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A MEDICINA NO ENCONTRO DE CULTURAS:
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Carlos A. L. Filgueiras
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O positivismo teve um papel dominante na história da ciência, até há poucas décadas atrás. Como ressalta Allen Debus em artigo recente1, essa influência, que reduzia em muito o âmbito da história da ciência, pode ser vista no desdém com que freqüentemente foram tratados autores e teorias que vieram a ser sobrepujados ou que não fizeram parte das correntes científicas principais. A postura positivista tendia a considerar a história da ciência como uma seqüência linear, embora com tropeços e entraves que deviam ser removidos ou vencidos.
O estudo das ciências modernas com freqüencia também induz o leitor à idéia de que elas se desenvolvem linearmente, isto é, um conjunto de hipóteses leva a uma ou mais teorias, estas se desenvolvem ainda mais, alimentando outras idéias, novos experimentos e descobertas. A partir de onde uma determinada escola de pensamento interrompe seu trabalho, outros grupos, escolas ou cientistas retomam a caminhada, fazendo crescer cada vez mais o grandioso edifício da ciência. Nada mais distante, contudo, da realidade do fazer científico que essa crença. Crença que, apesar de tudo, é bastante arraigada no imaginário popular. Ao contrário, o número de desacertos, de becos sem saída, de equívocos e erros de todo tipo, ou mesmo de simples rotina que se pretende inovadora é muito maior na história da ciência que o número de descobertas verdadeiramente extraordinárias ou apenas de êxitos. Ao lado da crença popular na linearidade do desenvolvimento científico existe outra, igualmente ingênua, que é considerar os fatores puramente racionais, lógicos, “científicos”, como motores exclusivos da descoberta e do progresso científico. A ciência é feita por seres humanos, e seres humanos não são movidos exclusivamente por fatores racionais, lógicos, “científicos”. Então, se os responsáveis pela construção da ciência são movidos, como seres humanos, por uma miríade de influências, não haverá influências acientíficas na geração das teorias científicas? Muitos episódios famosos podem ser arrolados ao longo da história para demonstrar este ponto. Podemos citar, por exemplo, Copérnico e sua teoria de que a Terra e os outros planetas giram em torno do sol em órbitas circulares, em oposição à doutrina vigente em sua época, de que a Terra era o centro do universo, e que os outros astros giravam à sua volta, mesmo que às vezes suas órbitas tivessem que ser descritas por movimentos bastante esdrúxulos, para se ajustar à teoria. Copérnico, em sua juventude, havia freqüentado a Universidade de Bolonha, um importante centro de estudos neo-platônicos ao final do século 15. Para o platonismo, o círculo era a figura geométrica perfeita, sem princípio nem fim, digna de freqüentar as vizinhanças da divindade. Essa influência neo-platônica, posta aqui de forma tão singela e sucinta, certamente teve seu quinhão entre os fatores que levaram Copérnico a imaginar sua teoria heliocêntrica. Não seria razoável que os astros celestes, vizinhos de Deus, se deslocassem no firmamento segundo a curva mais perfeita? Aceitando essa hipótese, que não provém de considerações científicas, a descrição matemática do movimento planetário se simplificava muito. Este é apenas um dentre muitos exemplos que mostram o papel de influências não científicas na formulação de teorias científicas vitoriosas e de grande importância. Ao lado das influências não científicas na ciência, a moderna historiografia preocupa-se cada dia mais com a chamada “ciência periférica”, ou seja, a produção científica que aparentemente não participou das correntes principais do desenvolvimento científico, ou que foi realizada em locais ou de forma a não exercer influência direta sobre as correntes hegemônicas da ciência. Aqui podem ser destacados dois exemplos. Certamente a França foi um país central na evolução da química do século 18, culminando na chamada Revolução Química, centrada na figura de Lavoisier e seu círculo. Um dos grandes temas da química desse século foi o debate em torno da natureza da combustão, cuja explicação satisfatória por Lavoisier acabou por estabelecer os princípios fundamentais da química moderna. Pois bem, em pleno século 18, Voltaire desenvolveu uma teoria própria para explicar a combustão, que era totalmente equivocada de nosso ponto de vantagem moderno. Ninguém poderia jamais dizer que Voltaire fosse uma figura periférica, por qualquer critério. No entanto, no desenvolvimento da química ele o foi, tanto que sua química hoje só é estudada por especialistas no assunto. Contudo, quando se quer ter uma visão abrangente de como se desenvolveu a química no século 18, é forçoso conhecer não só a obra nesse campo de personagens como Voltaire, como também de outras figuras de menor projeção. A Revolução Científica, que teve lugar na Europa dos séculos 16 a 18, foi um fenômeno histórico de dimensões extraordinárias, talvez mesmo, como querem alguns, o mais influente fenômeno na história da humanidade, ao deitar raízes e transformar indelevelmente todo o mundo, levando à Revolução Industrial e Tecnológica, que viria a universalizar-se. Pois bem, se a Revolução Científica foi um fenômeno europeu, isto não significa que outras terras, aparentemente sem qualquer ligação com esse fenômeno intelectual e social, não tivessem dele participado, embora de forma indireta, mas com um peso nada desprezível. Com efeito, a descoberta e a exploração de novas terras a partir do século 15, trouxe até à Europa um cabedal inesgotável de novidades jamais imaginadas; esses novos conhecimentos exerceram um papel nem sempre adequadamente percebido, ao mudar a visão de mundo que a Europa herdara da Idade Média. Basta salientar que aquele caudal de coisas novas, totalmente insuspeitadas até então, deitou por terra a certeza das verdades prontas e acabadas que caracterizara boa parte do pensamento medieval. O abalo nesse grande edifício intelectual foi importantíssimo ao semear o espírito de dúvida e indagação inerentes à busca do conhecimento científico. Esta introdução tem por fim mostrar a razão de se estudar o tema de que trata o presente texto. Pretende-se aqui mostrar como influências diversas contribuiram para moldar duas personagens tão diversas como aquelas aqui estudadas, de dois médicos portugueses contemporâneos, ambos com larga experiência de vida e prática profissional no Brasil dos albores do século 18, autores de textos alentados de medicina, embora de persuasões distintas no tocante à teoria e à prática médica. Cada qual foi influenciado de forma peculiar pelas correntes científicas, intelectuais e sociais de sua época e de seu meio. O confronto entre essas personagens e suas obras põe à mostra o tráfico de idéias, influências e experiências, do esforço de indivíduos no afã de superar a si e a seu meio, meio este que bem se enquadra na classificação de periférico cientificamente, mas nem por isso de estudo menos fascinante. Ressuscitar essas personagens e suas obras, às vezes já esquecidas pela história, é tarefa que ajuda a montar o grande mosaico do porquê e do como da aparição e do desenvolvimento da ciência e de suas aplicações, em suas diversas formas, representações e percepções. |
A Medicina e a Ciência no Portugal do Início do Século 18 |
Ao raiar o século 18, a medicina ainda era bastante empírica e em boa parte dependia do acúmulo de conhecimentos práticos passados de geração em geração, assim como da habilidade, espírito de observação e experimentação, e da destreza dos médicos. As doutrinas médicas se sucediam, mas apesar de todo o seu aparato teórico eram, em geral, bastante empíricas, já que o conhecimento microscópico do organismo, de seu funcionamento a nível celular, da etiologia, transmissão, desenvolvimento e cura das doenças estava ainda por vir. Várias inovações haviam sido introduzidas na cirurgia e na clínica desde o século 16, aliadas a um melhor conhecimento da anatomia humana. Um certo número de remédios sintéticos havia sido desenvolvido, desde o tempo de Paracelso (1493-1541), como os sais de mercúrio, de antimônio, o sal de Glauber (1604-1668), etc. Enorme foi a contribuição trazida das novas terras conquistadas, sobretudo de origem vegetal. Basta mencionar o quinino, oriundo da América, como agente antifebrífugo eficaz e potente. O estudo presente visa a pôr lado a lado duas formas contemporâneas e tão divergentes da medicina, uma erudita, a outra oriunda de raízes populares. Ambas muito devem à observação e à experiência colhidas no meio colonial brasileiro, assim como aos progressos da química empírica dos dois séculos precedentes, e do conhecimento da natureza das novas terras. Uma busca um arcabouço teórico que lhe dê consistência intelectual; a outra, por seu total pragmatismo, tudo quer experimentar no afã de obter a cura, e por vezes deixa-se levar por crendices. Ambas foram publicadas em volumes alentados e serviram à consulta de médicos, cirurgiões e boticários. Seus autores, embora tão distintos, eram movidos por igual denodo na busca da arte de curar. No início do século 18 a química e a medicina estavam intimamente ligadas. Desde o século 16 essa associação, sob a guisa da iatroquímica, ou química medicinal, havia levado à descoberta de novas terapêuticas e à produção de vários medicamentos sintéticos. A alquimia, como corpo teórico de explicação da constituição e das transformações da matéria, estava moribunda e, em seu lugar, já se podia vislumbrar a Química como uma ciência física de pleno direito2. O êxito da mecânica teórica a partir do século anterior teve grande influência sobre os outros corpos de conhecimento. A essa influência não ficaram infensas a química ou a medicina. Ao mecanicismo na medicina, cujo grande expoente foi Hermann Boerhaave (1668-1738), professor em Leiden, contrapôs-se o animismo do alemão Georg Ernst Stahl (1660-1734), da Universidade de Halle. As idéias animistas levaram mais tarde ao vitalismo e ao conceito de força vital, que tanta importância tiveram na história da química subseqüente. Embora Stahl se proclamasse tão oposto à iatroquímica3, a química médica de origem paracelsista, esta deixou nele uma influência profunda sob a forma da crença na teoria das afinidades. Ademais, ao se opor ao mecanicismo do irlandês Robert Boyle (1627-1691) ou do francês Nicolas Lémery (1645-1715), ele vai defender o ponto de vista de que um organismo corporal dirige o corpo e é por sua vez dirigido pela alma. O organismo corporal dirige os átomos que, além de suas propriedades mecânicas, possuem também qualidades intrínsecas ou absolutas, que permitem aos átomos escolher os outros átomos com os quais formarão os compostos químicos4. A matéria viva, para Stahl, é totalmente diversa da matéria inanimada, pois contém uma anima sensitiva incorruptível. O sangue fora do organismo se putrefaz, porque não mais possui o princípio da vida, o qual é impermeável à análise química5. Mesmo ao rejeitar o cartesianismo, Stahl é influenciado por Descartes: só a anima consegue impedir a tendência natural de corrupção corporal e morte. Esses conceitos aproximaram Stahl da religião e da noção de poder curativo da natureza6. Boerhaave manteve também uma severa separação entre mente e corpo, sustentando que os atributos deste “não possuíam nada em comum com os daquela”7. Boerhaave é freqüentemente visto como o principal rival de Stahl em vida. A importância de Boerhaave como professor de medicina estendeu sua influência a toda a Europa. Já se disse que o grande progresso da medicina na Universidade de Edimburgo foi uma conseqüência do treinamento de seus professores como estudantes do grande mestre em Leiden8. Boerhaave manteve uma severa separação entre mente e corpo, sustentando que os atributos deste “não possuíam nada em comum com os daquela”8. A substituição da iatroquímica pela mecânica fica evidente na descrição do corpo humano por Boerhaave em sua famosa oração acadêmica de 1703, onde o corpo humano é apresentado como um prodígio de engenharia mecânica: “algumas (das partes) se parecem com pilares, escoramentos, vigas, cercas, coberturas, eixos, cunhas, alavancas e polias; outras com tamises, peneiras, tubos, condutos e recipientes; e a faculdade de desempenhar vários movimentos com esses instrumentos é chamada de suas funções, todas regidas por leis mecânicas e só por elas inteligíveis”9. A medicina portuguesa do raiar do século 18 achava-se ainda distante do centro das controvérsias que agitavam boa parte da Europa. Quanto à química, ela se limitava a algumas preparações farmacêuticas ou a operações das diversas artes manufatureiras; cogitações teóricas novas ou originais a respeito da estrutura da matéria ou da interação das substâncias no corpo humano só apareciam muito excepcionalmente. Contudo, as mudanças ocorridas na Europa nos últimos tempos já penetravam Portugal a partir das últimas décadas do século 17. A iatroquímica dos seguidores de Paracelso, que tanta importância granjeara em França no século 17, era praticada por médicos de nomeada, embora não fosse ensinada no curso de medicina de Coimbra, onde ainda era comum o uso de animais nas demonstrações práticas de anatomia. Um exemplo notável de médico e autor português do fim do século 17 e início do século seguinte foi João Curvo Semedo (1635-1719), autor da “Poliantéia Medicinal”, cuja primeira edição veio à luz em 169710. A “Poliantéia” foi um influente livro de medicina que mereceu várias edições e projetou seu autor no mundo científico e médico da época. É interessante notar que ao lado da medicina tradicional e dos medicamentos de origem galênica, Semedo já apresenta também medicamentos preparados quimicamente, evidenciando a penetração das novas correntes. No Brasil do século 17 os jesuítas, por concentrarem em seus estabelecimentos o saber e sua transmissão, em boa parte a salvo da vigilância severa do Santo Ofício, que lá não se estabeleceu, vieram a formar importantes coleções de cadernos manuscritos de receitas médicas. A maioria desses manuscritos se perdeu, lamentavelmente, por ocasião da expulsão pombalina dos padres, em 1759, à exceção dos documentos conservados no Arquivo Romano da Companhia. No limiar do século 18 publicou-se em Portugal a “Farmacopéia Lusitana”, de D. Caetano de Santo Antônio11, boticário do Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Esta farmacopéia ostenta como sub-título “Método Prático de Preparar e Compor os Medicamentos na forma Galênica com todas as receitas mais usuais”. O livro é de natureza conservadora, como o próprio autor admite: “não ofereço cousa alguma de novo nesta obra, pois se acha escrito nos autores antigos tudo o que neste livro vai lançado”. A Farmacopéia teve, porém, uma segunda edição em 1711, que difere bastante da primeira, por incorporar conceitos iatroquímicos12. Seu novo título é “Farmacopéia Lusitana Reformada. Método Prático de preparar os medicamentos na forma galênica e química”. No “Prólogo ao Leitor” vem a justificação da mudança efetuada na obra: “hoje, depois que o Norte introduziu a Química (na Farmácia) se tem apurado tanto esta importantíssima arte, que parece outra muito diferente do que foi no seu princípio; este é o motivo que me obrigou a expor os desvelos da minha curiosidade a tua censura, se não quiseres, que seja ao teu proveito, se professas esta arte, ou ao teu interesse, se necessitas de remédios; e cortando por todos os escândalos da maledicência me resolvi, censor de mim mesmo, a reformar a minha Farmacopéia Lusitana, acrescentando-lhe as receitas e doutrinas modernas que talvez não chegariam a tua notícia por imperícia da inteligência das diferentes línguas em que os estrangeiros escreveram, e com o desejo da utilidade pública me capacitei para entender a língua francesa e italiana, valendo-me destes idiomas para utilizar os naturais primeiro que os estranhos, dirigindo-se este desvelo a que a medicina dogmática (sem faltar ao método galênico praticado felicissimamente no nosso clima) se aproveitasse dos remédios químicos com maravilhosos efeitos”13. Poucos anos depois, em 1716, vem à luz a “Farmacopéia Ulissiponense, Galênica e Química”, do expatriado francês João Vigier14. O autor é um discípulo do renomado químico francês Nicolas Lémery, e apresenta uma química medicinal de sabor iatroquímico. O que diferencia a obra de Vigier de outras do gênero é a grande ênfase na apresentação de novas drogas de origem vegetal ou animal oriundas das colônias, sobretudo do Brasil. Esta parte do livro ocupa 55 das 577 páginas do livro. A Farmacopéia Ulissiponense de João Vigier é uma reelaboração de outra obra de sua autoria publicada pouco antes, em 1714, intitulada “Tesouro Apolíneo, Galênico , Químico, Cirúrgico, Farmacêutico, ou Compêndio de Remédios para ricos e pobres”15. O livro é uma coletânea de receitas, uma verdadeira preparação para sua futura farmacopéia. A preocupação didática de Vigier é notável, e ele busca ensinar ao leitor os princípios iatroquímicos que trouxera de sua terra natal. |
A Ciência Médica de dois Dessemelhantes:
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O animismo stahliano teve como um de seus introdutores e expoentes em Portugal o Dr. José Rodrigues de Abreu (1682-após 1752). Abreu era natural de Évora e formou-se em medicina em Coimbra. No primeiro tomo de sua “Historiologia Médica”, publicado em 1733, apresenta-nos ele sua autobiografia, na qual nos diz ter sido educado pelos jesuítas, após o que estudara Teologia e Medicina em Coimbra. Seguiu para o Brasil em 1709; do Rio de Janeiro passou às Minas Gerais, a convite do Governador Jerônimo de Albuquerque Coelho de Carvalho. Viajou pelas vilas e cidades de Angra dos Reis, São Paulo, Mogi, Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. Após regressar a Portugal em 1714, esteve na Itália e depois estabeleceu-se em Lisboa como médico. Sua experiência médica colonial muito influiu em suas obras publicadas; certamente a prática médica no Brasil do século 18 exigia dos doutores uma capacidade de adaptação extraordinária, seja nos sertões das minas ou numa cidade como o Rio de Janeiro. Seu primeiro livro foi composto no Brasil. Intitula-se “Luz de Cirurgiões Embarcadiços, que trata das doenças epidêmicas, de que costumam enfermar ordinariamente todos os que se embarcam para as partes ultramarinas”16. A obra foi publicada em Lisboa, em 1711, quando ele ainda se encontrava em terras americanas, e é dedicada a D. João V. Trata-se de um trabalho de escritor neófito, um ensaio para seu grande tratado posterior. O livro é de pequeno porte e, na dedicatória ao Rei, o autor insinua estar em busca de algum cargo ou posição (“já que me faltam as rendas anuais”). A obra se limita a descrever minuciosamente uma série de enfermidades e tratamentos administrados pelo autor. Seu mérito principal é testemunhar a presença do Dr. Abreu no Brasil e a larga experiência médica que adquiriu em meio tão inhóspito. Após regressar a Portugal a fortuna lhe sorriu e ele teve uma carreira brilhante e próspera . Obteve do soberano uma série de mercês, como o Hábito de Cristo (1720), a posição de Cavaleiro Fidalgo, com direito a pensão (1724), e um alvará de concessão de Vestiaria (ajuda de custo para a aquisição de roupas) como Médico Supranumerário da Casa Real (1725). Entre 1733 e 1752 foi publicada sua grande “Historiologia Médica”17, dividida em dois tomos (1º tomo em 1733, e 2º tomo, compreendendo três partes, em 1739, 1745 e 1752, respectivamente). A obra é enciclopédica e se estende por alguns milhares de páginas; só o primeiro tomo tem 961 páginas, mais 49 outras de introdução, e uma errata. Rodrigues de Abreu se confessa um seguidor de Stahl a partir do título de sua obra, cuja versão integral é: “Historiologia Médica, Fundada e Estabelecida nos Princípios de George Ernesto Stahl, famigeradíssimo Escritor do presente século, e ajustada ao uso prático deste país”. A parte publicada em 1733 é o “Tomo Primeiro. Em que se Contêm as Instituições Incluídas na Fisiologia, Patologia e Semiologia, primeiras partes da Medicina”. É este primeiro tomo que nos interessa mais, pois nele Rodrigues de Abreu expõe toda a sua doutrina filosófica e científica. Extremamente interessante é a introdução crítica do livro, de autoria de Martinho de Mendonça de Pina e de Proença. Martinho de Proença veio pouco depois para Minas Gerais, e viveu em Vila Rica do Ouro Preto de 1734 a 1737, tendo sido nomeado Governador da Capitania em 1736. Trata-se de um futuro membro da burocracia colonial que surpreende por sua erudição a respeito dos mais variados temas científicos e filosóficos da época.Vale a pena citar alguns de seus argumentos anti-mecanicistas: “Não consiste a vida na organização dos corpos viventes, porque a organização não é outra cousa mais que o natural mecanismo, consistindo na figura, sito e proporção das fibras, dos canais, e das válvulas, na sua dureza, elasticidade, ou brandura, e nas mais disposições mecânicas e maquinais ... assim, constituir a vida na organização é cair no mecanicismo, que se procura evitar; além de que os viventes conservam a organização depois de perderem a vida”. E mais adiante: “Dizer que a vida consiste no movimento não pode ser, porque todos confessam não têm vida o fogo, luz e corpos celestes, os quais têm muito movimento, e reconhecem vida nas plantas, em que o movimento se não percebe com os sentidos; além de que o movimento é uma cousa, ou modo ativo, que causa e é princípio do movimento interior”. No texto intitulado “Ao Leitor”, diz o doutor Rodrigues de Abreu que na obra “se compreendem instituições ... fundadas no sistema do engenhoso e famigerado George Ernesto Stahl, doutrina do presente século, e nascida na Prússia, mas com tantos créditos já em toda (a) Europa, que se faz preciso (sendo este Reino uma das mais principais partes dela) o fazê-la também aqui pública aos curiosos”. Muita atenção é dispensada pelo autor a explicar a doutrina dos mecanicistas aplicada à medicina: “Fundam a sua Física em princípios mecânicos, e por este mesmo modo passam a discorrer na Medicina...” Diz o seguinte a respeito dos fundamentos da doutrina stahliana: “Assenta em que a nossa Alma Racional, ou Entendimento, ou o Princípio Movente vital, dotado de um sentido interno ciente e sutil, obre tudo no corpo para certos fins, ou que a Natureza Humana (nomes todos sinônimos, que se têm pelo mesmo nesta hipótese) produza, exercite, e encaminhe por uma intenção, e estimação moral todos e quaisquer movimentos, tanto voluntários como vitais e naturais, vivificando continuamente o corpo orgânico, que formou e aparelhou primeiro no útero, e que conserva depois no teatro do mundo até sua total corrupção e terminação”. De nosso ponto de vista, o Tomo Primeiro é o mais interessante de todo o extenso conjunto, ao mostrar o embate das idéias que circulavam na época, abrangendo Medicina, Química, Física, Biologia, Filosofia, etc., com a repercussão que tudo isso causava em Portugal. Contemporâneo de personagem tão erudita e imersa nos debates intelectuais como José Rodrigues de Abreu, é Luís Gomes Ferreira, também autor de obra volumosa, todavia de natureza muito diversa da anterior. Gomes Ferreira nasceu em São Pedro de Rates, perto de Barcelos18. Suas datas de nascimento e morte são desconhecidas, mas ele esteve ativo por praticamente toda a primeira metade do século 18. Nunca se diplomou em medicina, mas estudou cirurgia no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, onde recebeu carta de cirurgião em 170518. Após viver um curto período em Vila do Conde, viajou para o Brasil. Depois de permanecer algum tempo na Bahia, transferiu-se em 1710 para a região mineira, onde por duas décadas praticou a medicina e coligiu dados que usaria na composição de seu livro “Erário Mineral”, publicado em 173519. A obra foi quase exatamente contemporânea da Historologia de Rodrigues de Abreu, mas dela diverge pela ausência das graves inquietações teóricas desta, e pela presença constante de uma mistura de medicina européia com práticas indígenas e africanas, ao lado de uma certa dose de crendice e mesmo superstição. O próprio autor tem consciência de que sua composição será criticada, e se justifica no Prólogo ao Leitor : “... mas como a censura é já muito antiga em todos quantos autores dão ao prelo seus escritos, já eu estou desenganado de ser mais censurado que pessoa alguma, assim por ser o primeiro que escrevo das enfermidades das minas do ouro, como por reconhecer as muitas faltas, que neste pequeno tomo ofereço. Por ser o primeiro, não me deves argüir, antes merece a minha curiosidade algum louvor; pois saberás, que para escrever estas notícias de clima tão remoto, e de remédios ainda não escritos em menos tempo de um ano, tendo a precisa ocupação de mineiro, o não fizera, se não fosse movido de alguns confessores e amigos, e por servir à república destas Minas, povo tão dividido e tão numeroso, compadecendo-me das calamidades que padece, pelas ter visto. Se for censurado por escrever de Medicina, sendo professor de Cirurgia, respondo que a Cirurgia é parte inseparável da Medicina; e demais, que nas necessidades da saúde os cirurgiões suprem em falta dos senhores médicos, e com muita razão em tantas e tão remotas partes, que hoje estão povoadas nestas Minas, aonde não chegam médicos, nem ainda cirurgiões que professem Cirurgia, por cuja causa padecem os povos grandes necessidades. Para remediar estas, e dar luz aos principiantes nesta região, sai a público este Erário Mineral”. Mais adiante no Prólogo, ele justifica a razão de ser do livro e se precavém contra possíveis detratores: “Escrevo observações, e não autoridades, e também te revelo os segredos que tenho alcançado por minha indústria sem alguma reserva, como fazem todos os autores...”. “...eu não peço perdão de nada, quem achar que dizer, não mo perdoe, nem será necessário encomendá-lo: os que forem mais amantes de palavras, que de obras, comprarão os livros mais pelo feitio. Tudo o que escrevo é para honra e glória de Deus, e para proveito do próximo; e nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua calúnia; e se como diz S. Jerônimo, no tabernáculo de Deus cada um oferece o que tem; no teatro do mundo, cada um diz o que sabe, ou o que pode”. “O mais ignorante é o que mais presume: razão por que a tudo se atreve o que mais ignora; por que há de ter ânimo para censurar o que os outros escrevem, quem não teve brio nem aplicação para escrever? Nenhum está tão longe de si como o desvanecido, nem tanto em si como o considerado. Se queres aproveitar, não leias para escurecer; lerás para saber, se leres com os claros do teu juízo: forma desta obra o que te parecer”. O livro tem cerca de 600 páginas e é dividido em 12 tratados, cada um por sua vez subdividido em vários capítulos. Os tratados se seguem como uma coleção de assuntos diversos, sem nenhuma preocupação aparente de ordenamento teórico, como se pode verificar pelos títulos: “Da cura das pontadas pleuríticas”, “Das obstruções”, “Da miscelânea de vários remédios”, “Das deslocações e fraturas”, “Da rara virtude do óleo de ouro”, “Dos segredos, ou remédios particulares, que o Autor faz manifestos”, “Dos formigueiros, e outras doenças comuns nestas Minas”, “Da enfermidade a que chamam corrupção do bicho”, “Dos resfriamentos”, “Dos danos que faz o leite melado, água ardente de cana”, “Dos venenos e mordeduras venenosas”, e “Do escorbuto ou mal de Luanda”. A simples enumeração dos 12 Tratados é suficiente para mostrar que a origem do livro e o público a que se destinava não era o português do Reino. A estrutura da obra não poderia ser mais diferente daquela de Rodrigues de Abreu. Longe está também o cuidado com a elegância da linguagem, cultivada por Rodrigues de Abreu em sua prosa refinada e culta. Todavia, a carência quase absoluta de médicos no Brasil e a inexistência de textos escritos especificamente para as necessidades de atendimento médico da população mineira admitia composições desse gênero, rude, empírico e pragmático. O tom de boa parte do livro pode ser ilustrado com o trecho a seguir, extraído do Tratado V, p. 265: “Da rara virtude do óleo de ouro; das muitas enfermidades para que serve, e observações de curas excelentíssimas que com ele se têm feito. Serve o óleo do ouro para a maior parte dos afetos cirúrgicos, como adiante se mostrará. Óleo de ouro se faz com sal, água forte e ouro; cuja receita anda em vários autores, e por essa causa a não exponho”. É interessante notar que o método de dissolver ouro com água régia (mistura de ácidos nítrico, ou água forte, e clorídrico, que se produz do sal marinho) está correto do ponto de vista da química moderna. Dentre os muitos casos médicos narrados em relação ao óleo de ouro, veja-se este (p.290): “Nestas Minas do Sabará, tendo o Capitão Matias Barbosa da Silva umas razões com o Brigadeiro João Lobo de Macedo, remeteram o caso às mãos repentinamente, de que resultou ficarem ambos feridos; porque cada um tinha a sua faca, com o que fazia o que podia: ficou o Brigadeiro com uma facada junto ao embigo, não penetrante, e o Capitão com outra no bucho do braço esquerdo, que lhe chegou ao osso: este, como ficou com nervos, músculos e tendões ofendidos, mal podia bulir com o braço. Fui chamado para o curar, o qual curei com óleo de ouro, pondo-lhe círculo ao largo, para depois pôr os mais, e em breves dias sarou, ficando melhor do braço...” . O uso de medicamentos obtidos da flora nativa pode ser visto, por exemplo, na seguinte narrativa ( Tratado VII. Dos Formigueiros, pp. 415-416): “Observação única de uma diarréia desesperada em casa do Doutor Ouvidor Geral da Vila Rica do Ouro Preto, que estando o doente feito um esqueleto, sarou com os ditos pós por modo de milagre. No ano de 1724, morando eu no arraial do Padre Faria, casualmente passei pela porta do dito Ouvidor Antônio Bercó del Rio, e Provedor da Fazenda Real, e sendo chamado por um criado seu para levantar a espinhela a um escravo do tal ministro, ao qual um médico assistia, e com efeito a fui levantar no outro dia de manhã: estando lavando as mãos, depois da obra feita, chegou o tal médico, e perguntando de que modo tinha levantado a espinhela, lhe disse que com ventosa, o que aprovou, e conversando comigo me disse que aquela obra de levantar a espinhela a mandara fazer, para ver, se por acaso paravam os cursos daquele enfermo tão antigos, e tão rebeldes, que todos os remédios tinham desprezado, pois se tinha cansado bastantemente, e lhe tinha aplicado variedade deles; ouvindo isto, lhe perguntei se tinha já aplicado aquele grande remédio, chamado por língua da terra pacaquoanha, ou por outro nome poalha; ao que respondeu que ainda não; pois advirta vossa mercê, senhor doutor (lhe disse eu), que é um grande remédio; porque o tenho experimentado várias vezes em câmaras, ou sejam antigas ou modernas, e sempre com bom sucesso; ao que respondeu, que era bom, e que o receitasse eu; ao que repugnei, dizendo que o doente era seu, e que o receitasse parecendo-lhe; mas tornando a repetir o mesmo, lhe disse que o tal remédio tinha tão pouco que receitar, que muitos boticários já sabiam que quantidade se dava, e como se tomava; a tudo isto assistiu presente o dito criado do tal Ouvidor. Com esta palavras, e sem nenhum de nós o receitar, nos despedimos. Passaram-se três dias, sem que o tal médico tornasse a visitar o enfermo, e eu menos, por não ter obrigação para isso: no fim deles perguntou o dito ministro ao tal criado pelo enfermo, o qual lhe respondeu que depois que estivera com o cirurgião, quando levantou a espinhela, não tornara a ver o doente, e examinando o que se passara, perguntou se se lembrava do nome do tal remédio, e dizendo que sim, lho mandou buscar a uma botica, que o boticário deu, e ensinou o como se havia de tomar o tal remédio, e dando-lhe no mesmo dia, lhe passaram os cursos, fazendo alguns com ele. Começou a comer com boa vontade, e em poucos dias se nutriu e tomou carnes”. Não se pretende aqui ser exaustivo na análise de obras tão extensas como as de Rodrigues de Abreu e de Gomes Ferreira, mas sim de estabelecer um paralelo entre elas, examinando-lhes suas várias características. Por isso, os excertos apresentados são fragmentos que possam ilustrar o pensamento de seus autores e o estado do conhecimento e da prática médica em seu tempo e lugar. É , por exemplo, interessante ler a opinião de Gomes Ferreira sobre o leite, o qual ele reputa um verdadeiro veneno (Tratado X. Dos danos que faz o leite, p. 443): “O leite, sendo na estimação de muitos um bom prato, é na verdade muito prejudicial à saúde; porque a primeira cousa que faz a quem o continua, é tirar-lhe e extinguir-lhe a vontade de comer; a segunda é fazer obstruções, e introduzir flatos e outras várias queixas procedidas das tais obstruções; a terceira é introduzir más cores: queixas tão custosas de curar, como penosas a quem as padece; e para bem se perceber o que é o leite, façam a seguinte observação. Quando mugirem as vacas, lancem sempre o leite em uma panela, e no discurso (sic) de poucas semanas vão ver a tal panela por dentro, e verão que, se for vidrada, estará o vidro em algumas partes comido, e no barro seus buracos; e se a panela não for vidrada, serão os buracos maiores; tudo procedido da malignidade dele...”. Não obstante suas boas intenções, Gomes Ferreira se equivoca em interpretações de fenômenos, deixando-se levar pela fantasia, pelo preconceito ou pela superstição. Lê-se, por exemplo, no Tratado XI (“Dos Venenos”, p. 474): “O sangue menstrual das mulheres, estando no atual fluxo dele, é tão perverso e maligno que faz os efeitos seguintes. Os panos das suas camisas, aonde ele chegou, ainda que se lavem quinhentas vezes, se usarem deles nas feridas ou chagas as fará inficcionar e alterar, de sorte que serão muito trabalhosas de curar, por causa do mesmo veneno. Se alguma mulher, andando com a conjunção, entrar na adega dos vinhos, os fará referver, azedar e turbar; e o mesmo sucederá no lagar ou cuba dos azeites, porque ficarão como leite; o remédio desta perda é tão fácil como ourinar-se-lhe (sic) dentro qualquer homem, que logo ficará como de antes, e é experiência certa”. Se muito pouco se tem estudado do papel e da obra de um autor como José Rodrigues de Abreu, situado fora dos centros onde se produziu o caudal principal de conhecimento que veio até nós, menos ainda se conhece da atuação de agentes tão periféricos como Luís Gomes Ferreira. O tom de divulgação do “Erário” todavia, provavelmente terá facilitado sua circulação entre os contemporâneos, ao contrário do texto de Rodrigues de Abreu, pouco acessível, erudito e muito extenso. Para a moderna historiografia, no entanto, é importante conhecer todas essas diferentes visões da ciência para se poder conseguir um panorama abrangente da época. Não se trata, em absoluto, de pretender buscar quem estava “certo”, do ponto de vista da ciência moderna, mas sim de procurar examinar como se pensava ou se agia, no âmbito científico, no tempo e no espaço em estudo. No caso abordado isto é tanto mais necessário quando se consideram a contemporaneidade e as similaridades em muitas das experiências de vida dos dois escritores. |
Bibliografia |
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