ANTÍMIO DAMIÃO
Não. Eu não era suposto ser porque ainda não sabia cuidar de mim, por isso, perdi-me por instantes. Mesmo assim, vi-me de relance. Tal bastou para dar conta do recado. Comecei a suar. Um jogo, por Deus!, um jogo confuso. Como tal, deixei de ser o que era. No corredor da vida, borrões de luz e cor, rostos apagados pelo medo. Nos bares, o café caía-me das mãos e toda a gente parava a olhar para mim. Precisava de ar. Saí. Mais tarde, no jardim, pus-me a cismar com o que era. Não creio em intrigas nem atribuo razões extraordinárias a fenómenos estranhos, aliás, tendo a relativizar tudo e a eleger factos reais, mas a verdade é que me descobri outro, prestes a não ser. E logo eu, homem pragmático, moderno, cidadão do mundo. Maldita a hora em que me vi. Independentemente disso, nunca imaginei que as portas se pudessem fechar para sempre. Seja como for, por mais que o evite, aqui estou, imóvel, as mãos a tremer, aparando o queixo, a voz embargada. O ruído não existe, não existe; está em mim, na minha mente confusa, a correr-me no sangue; um fluido que corre e transborda; as veias estoiram por dentro, rebento, ou melhor, rebentar-me-ão se nada fizer. Preciso de me acalmar, de paciência. A voz dentro de mim entoa pouco do que sou. Até custa a crer que o faça, aliás, há muito que devia ter percebido isso. E tudo porque quero mais tempo de vida. De resto, se pudesse ver-me com os olhos dos outros derrubaria todas as teorias. Que se lixe. A Ciência domesticou-me e fez de mim o que não sou. Tudo tem um motivo, todos estão motivados, e até eu, vejam bem, obedeço a um propósito. No fim de contas, sou maior e vacinado, porém, tudo se apaga e se esfuma. Meu Deus!, tenho medo, embora não acredite em Ti. Má verdade, culpa minha. Todos pagarão na mesma moeda, pois a morte é o consenso do Homem. Por ora, conformo-me à sina dos vivos. Se pudesse rasgar a pele e hauri-la, por aí a deixaria num canto, como as cobras. Mais, é tarde para reinvenções. Pareço o miúdo que fui. Ronda-me a indecisão de ir ou de ficar, de ser e parecer sem nunca o ter sido. Olhem para mim: criatura que existe, ou melhor, que tem de ser o que jamais foi. Traço um retrato possível do que sou hoje, eu que fui vários, tantos que até me esqueci de ser eu. Agora sou o que calha. Esqueço a vontade de ser e às vezes não redijo estas linhas mas outro as escreve por mim. Sou o que penso e o que me transcende, o infinito de e em mim, um passo de gigante no vazio e no nada de mim mesmo. Espero ser tudo quando for nada ou deixar de ser quem penso para ser todas as matizes da palete do espírito. Ouço o canto da consciência a que me habituei. Percebo o quão rude e intensa é a sinceridade. Ao mesmo tempo, a constante encenação do mundo, os papéis dos outros, os sorrisos forçados, as ilusões da vida e a mentira não me chocam. Por tal motivo, não pregarei a loucos ou analfabetos, pois, para isso, basta esquecer. Embora me custe a admiti-lo, temo o futuro do mundo, todo ele absurdo, uma vez que o silêncio de nada vale. Quer eu queira, quer não, afasto-me das coisas que não entendo. A vida corre em meu desfavor. Haverá maior angústia que esta?
Verdade seja dita, ando por aí ao deus-dará, à procura de não sei o quê, atido à natureza, pelas ruas, a observar os outros; mente em corpo mecânico; dádiva envenenada. Ninguém entende que sou por descobrir. Sinto a alma longe, vizinha do fim, e entrego-me ao trágico destino de ter sido. Em síntese, a morte perpetua-se no ciclo do absoluto, no poço de todas as vozes e murmúrios. Estou a passos de não ser e não há senão o temor profundo de não ver esta noite como minha. Haja o que houver do outro lado, talvez acabe por me aceitar lá. Por enquanto, aqui estou aparentemente. Ao mesmo tempo, não me sinto estar, embora me pense e saiba aqui. Tenho vontade de não estar, de não olhar os outros e o mundo que escapa e que não sinto, abandonar as coisas à sorte sem saber ao certo se assim as quero deixar. Sei que sinto e penso, ou antes, julgo sentir. Procuro explicar o sentir e o pensar, porém, no limite, entrego-me ao desgaste e ao vazio inconclusivos. Aquando novo, procurava-me no fundo do ser. Não me achando vocacionado à companhia, apenas era na solidão. Com efeito, tudo me levava a ela e nela baseava a vontade. Por vezes, perdia-me numa multidão que não elegia ou aprovava. Hoje em dia, tenho a sensação de me ver com outros olhos, fora de mim. Guardo, pois, uma ligeira sensação de mim mesmo. Pelos vistos, a vida passa-me ao lado e tomo-a com desinteresse. Por ora, sou obrigado a estar aqui. Pondero e avalio as coisas, o que sou nelas, o que são elas para mim. Os minutos são horas, as horas dias, e por aí fora. Os dias distorcem o tempo conforme a visão que temos deles. Por seu lado, o tempo dissipa-se. A espaços, a outros pertenço. Restrinjo o convívio com quem não me merece. Como consequência disso, condiciono-me à volubilidade do espírito. Remeto-me para lá do ser e esqueço tudo, tudo, como uma sombra-demónio alargando-se da janela ao tecto do quarto. O real insinua-se na geografia do sonho, na cartografia da incerteza. Seja como for, a alma capitanear-me-á. Levo as mãos à cabeça. Sorte ingrata. O que toco e vejo não me pertence. Os halos dos candeeiros cintilam nas ruas, pontilhados pela geada. No jardim, a relva molhada, as folhas caídas e prensadas por milhares de pés; o desalento do vento nos álamos; a calma do entardecer; o silêncio. Tudo se resume à permanência ou ao decesso. Revejo-me em parte incerta, anulo-me. Não idealizo ou sou capaz de me superar, de achar a frase ou a palavra certa, o verbo ideal, o feito vero. Ainda assim, duvido e refuto, portanto, evoluo. Não conheço termo às ideias. Afasto-me das coisas, a voz desperta pensamentos e sou levado por eles. O olhar recai nas nuvens, e, ao vê-las, fujo e vagueio. A discência está aqui toda, basta ver e ouvir. A distância, por mais que exista, está sempre longe, ou seja, o corpo nega o que os olhos alcançam. Ao mesmo tempo, são tantas as causas e coisas da vida afastadas pelo pejo. Ainda que me limite a este jardim e ao corpo, vejo e sou visto como a sobra de um amor ido. Tudo se resume a ser e a estar sempre comigo. Ainda assim, a cidade, triste mãe urinada, atem-se aos afazeres constantes dos seus filhos. O que lhe faltará ainda que estes não tenham para ela?
Existo, é certo. No entanto, não basta existir. O tempo corre, sentenciado por dias chatos e pela espera do fim. Serei decerto o pó e as cinzas do amanhã. A infinitude do Universo assusta-me. Penso em lugares aonde não fui e dos quais não regresso como uma memória doutros tempos. Entretanto, eis-me no jardim, no meio destes troncos enegrecidos pela urina, a fugir da morte por intermédio dos sonhos. Que dia é hoje? Não sei. Os cães correm e os lampiões reacendem a luz tépida do quotidiano. Alguém berra nas ruas. Mais do mesmo. A certeza do espírito é o entendimento dos sentidos. O desejo, esse, aloja-se de mansinho, remói e dificilmente se vai. Os olhos tragam a beleza e os prazeres da alma. A luz da noite treme-me por entre os dedos. Nas íris bailam salpicos de luz. Na verdade, não sei aonde ir. Dezembro cai-me no colo e eu aqui, sob o escrutínio atento de um Deus ausente. Mal sabe Ele que toda a atenção se esgota. No banco do lado, o restolhar dum jornal manuseado com fervor e desalento. Ponto assente: purgar-me. Trocaria de bom grado o dever pelo vício, mas, no fundo, desejo-me em casa. Para lá da cidade, a dança lenta do crepúsculo. É sexta-feira. À cabeça me vêm amigos, noites passadas, coisas que já não sinto. Haja paciência para o futuro. Coço a cabeça. Que será disto tudo? Para onde se olhe: arengas e desejos por realizar. No rosto, o orgulho de ser só. Não se pode agradar a todos. Menos mal. Há madrugadas de choros secos, vidas esquecidas, mãos no escuro, a cegueira geral. Procuro janelas com outras perspectivas. A multidão patina no gelo do parque. Sagram o Inverno. O frio singra. Debruço-me adiante; a cabeça abscôndita nas mãos. Por cima, as ramadas das árvores e a última luz do ocaso a desmaiar na vegetação, no lago, na fonte. As trevas caiem e eu aqui, preso por consideração à vida dos que estimo. As mãos afundam-se nos bolsos. Nada acontece. O tédio existe como essência da vida. A noite cala os homens e os ratos. Remanesço no mundo, dialogo em silêncio. O pensamento dá-se, sem árbitro e juiz, livre de embargos, aberto ao acaso. A imaginação afugenta a banalidade. O espírito esgaravata o vazio como um cão a terra. É um deleite isto tudo. Que lega a vida ao saber? Que no fim é nada. Seja como for, o sonho é mérito a partir do momento em que a lógica termina. A fantasia desperta. Mais não penso. Pauso a nortear esforços. Tarefa cumprida. Resfolego e continuo a pensar. É tudo um teste. Paro de pensar e a vida, qual escrita rude em fino papel, suspende-se. Quanto tempo terei ainda?
Fantasmagorias de gabardinas e chapéus-de-chuva deambulam no passeio molhado. Lá vão eles, os vultos da minha curiosidade. Gostaria de persegui-los a todos. Para tal, fantasio-me nas sombras, percorrendo-as no limiar da luz. Travo amizade com gatos que me conduzem a vielas cuja treva se amplia, mas que, iluminadas, nada têm de medonho. Saio dos bares, de manhãzinha, à hora de os ardinas apregoarem as primeiras novas do dia. Depois, vou caminhar para a alameda, à sombra das acácias em flor e acabo sob a ponte, ante a aurora. Tenho a sensação de passear num sonho. O mundo é museu e eu a relíquia: inadiável banalidade. O frescor, o arrojo e a beleza da mocidade esmorecem num corpo cosido de rugas. Terei a noção da decrepitude? Para onde foram os verdes anos? Nada sei deles porque nada há a saber. Os velhos riem de si próprios e da finitude. Haverá realmente um sentido? Ou tudo surge demasiado tarde?
Curtos são os dias e indecentes as horas. Relego-me ao privilégio de ignorar, sustido pelas andas débeis da vontade e condenado ao reduto da carne. Acabo a franzir o sobrolho na linha de montagem do mundo e a encolher os ombros. Doce é a resignação. Instruo-me com a miséria humana, com as nuvens errantes no céu, com o suave cântico da melancolia. A noite chega como um deslumbre, os transeuntes regressam a casa e, por instantes, as preocupações cessam. Observo o alvoroço e tenho a necessidade de fazer algo, de ser alguém, de ser levado pelo futuro por mais breve que este seja, de recorrer à felicidade para aligeirar o peso do tempo. As luzes dos candeeiros irrompem novamente. Outro dia passa. A mesmice cumpre-se nos autocarros atulhados de rostos silentes, de olhares cansados, de existências vagas, de automatismos da solidão. Ei-la, a indiferença da urbe. Como viver livre em terra que não o é nem pretende ser? Aqui abundam loucos que esbracejam e falam sozinhos. Aqui é fácil perder o tino. Pior, nada põe cobro à loucura; ela expande-se, confiada ao espírito dos homens. Todavia, de tempos a tempos, a loucura sã cria-se à parte num mundo onde os sábios riem para aligeirar o ultraje da vida. De resto, navegamos na barcaça ecuménica do tempo. A música das horas encanta os surdos e os que preferem não ouvir. Promete-se o progresso e a felicidade – ardis evidentes quando esperados. A multidão assiste e sacode as bandeiras e grita e canta em uníssono. A evolução endossa a dor e a decadência. De resto, será bom que o para-lá-do-viver se prolongue na boca dos que cá ficam, lugar este onde se unem e ultimam todas as histórias. Seja como for, o tempo consome tudo. Esperarei, sim, em lugares doutras vidas, onde as almas dançam à luz intermitente de um palco despido. Os corpos gastam-se nas noites longas e tenho saudades dos que partiram, dos velhos amigos, das antigas casas, das chuvas de Outono, dos gritos de minha mãe, dos gatos vadios, das paredes de pedra e musgo, dos dias curtos e do escurecer das ruas no Inverno. Nas minhas costas batem agora as portas de todas as casas onde vivi. Antes, fugia com medo da treva, mal sabendo que viria a esconder-me nela como quem cobre de cabelo os olhos. Pois bem. Ainda aqui estou e ficarei. Dos males, o menor. Que assim seja. Subirei decerto os degraus frios da morte, porquanto é indiscutível que aqueles que já não respiram e que não partilham as agruras deste mundo estejam mortos e nunca mais se levantem. O máximo a que podem aspirar estará na memória dos vivos que os recordarão de vez em quando, mas até estes, doravante, sucumbirão ao estado dos que saudosamente evocam. E se o mistério da vida se desvenda, já o tempo no-lo apaga e afasta deste mundo incompreensível. Em suma, talvez seja esta a lição a tirar da eterna história de homens e ratos, que, por vezes hábeis mas amiúde pequenos, repousam nos interstícios das pedras que assentam sobre outras pedras.
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