Às vezes chegam cartas

 

NICOLAU SAIÃO


SOBRE CRUZEIRO SEIXAS

 

Em 2018 Cruzeiro Seixas enviou-me duas cartas.

Uma delas agradecendo com fraternal pormenor o envio que lhe fizera de livros meus.  A outra, que carreava a oferta de um seu catálogo-livro, era mais extensa e nela se alongava em reflexões de índole pessoal norteadas por uma comovente humildade de verdadeiro fabro, de hacedor  sem jaça, sem prosápia (como a que enroupa certos cavalheiros de mão romba que se crêem irmãos de predestinados pelas deusas da paleta) – ele que é indiscutivelmente entre nós um dos melhores desenhadores deste tempo, senhor de uma imaginação transbordante e fecunda que lhe permitiu navegar, como diria Péret, “sem norte e sem estrela através das tempestades, rumo aos areais rumorejantes de ágatas onde brilha o olhar provocante das opalas”.

Elas trouxeram-me de pronto à recordação uma certa tarde, cerca de 50 anos antes, em que o conheci, nos conhecêmos, numa galeria de pintura, no decorrer da inauguração de uma mostra de um autor que já não lembro quem teria sido. O que não esqueci, ao ser-me apresentado por um colega de veraneio, foi a sua figura de fino recorte: um senhor esbelto de indumentária em cinzento claro, camisa azul marinho, cabelo grisalho acentuando uma delicadeza bem espalhada nuns olhos perscrutadores e abertos numa espécie de sonhadora atenção.

Conversámos seu bocado e, sem me lembrar de muitos pormenores, apenas guardei que faláramos de surrealismo, de pintura e de como e porque razão me encontrava eu ali.

E estivémos algumas décadas sem contactarmos de novo. Embora eu fôsse tendo, como ele decerto em relação a mim, notícias do seu trajecto, da sua demanda, ele que com Mário Cesariny e António Maria Lisboa – Pedro Oom era de uma outra dimensão, ainda que paralela – constituíam a trilogia que, no surrealismo em português, sentia que estava mais perto da minha própria caminhada.

Notícias essas dadas ora por um filho meu, ora por um comum amigo, ora pelos periódicos que até mim chegavam.

Ora bem: tempos atrás escrevi eu que o Surrealismo tem, nos últimos anos, estado a ser objecto de uma nova e forte atenção de ensaístas, de críticos e investigadores da escrita e da arte em geral. Isso é claramente perceptível e, diga-se mesmo, perfeitamente entendível, uma vez que ele nunca se propôs – fosse nos seus reais praticantes fosse nas suas obras vivas – ser um elemento passageiro ou um modo particular dependente de características momentâneas de moda ou de enfoque.

Cruzeiro Seixas e Isabel Meyrelles, dois dos primeiros cultores do surrealismo entre nós e felizmente ainda vivos, são duas figuras fundamentais dele e nele presentes.

Eu colocaria em Cruzeiro Seixas, assim e aqui, a sua limpidez como num espelho policromo e encantado: dum lado a magnificente pintura, do outro a poesia suscitadora, ática e muito rica a um tempo, deste poeta, autor que pela escrita forma e dá imagem em réplica, a seu modo, ao universo de criação originalíssima que é o do pintor que sempre soube excursionar de maneira muito pessoal pelo mito, altamente legítimo e inteiramente salubre.

No que lhe diz parte, a sua viagem pessoal dentro do surrealismo tem sempre sido uma heterodoxa maneira de encarar o mundo e os seus prestígios ou apoquentações dum ponto de vista filho da curiosidade, da indagação visando as possíveis descobertas, da ligação aos segredos da existência a que podemos ter algum acesso se mantivermos a mente aberta e atenta ao que se vai passando e que vem a seguir ao que se passou em anos de que a nossa vida esteve repleta – não só os factos da história social, quotidiana, mas tudo o que se pôde imaginar de fecundo ou mesmo possível: a magia que parte da escrita ou a ela conduz, a pintura no mundo próprio ou alheio – e tudo o resto que nestas duas se consubstanciam.

Nicolau Saião, 2020

 

Duas cartas de Cruzeiro Seixas

1.

  Amigo Nicolau Saião 

  Não são nada satisfatórias as notícias daqui.

  O que vai sendo noticiado não é de forma alguma o que verdadeiramente tem a ver comigo e com o Surrealismo.

  Vivemos em sociedade e nela, quer queiramos quer não, uma enormíssima parte de nós está integrada. Gritamos liberdade, liberdade, liberdade do fundo de uma prisão. Além disso tenho 97 anos e a minha vista não me permite que leia uma linha. Os seus livros deram-me enorme satisfação mas tenho que esperar por alguém disposto a ler-me algumas páginas.

  Mesmo nestas circunstâncias é sempre um prazer encontrar um velho amigo como o é o Nicolau Saião. Destes últimos acontecimentos envio-lhe um catálogo onde pode ler alguns desaforismos da minha autoria.

  Felicitando-me pela receção dos seus livros, felicito-o pela constância da sua visão.

  Infelizmente já não me vai ser possível, naturalmente, voltar a Portalegre, à casa do Régio e às manufacturas de tapeçarias, mas no entanto espero ainda o rever.

  Por hoje fica a gratidão comovida, o velho abraço e os melhores votos, do

    “Com a admiração e a amizade do Cruzeiro Seixas” 

                          Artur (escrito pelo seu punho)   

                                                                      28 Março 2018

2.

   Amigo Saião 

  Não é para mim nem para si satisfatória a resposta que posso dar a uma longa carta. Os meus 97 anos tornam o dia-a-dia muito difícil… É uma série infinita de impossibilidades, como a de ler e desenhar.

  Passei despercebido mas fui “amado” por gente como o Cesariny, o Herberto Hélder; e sobre o que fiz, escreveram críticos, como Edouard Jaguer, José Pierre, Franklin Rosemont, etc.

  Meus pais não tinham meios para me possibilitar a frequência de um curso e assim, durante toda a minha vida, vivi em empregos desenhando dentro da gaveta da minha secretária, isto desde 1948.

  Evidentemente que nunca tive um “atelier”…Essas gavetas e a minha homossexualidade foram a grande família da minha liberdade.

  Envio-lhe fotocópias de um texto de Cesariny e outro de Ernesto Sampaio.

  Hoje estou numa instituição que dá pelo nome de “Casa do Artista”, onde falta espaço, alimentação, etc. etc.

  A “minha obra” parece-me a mim ter sido mais em quantidade do que em qualidade.

  A maior parte dos artistas que conheço são grandes comerciantes; eu, pelo contrário, dei, perdi, deixei roubar a maior parte daquilo que fiz.

  Disso me envaideço imenso. E tudo isto me dá um acréscimo de consciência e responsabilidade, que muito prezo.

  Acresce a estas dificuldades, que são jovens que fazem o grande favor de escrever estas cartas e ler uma página aqui e ali dos livros que recebo.

  O seu nome é uma garantia de honestidade intelectual e é uma das companhias possíveis neste acanhado espaço geográfico.

  Comovidamente lhe agradeço que se tenha lembrado de mim.

  O abraço forte e os melhores votos do…

                                                                        Artur

                                                                                      17/06/2018

    (O papel destas duas cartas tem, ao cimo, impresso um desenho – uma espécie de ex-libris – constituído por um cavalo cuja cabeça é uma mão empunhando uma caneta de aparo, das que se usavam na escola)

 


ns