes de nós”, tal como somos hoje, ou mesmo antes do género humano. De um tempo de um planeta diferente onde “progresso e decadência” são sedimentação e erosão, ou evolução e extinção. Através destes processos referenciados ao tempo e referências dele, iremos descobrindo o fio condutor da história da Terra, e da Vida que ela abriga, onde nos filiamos. Mesmo que o futuro da humanidade não possa ser visível (Nora, 1993) pelo menos os processos em que estamos envolvidos e as suas possíveis consequências não nos serão tão estranhos.

De facto ao erigirmos como património um determinado elemento geológico não se estará a conservar só “para o passado”, mas igualmente para o futuro. A geohistória e a evolução da Vida, em particular na sua relação com os sucessivos paleoclimas e paleogeografias, constituem um manancial de informações fundamentais para a interpretação do presente, mas também para a elaboração de cenários de previsão de mudanças globais e suas consequências. E contribui ainda para a aquisição da consciência de que a Terra, como sistema autoregulador que é, pode responder às agressões desta civilização evoluindo para um ambiente desfavorável ao Homem (Póvoas et al, 1995). Esta componente do processo, assim como outras de carácter dominantemente pedagógico já atrás referidas, dão corpo ao aspecto funcional que, em coexistência com os aspectos material e simbólico (Nora, 1993), decorrentes de questões antes abordadas confirmam os sítios de interesse geológico como lugares de memória.

Musealizar in-situ é ainda um modo de mais directamente ir ao encontro dos públicos, facilitando o acesso à problemática inerente à compreensão do planeta em que vivem, removendo a barreira que a entrada dum museu ainda constitui para sectores alargados da população.E talvez, também, o facto de estarmos colocados fora do contexto tradicional da sala do museu seja facilitador da descoberta de soluções museográficas menos formais, mais criativas, com maior capacidade de comunicação e propiciadoras de várias leituras ou várias abordagens.

Museus de sítio ....

Uma vez erigidos em património estes sítios geológicos vão ser objecto das três funções fundamentais do Museu: preservar, investigar, comunicar.

Já a sua salvaguarda constitui, geralmente, o aspecto decisivo da acção de preservar e exige muitas vezes políticas de preservação particulares. Pelo menos no caso da sociedade portuguesa, antes ainda de serem aplicadas aos objectos as tecnologias específicas para a sua preservação, ou antes de se construir as necessárias estruturas para os proteger da acção destruidora dos agentes atmosféricos (e antrópicos) foi, por vezes, necessário desenvolver luta política intensa com o desencadear de movimentos de opinião que, por exemplo, no caso da Pista de Pegadas de Dinossáurios de Carenque, passaram por petições à Assembleia da República e manifestações de grupos escolares no local a salvar das retroescavadoras.

Estes sítios, na maior parte dos casos, já tinham sido alvo de trabalhos vários de investigação científica, aliás no geral responsáveis pela atribuição de significado particular justificativo da importância da sua preservação e do seu valor didáctico. E continuarão a ser alvo de novas investigações sempre que a evolução das ciências que se cruzam para o seu estudo conheçam mudanças que permitam fazer novas leituras e retirar outras informações. Também nessas potencialidades futuras reside o seu interesse.

Ao musealizar-se cada um destes sítios está-se precisamente a tentar descodificar a informação que podemos retirar do objecto. A tentar, através dele, estabelecer a relação entre nós e o outro. A tentar, com ele, comunicar.

Os sítios de interesse geológico, uma vez alvo destes processos e através deles transformados em “geomonumentos”, constituirão outros tantos Museus.

.... Ou um novo museu para uma nova colecção ?

Mas também poderemos encarar esses sítios como um conjunto. Uma colecção.

Apesar de não estarem retirados do seu contexto original, de não estarem guardados nas reservas dum museu, não deixam de constituir uma espécie de colecção. Eles terão que ser preservados, conservados, inventariados, objecto de estudos vários. Eles poderão constituir uma colecção de sítios que permitam ler a evolução geológica do território de um país.

A “reserva” será esse próprio território e o Museu englobará a reserva e a base de dados que centralize a informação sobre todos eles, assim como sobre as relações que entre eles se possam estabelecer.

“O Museu já não é o que era” diz Van Mensch. Neste caso pode não ter portas, nem paredes, a colecção não estar concentrada dentro de um edifício, os objectos não serem arrancados ao lugar a que pertencem. Mas o essencial da função do Museu subsiste.

Cenários de intervenção

Vivemos hoje um tempo de rápidas transformações. Um pouco por todo o lado sentimos que se alteram as vivências, se alteram as relações sociais, se alteram as paisagens e, por vezes, porque alheios a toda esta dinâmica, sentimo-nos estranhos (estrangeiros ?) aos espaços em que habitualmente vivemos. O crescente desenvolvimento económico está a produzir novos ricos e novos pobres, além de que tem criado novas situações de ruptura do Industrial e do Urbano nas suas interdependências com o Ambiente e o Social, evidenciando, na grande maioria das vezes, a irracionalidade da exploração dos recursos naturais. A natureza e a dimensão dos problemas criados geram incertezas no futuro e colocam na ordem do dia a discussão sobre qual o modelo de desenvolvimento que queremos construir. Pelas implicações que tem na construção do presente e do futuro, este debate acaba por dizer respeito a todos os cidadãos e, por isso mesmo, não é um exclusivo dos poderes instituídos ainda que legitimados pelo voto popular.

A articulação Património Natural/Desenvolvimento perspectiva a via para um modelo de Desenvolvimento apoiado nos valores geoculturais intrínsecos aos espaços naturais e construídos - parte e factor integrante da nossa identidade - e, ainda, nas memórias individuais ou colectivas, sejam elas veiculadas e descodificadas pelas próprias comunidades ou pelos manuais da Ciência. Este caminho do Desenvolvimento não será a perspectiva das classes dominantes que vão traçando as "auto-estradas do seu Progresso". No entanto para as populações será uma necessidade e para os desenraizados poderá ser uma bandeira. "Abrindo-se as avenidas da discussão" como propunha António Sérgio, e assumindo nós este propósito como um objectivo dos Museus - já que estes são guardiões de memórias, saberes e identidades que se democratizados constituirão um instrumento de poder ou contrapoder em "boas mãos" - poderemos entender melhor os mecanismos de produção deste presente/futuro caracterizado pela mutação constante, e intervir nele. Trata-se efectivamente de uma questão de Poder e da definição e uso que é feito do Património. É que, há "poderes" que sempre pretendem justificar o injustificável e, no exercício da fidelidade aos interesses que lhes estão subjacentes, tentam preverter o juízo sobre a qualidade do nosso presente mobilizando para isso a visão ou o culto de um passado mítico que se projecta também em futuro. Assim, e na perspectiva de articulação do Património Natural com Desenvolvimento, a História a ser contada não deverá ser uma História Natural onde o Homem é também protagonista ?

A história da Terra e da Vida, que os Museus de História Natural, como outras instituições, se empenham em investigar e divulgar, não nos fala de qualquer paraíso perdido que o Homem tenha conhecido. Fala-nos sim, como já vimos, de uma longa evolução, resultado de inúmeras e sucessivas adaptações, respostas a diferentes situações; fala-nos de equilíbrios e desiquilíbrios, de extinções de espécies isoladas ou em massa e do desenvolvimento de novas formas vivas mais bem adaptadas aos novos meios.

No quadro da relação Património Natural / Desenvolvimento, os conceitos de progresso e de decadência, já antes referidos, devem ser aferidos não apenas pelo primado da avaliação do sistema económico e do regime político, mas também, e sobretudo, pela caracterização e definição do que são recursos naturais, do seu modo de apropriação e gestão tendo em conta as suas implicações ambientais e o reconhecimento de que a Terra é um sistema que se autoregula, com regras e mecanismos mais ou menos conhecidos que devem ser respeitados sob pena de um desastre a prazo para a nossa espécie.

O bem estar social, enquanto valor e factor do desenvolvimento, implica a utilização de recursos naturais e o desenvolvimento de processos ambientais. A Terra e a sua vida biológica, o ar, a água, os minerais, enfim os recursos energéticos a que nos temos vindo a referir, estão nas paisagens que nos envolvem.. As paisagens do presente contém as marcas de processos ocorridos no passado geológico, sendo elas próprias protagonistas das interrelações do presente.

Não nos cabe aqui fazer a caracterização e o levantamento dos recursos naturais. Eles devem ser feitos no quadro de um processo de investigação científica direccionada face aos objectivos de desenvolvimento. Cabe-nos sim, propor a utilização de uma maior diversidade de recursos e apontar a necessidade de preservação in-situ dos testemunhos patrimoniais naturais, também eles recursos enquanto referência para a compreensão científica do que é a Natureza e do modo como funciona. É uma outra maneira de olhar e defender o Património natural. Guardar meia dúzia de seixos rolados de um terraço do rio Tejo, umas tantas amostras de água ou de aluviões não poluídos num qualquer arquivo escuro de um Museu como legado aos vindouros, poderá ser sempre uma desculpabilização do presente face à contaminação do Ambiente, à degradação da qualidade de vida e a um modelo civilizacional de futuro duvidoso.

Esta é, sem dúvida, uma das razões para a importância que hoje adquiriu a conservação do Património Natural. E se é crescente a sensibilização para a conservação do património faunístico e florístico, é preciso ter em conta que o património geológico não é menos importante, uma vez que é nas paisagens, nas rochas, nos fósseis que está escrita a história mais antiga do nosso planeta, que estão registadas as convulsões, as mudanças e os períodos de estabilidade por que a Terra e a vida nela contida passaram. Este registo constitui pois, uma imensa reserva de ensinamentos sobre o modo como se processaram e processam os dinamismos do planeta.

Mas o Homem está a introduzir, há milhares de anos e, nas últimas décadas a ritmo exponencial preocupante, alterações neste grande sistema que é a Terra. E se até há poucos séculos o comportamento da humanidade na sua relação com o natural se baseava em intervenções relativamente superficiais, à medida que o modelo urbano-industrial se foi tornando dominante, a intervenção sobre tal sistema passou a ser profunda e agressiva, numa óptica de domínio e alheamento face às regras da Natureza. Na vertigem do aumento do lucro imediato e do consumo desenfreado de recursos que pensa serem infinitos, a humanidade enredada nas teias deste modelo de civilização, esquece-se que pode ser ela própria vítima do crescimento exponencial da poluição e da agressão ao planeta. O conhecimento das leis da Natureza, a sensibilização do cidadão para o que é e como funciona a Terra, também são necessidades prementes se se quiser favorecer uma maior participação social no debate e na tomada de decisões relativas a problemas vitais, como sejam o da gestão e exploração dos recursos minerais e energéticos ou o de saber encontrar o modelo de desenvolvimento capaz de responder aos desafios da actualidade.

Decorrente do que foi dito, os sítios geológicos, longe de representarem um estorvo aos naturais anseios do progresso social das populações, podem e devem ser encarados como um factor de desenvolvimento. Nos dias de hoje, em que se procura, ou se deveria procurar, fixar e mobilizar as populações rurais criando experiências alternativas, projectos locais de natureza social e económica, a musealização de um sítio geológico, sobretudo se realizado com o envolvimento das populações, pode ser um pólo num processo global de dinamização local ou regional. Além da sua importância cultural e científica, poderá também trazer benefícios para a economia local, como um factor de atração turística, pelo emprego de mão de obra, e como contribuição para uma perspectiva de desenvolvimento sustentado valorizador das características da região.

Conclusão

O conhecimento científico sobre a História da Terra - que é a casa comum da humanidade - constitui um contributo para a identificação do Homem com o seu Meio e a sua condição de filho do Universo. A preservação e valorização in-situ dos documentos que testemunham e simbolizam essa História, inscreve-se também num processo de produção da paisagem - que integra o cultural e o natural nos seus múltiplos aspectos de produção material e imaterial - abrindo novas pistas para o aprofundamento das relações das populações com o seu território e as suas origens mais remotas, tanto que até podem ser anteriores à individualização do grupo biológico a que pertencemos.

A emergência dos novos valores sociais (qualidade de vida, ambiente, paisagem, democracia e participação cívica), ditados pelos "becos-sem-saída" das sociedades urbanas e industriais, e a contestação a este modelo civilizacional da produção em massa, da especulação e do lucro, podem ser a oportunidade do futuro às regiões ainda não integradas nesta lógica e em situação de exclusão social e económica.

A viabilização desta oportunidade depende evidentemente da importação de energias exteriores, sejam elas capital financeiro ou informação, em função de uma nova dinamização cultural e económica percursora de novos caminhos.

É neste quadro de investimento que posicionamos as nossas propostas de novas expressões da museologia.

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* Museu Nacional de História Natural. Rua da Escola Politécnica, 58, 1250-102 Lisboa


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