As memórias de Eduardo da Cunha Júnior

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Isto não é um romance, declara Cunha de Leiradella, em título do seu último livro. Então é o quê?, pergunta logo o leitor. Darei resposta muito estranha a uma pergunta que define um problema literário que o vai sendo cada vez menos, porque cada vez menos, face à hibridação, interessa classificar, e classificar em géneros literários – tudo se misturou já. Classificarei então o romance como cantiga de amigo com leixa-pren e é por esse caminho que avanço na minha leitura. Anoto, entretanto, que os assuntos medievais não só são compatíveis com o livro como constituem parte valiosa da temática do autor.

Parece – e é – uma história para jovens este livro que conta as recordações de estudante de Eduardo da Cunha Júnior. Eduardo é o protagonista das obras de Cunha de Leiradella, escritor luso-brasileiro que neste livro vai muito longe na indagação do passado próximo, que pode até ser o dele. O escritor só fala daquilo que viveu, daquilo que lhe pertence, mesmo imaginado. Portanto façamos de conta que são memórias dele, donde este livro, tão delicado em tudo, corresponde a uma autobiografia parcial.

As cantigas estruturam-se muitas vezes, sobretudo as de amigo, em repetições. A estrutura de Isto não é um romance é então o leixa-pren, a repetição. Passa-se de capítulo para capítulo desenvolvendo assuntos a partir de algo que se repete, mais ou menos textualmente, como um refrão. Como a repetição é interior e não final, melhor então é chamar-lhe leixa-pren.

Repetição de quê? Dos pontos fortes da narrativa, os nós psicológicos, as dores. Os pais de Eduardo chamavam-lhe burro por ele só conversar com as tábuas do teto. Divaguemos: se os pais só sabem censurá-lo dessa maneira repetitiva, que havia o Eduardo de fazer? Ele recolhe ao silêncio, isola-se, cria um muro à sua volta para não precisar de comunicar com ninguém. Mais tarde, já adulto, ao recordar, ele só terá por companhia a Minha, uma pega, que não é a azul, Cyanopica, um gato e a Antónia, que lhe faz a comida e a limpeza da casa.

Primeiro leixa pren: o Eduardo tem muita dificuldade em comunicar, o que será fatal para a sua imaginada felicidade, no romance de amor que se vai intensificando ao longo do livro. Bia é o problema, a garota até se aproximou dele, ele gostava dela e dos seus olhos mais que verdes, mas não conseguia abrir a boca para dizer ao menos o nome dela, Beatriz. Creio bem que nem sequer chegou a chamar-lhe Bi, diminuto diminutivo que, em teoria, seria mais fácil de pronunciar. Infeliz citação da musa de Dante, que logo assoma ao espírito de um leitor atento à literatura que se vai desfiando no interior da obra literária.

Então, o segundo leixa-pren é a incapacidade de interagir com a menina Beatriz, Bia, ou Bi.

Terceiro leixa-pren é a presença intensa de Dante, sobretudo pensando que, em muito muito jovem, o Eduardo tinha medo de ir parar ao inferno. Quarto, entre outros menos intensos, é o leixa-pren de Um amor feliz, de David Mourão-Ferreira, cuja leitura acompanha o desfiar das memórias de Eduardo, que não acredita na felicidade, sim em momentos felizes, e alguns conheceu ele, quando a sua Beatriz tentou em vão chamá-lo à responsabilidade dos atos da fala. Porém, encerrado no seu casulo de mutismo, ele não conseguiu manifestar-se. Na verdade, Eduardo, no desfiar dos acontecimentos, descobiu um modo de falar, um modo de interagir com a menina das tranças loiras e dos olhos mais que verdes – a guitarra. E aqui verificamos que a menina dos olhos mais que verdes também podia chamar-se Joaninha, em virtude de um outro leixa-pren: Eduardo, ao fechar-se no seu quarto e ao conversar com as tábuas do teto, invoca a Voyage autour de ma chambre / Viagem à roda do meu quarto, de Xavier de Maistre e, por isso, também as Viagens na minha terra. Ou não precisa, o leitor vai lá ter, descreve essas viagens interiores sem o autor precisar de ser mais óbvio, embora Cunha de Leiradella invoque o tema da viagem ao trazer Céline à cena, com Voyage au bout de la nuit. O livro é muito delicado, já o disse, discreto, de uma tão grande simplicidade que parece ter sido escrito para crianças. O leitor é que está decerto a tornar tudo muito complexo.

Tenho de abrir parágrafo para assinalar algo que todos sabemos mas ainda não vi suficientemente comentado nem teorizado, verdade sendo dita que me pronuncio sem ter pesquisado o assunto; a nossa leitura, hoje, é muito diferente da de há uns 30 anos e antepassados. Eu li o livro de Cunha de Leiradella desviando-me dele para as suas referências, continuamente, via Internet/telemóvel: fui ver se a Beatriz de Dante era loira e de olhos verdes, ouvi Luís Góes cantar o “Fado Hilário” e as variações, no YouTube, o Carlos Paredes, com a “Balada de Coimbra”, enfim: usei as redes para testar uma outra rede, não informatizada, que sempre existiu, a das referências numa obra de arte a muitas outras, neste caso referências ao fado de Coimbra e a alguns dos seus representantes mais ilustres.

Os autores ficam sempre à espera de uma frase de apreço, um gostei muito, é muito bom, etc.. Direi algo de diferente, esperando que o livro esteja acessível aos portugueses via Amazon ou familiar: a melhor prenda que pode dar a quem ama é este pequeno livro de Cunha de Leiradella, belo por dentro e por fora: ilustrado, com projeto gráfico muito atraente, é uma prenda de Natal inesquecível.

 

CUNHA DE LEIRADELLA
Isto não é um romance
Capa, ilustrações, projeto gráfico:
Fernanda Mello & Angelo Bottino
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021