As nossas armas

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES


MEMÓRIAS DA GUERRA COLONIAL / BISSAU
As nossas armas


Não me recordo de o meu pai ter espingardas em Bissau, mas devia ter, porque eu o ajudava numa estranha tarefa, que era a de recolher desperdícios metálicos para carregar cartuchos, depois de transmutados. Num bidão velho derretíamos aquele material, que depois era coado pela tampa esburacada do bidão para sair em lágrimas ou em bolinhas. Lembro-me tão bem, fabricávamos isso no pátio do comprido casarão térreo, à sombra de um respeitável poilão. Mas esse chumbo, com que enchíamos os cartuchos, me parece que só serviria para uma espingarda que, a existir em 1959, melhor me teria servido, ou à minha mãe, do que o estupor da carabina das guerras de pacificação de Teixeira Pinto, entregue pelo Governo da Província para defesa da família. A carabina usava balas, pesadas, bem compridas e loiras por sinal, e, sob o cano, corria uma baioneta. Deram-nos aquela merda para assustar os terroristas, esta gente cuida que todos são estúpidos como eles. É o que penso agora e nem me espalho em mais considerandos.

Pois, eu só me lembro da Flobert, e a Flobert nem usava aquele chumbo nem cartuchos, lembro-me de umas coisitas pequenas, se calhar os fulminantes, adiante. Não podia ter guardado as memórias todas como se as células cinzentas fossem uma gaveta. A Flobert conseguia eu usar, por acaso. Várias vezes o meu pai me levou a caçar pombos verdes e era a Flobert que levávamos. Nunca acertei nem numa vaca, caramba!, sou míope mais que uma toupeira. E lembro-me de o meu pai me ter trazido às cavalitas em certa ocasião, o mato devia ser agressivo e ferir as pernas.

Volta e meia o meu pai ia com outros fazer caçadas noturnas, caçadas de lanterna enfiada na cabeça, lá apanhavam uma gazela ou um porco do mato. Então o meu pai, caçador, não tinha só a Flobert. E nem a Flobert me passou para as mãos em vez da carabina.

Não me lembro de nenhuma espingarda, lembro-me, isso sim, de fazer chumbos e de carregar cartuchos no pátio que no meio tinha uma velha balança e no extremo as ruínas de uma prisão, do tempo em que os trabalhadores da ponta eram escravos.