As pedras

 

 

 

 

 

 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO


“E AS PEDRAS… ESSAS… PISA-AS TODA A GENTE!…”
(Último verso do soneto “Desejos Vãos”, de Florbela Espanca)

Ao longo da vida, sempre foram e continuam a ser muitos os que me dizem ou confessam nunca terem tido interesse, muito menos prazer, nas matérias de Geologia e de Mineralogia (incluindo a Cristalografia). Estou em crer que esse desinteresse ou desprazer é, preto no branco, ausência de qualidade e de estímulo no respectivo ensino. Só pode ser isto.

Nestes oito anos que levo de participação no Facebook, são muitos os meus leitores que, tendo tido desinteresse ou desprazer no estudo destas matérias, me dizem estarem a encontrar, nelas, interesse e, até, alguma beleza. É verdade que só gostamos daquilo que nos é, verdadeiramente, dado a conhecer. Também é verdade que só ensina ou comunica bem, quem conhece e ama aquilo que ensina ou comunica. É verdade que, a par dos muito bons professores que ensinam esta matérias nas nossas escolas, e eu conheço muitos, também é verdade que há os mal preparados e destituídos do necessário entusiasmo, incapazes de despertar o interesse dos alunos, com emprego assegurado até à reforma e pensão garantida.

Para grande satisfação minha, o número dos meus leitores continua a crescer (hoje, a esta hora, são 4:35, já totalizam (33 255), encorajando-me a continuar nesta caminhada.

Falemos, pois, de pedras, começando pelo poema

“Desejos vãos”, da grande Florbela Espanca.

Eu q’ria ser o mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu q’ria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza…
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!…

Sem que muitos deem por isso, as pedras ocuparam, desde sempre, um espaço importante no quotidiano do Homem. Elas estão em todo o lado, a começar pela capa rochosa que envolve a Terra e os planetas ditos telúricos (do latim “Tellus”, a deusa romana mãe da Terra) a que os geólogos chamam litosfera (do grego “lithós”, pedra, e “sphaira”, esfera), ou seja, a esfera de pedra. Estão nos asteróides e nos núcleos dos cometas. Podemos vê-las nos meteoritos e através de fotografias, nas superfícies da Lua e de Marte.

Bem perto de nós, temo-las em grande quantidade e podemos tocar-lhes, nas montanhas, nas arribas do litoral, nos taludes das estradas e nos seixos de praias e de rios.

O conceito de pedra, como sinónimo de rocha, e os conhecimentos relacionados com esta realidade do chão que pisamos percorreram uma caminhada tão longa quanto a do “Homo sapiens”.

Nas suas cavernas, os nossos antepassados da Idade da Pedra encontraram abrigo e segurança e foram pedras, com destaque para o sílex, algumas das suas primeiras e mais importantes matérias-primas na confecção dos seus utensílios.

Com grandes pedras (megálitos) se construíram antas, afeiçoaram os menhires que reuniram em cromeleques, velhos de mais de 5000 anos. Foi das pedras que, então, retiraram o cobre e o estanho com que praticaram a metalurgia do bronze, e do ferro, com que, cerca de 3000 anos mais tarde, fizeram outro tanto. Com pedras se fortificaram os castros da Idade do Ferro e ergueram castelos, catedrais e palácios ao longo da História e expressaram arte na estatuária de todos os tempos. Estão nas choças dos primeiros povoados e fizeram a monumentalidade de assírios, egípcios, gregos e romanos, bem como a do Renascimento e do Barroco.

Foto na Internet.

Pisamo-las nas calçadas e pavimentos, nos degraus que subimos e descemos, no cascalho e na gravilha que suportam o asfalto das rodovias, e nos balastros sobre que assentam chulipas e carris de ferro. Em tosco, ergueram muros e paredes, quer de pedra solta, quer de alvenaria unidas com velhas argamassas feitas a partir do calcário. Vemo-las nas antigas cantarias, aparelhadas a picão, maço, ponteiro e bujarda, e, nas modernas construções, em placas serradas, polidas ou despolidas com recurso a máquinas e ferramentas diamantadas. Foi nelas, enquanto ardósias, que gatafunhámos as primeiras letras e os primeiros algarismos.

Delas extraímos o ferro, o cimento e a brita com que se faz o betão e, ainda, a cal que alveja o casario alentejano e algarvio. Fazem o polícromo dos vitrais que coam a luz, tida por celestial, que entra nas catedrais da Idade Média e fazem as amplas vidraças da recente arquitectura urbana. Fornecem o alumínio da imensa caixilharia que caracteriza a moderna construção civil e todos os metais com que se constroem navios, comboios, aviões, automóveis e naves espaciais e são utilizadas em todos os electrodomésticos. São matéria-prima de quase tudo o que são peças de televisores, computadores e telemóveis. Estão nos pratos, copos e talheres e nos utensílios de cozinha, nas jóias e bibelots, no silicone dos implantes em medicina reconstrutiva e nos muitos sais que alimentam as múltiplas indústrias químicas. E se tivermos em mente que o chão que nos dá o pão, ou seja, o solo, resulta da alteração das pedras, podemos afirmar que são elas, o suporte da nossa vida.

Do sílex e do bronze dos primeiros machados à pechblenda, o mineral de onde se extrai o urânio, base da terrível ameaça nuclear, passando pelos pelouros usados em catapultas e bombardas e pela pederneira de mosquetes e bacamartes, as pedras foram e são uma constante na tenebrosa e altamente proveitosa (para os chamados “senhores da guerra”) indústria bélica, um flagelo que, numa caminhada de centenas de milhares de anos, sempre acompanhou a humanidade. No seu inesgotável engenho, o homem retirou das pedras todas as matérias-primas com que fez o progresso, em paz, mas também, desgraçadamente, a guerra.

Nota: “A Pedra na Ciência e na Cultura” foi um livro que escrevi a pensar nos professores que ensinam geologia nas nossas escolas e que continua a encher espaço no armazém da editora. Isto porque, à semelhança da generalidade dos portugueses, são muito poucos os que compram livros, para além do manual de ensino adoptado.