LUÍS FILIPE PEREIRA*
Luís Filipe Pereira. Escritor: poeta, ensaísta & etc. – investigador nas áreas da filosofia e da literatura. Publicou os livros de poesia: A Tela do Mundo; No lugar da Pouca Farinha; Consoante as Esteva e Elogio da Espera. No prelo: livro de poesia e ensaio sobre a intertextualidade A. Ramos Rosa e M. Merleau-Ponty. Colaborou em diversas antologias, revistas, nacionais e estrangeiras. Mestre em teoria da Literatura & etc. _
As Figuras do Pobre em Maria Gabriela Llansol**
in memoriam, para a Avó Alzira
[na rua do marco uma carta de pobreza endereçada à casa do sul:
de outubro a maio, 2022/2023]
Vislumbro na obra llansoliana uma escrita eminentemente hospitaleira: construção de uma casa aberta para uma pluralidade de inquilinos: figuras e objectos, vozes, animais, humanos, restante vida. Tudo tem lugar, num lugar-a-vir, madrugante sobre relevos figurais do tecido maiêutico e amativo, cognoscente e amoroso. Entre múltiplas dobras franzidas na Casa-amante ou Casa-da-escrita: lugar atópico de invenção do amor (Llansol: 2020). Do amor amplificado e dedicado, especialmente, aos marginais, aos nómadas, aos pobres, aos humilhado na [dis]topia da História. Amor em prática no corp’a’escrever contra a autoridade, a hierarquia, o deserdamento, a servidão da vontade.
Proponho-me mostrar de que ângulos a escrita de M. Gabriela Llansol está fincada na pobreza. Nesta centrar-me-ei, não obstante seguindo um trilho pejado de derivas para tentar desocultar a seguinte dimensão sobreimpressiva: a maior grandeza arrima-se na humildade amante. Vejo-a na deferência textu[r]al presente no modo – símil à linha com que Penélope cose e descose a espera do ambo a-vir, do amado – como Llansol, escrevente do porvir, fulgoriza e metamorfoseia os pespontos do sentido-a-ser: porque o sentido não é, de modo algum, monólito ensimesmado: é, outrossim, viagem/deslocação: amor proliferante).
A transmutação do já-dito é, ao mesmo tempo, uma [des]nodação de fios textuais que trazem ao aberto da textualização a consiliência entre o subentendido de figuras coroadas de pobreza, loucura e perseguição e a aparição (título do companheiro, histórico e figural, da luta contra o positivismo, Vergílio Ferreira), entre o dom amoroso, na raiz da restante vida (p. ex. as figuras de Isabôl e de Hadewijch) e, mudamente, as figuras das beguinas) e a reclusão aurática que supera o rasto (Benjamin, 2017).
No essencial, os pobres do corpo textual rebelam-se contra a impostura da língua, contra o mando vigilante: são, pois, figuras da dissidência: fragmentos amativos de uma alegria instável (Llansol, 2020b).
Estamos diante de uma escrita marcada por heurísticas anamorfoses, ou seja uma escrita em constante deveniência, seja pela criação de presenças (ao invés de identidades) seja pelas consonâncias do novo, do Há vibrátil insuflado por Eros. Ou seja: prazer da escrita caracterizado pela textuação de anéis [a]casuais, de associações de imagens nuas (Llansol: 2006) que [in]distinguem os humanos da restante vida. Do Inquérito às Quatro Confidências:
«O coração é os elos. Elos de paisagem, de humanos, de animais e plantas [a que se acrescenta os objectos], de atmosfera, de linguagem e significações que intentam ser sistema e coerência.» (Llansol, 1996,); «É realmente extraordinário termos nascido numa dada signografia do há em que a nossa biografia se cruza (e tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos.» (Llansol, 1996, sublinhado meu).
Ora, esse Há do amor completo sempre [in]completado não o entendo como bocejo. Assim o perspectiva Levinas (2013). Ao contrário, o Há llansoliano está mais próximo do entendimento de Maurice Merleau-Ponty, segundo o qual, é na meia-luz corporal -carnal – que se nos presentifica o horizonte onde estamos mergulhados e, em especial, intrincados, em profundidade, na quilha da escrita, conquanto «no sentido expansivo e entranhado», Llansol, 2022, de Jodoigne, 26 de Dezembro de 1976).
O que vislumbro é um Há de fulgor, amatório, onde, desde o nascer estamos de partida. Com efeito, preside-o uma mística corpórea e pan-erótica fundeada num subsolo de fecundidade criadora, de metamorfose, de proliferação de indícios: «porque a escrita é um armazém de sinais» (Llansol, 1996, 140) onde, em reserva, a dialéctica intrínseca ao amor, em virtude das suas contradições: à cabeça, eros e thanatos.
As figuras dos pobres devêm no âmbito do êxodo – desde logo, historicamente, Llansol exilada na Bélgica. Os pobres, assim como os companheiros filosóficos – como Vergílio Ferreira, Spinoza, Hamann, Kafka, Münster, Nietzsche, Musil, entre outos– fazem parte de um cortejo inscrito na corporalidade mística dos textos de pensadores do há (Llansol, 1996), convergindo na intuição cicládica de um há de peregrinato. Os pobres: espécie de estafetas que conduzem imagens da indigência, as que atravessm os tempos como clarões anoitecidos, saturadas pela punição e pelo [des]mando principesco. Por conseguinte são imagens de imagens que ousam continuar a sua viagem pelo há» (Llansol, 1996). Afinal, «êxodo é o outro nome do olhar atópico» (Llansol, 1996,) cujo motor é a mudança
a partir dos circuitos amorosos e, sobretudo, eróticos.
____________só é preciso que o corpo contenha velocidade bastante, se transforme nela,
e pare
antes de partir. (Llansol, 1996).
Invoco, a este respeito, elementos da escrita de Gonçalo M. Tavares que adoptam a velocidade, o movimento, como tropo literário essencial. Penso, por exemplo, no seu livro recente de 100 Haikus e, dentre eles, este: «buzinas e tráfego / – onde estão os limões / e o tempo?» (Tavares, 2023). Ademais, aforística é também compaginável com o texto fragmentário llansoliano.
A partir do meu ponto de vista de legente, considero que a matéria figural dos pobres, à luz do amore erótiKo, coadjuva o texto na presentificação da viagem, da partida para o desconhecido, o indefinido, para a unidade incompleta que roda no diverso. Tal ocorre, por via de uma autogénese de virtualidades (não abstractas, mas fazíveis), uma vez que os pobres são instruídos por um olhar, não raro filtrado pelo misticismo postural que encontra no erotismo [pan]corporal uma via de reconciliação, aliança por moldar.
De dentro, descentrado do Poder rumo à saudação do amor, os pobres são os serventuários dos poderosos enclausurado em fortificadas torres de marfim, vigiando à distância, porque a antítese pobres–príncipes adquire o valor simbólico-figural da clausura do sujeito [a]cósmico imunizado face à «ordem figural das coisas» (Llansol, 2015, 31 de Agosto 1981) a inquestionável autoridade vs. As figuras do pobre incarnam no texto seres-da-raia, do fulgor, dos arrabaldes, mas também do possível das metamorfoses.
Daí que, para a escrevente, a matéria que migra da figura dos pobres – dos rebeldes – para os filamentos do texto, se transforme sensualidade mística/ ética correspondente à atracção amativa inscrita no corpo do conhecimento e dos afectos (recorro a uma expressão de Llansol aquando da entrega do primeiro prémio da Associação Portuguesa de Escritores atribuído a Um Beijo Dado Mais Tarde: um mote quase : «que a informação que trazem se deposite na borra do olhar» (Llansol, 1996).
Permito-me, assim, qualificar – sem emoldurar – esta escrita como intensivamente pobre, porque a acompanha o daimon instigador da união com o plural, disseminado por elos e pontes, a ponto de os pobres serem raios-do mundo de uma escrita espiralada de cenas fulgor e pontos vorazes.
Cada movimento de escrita escala as trepadeiras do entre-ser das palavras e das figuras que esplendem o erotismo de um luar libidinal do encontro do diverso (lemos em Contos do Mal Errante. Pobres, nómadas, amantes nos similitudinários desertos das eremitagens. Eis, o debrum de apeadeiros sensualéticos (a sensualética era um projecto da autora, que ficou por realizar) em que se enleiam as fímbrias do ambo (amante/amada) ao o ritmo da causa amante que é, no seu sendo, a potência actualizada da linhagem místico-erótica alastrado aos mendicantes ímpares, às suas buscas, nas margens, de novos perfis do hiper-humano.
As figuras dos pobres são catalisadoras do grande alvor (Llansol, 1986). São vivos textuais e fiéis do amor que, em imanência flexionada, encontram abrigo nas curvaturas do futuro (ainda hoje adiado, senão proscrito, porque cresce o anonimato dos pobres, tão excluídos como outrora, sob outras forças de autoridade [pan]óptica (aparelho forjado por Brentham, por novos maquinismos controladores, de que a digitalização e os jogos-de-artifício mais ou menos propagandísticos do Poder, são partes etra-partes da redução, e dos sistemas divisionários).
Outro exemplo: as crianças-ladrões introduzem-se no texto llansoliano como seres de vagueação (Llansol, 2006), emblemas da nossa infância vindoura. Julgo-as como credores biopolíticas de uma visão, nem sequer visionária como em grande parte dos livros de Llansol, a um tempo acolhedora, vertical, metamorfoseada.
«o meu maior desejo é maquilhar-lhes as cicatrizes e a baixa estatura» (Llansol, 1986), ________
seres da futura infância síncrona da restante vida, da escrita, ou, ainda: os pobres no anverso do «regresso a uma infância que nunca mais nos recolherá» (Llansol, 2019) – espécie de contra-corrente amorosa ante a institucionalista e diferenciadora razão e de quem anseia comandá-la. Crianças que se tornam livres promessa do amor, conquanto inalcançável: porque o amor parte da falta, e a ela regressa, em virtude da contrariedade do desejo, contrato erótico disruptivo das variegadas versões do contrato social.
Os seus textos atestam a dissidência contra a convencionalidade e a entropia da verosimilhança, não só no plano da dita literatura [neo]clássica. Ora inscrita na História, devinda desordem figural, ora carreando silêncios e, sobremaneira, a urgência da “fantasmática erótica “(Llansol, 2023 de forma a erigir uma Comunidade de afectos, para além dos próprios limites da linguagem e, em grande medida, para recusa dos ímpios executantes da alcateia do poder de uns sobre os outros, predadores do logos amante junto de congéneres impostores.
Por outro lado, destaco a negatividade do narcisismo antropocêntrico ou da escrita-espelho de um sujeito de sobrevoo (na expressão de Merleau-Ponty e que leva Marc Richir a mencionar a defenestração do sujeito e que, julgo, tem afinidade com Llansol, a escrevente do lado de um sujeito de imersão, de propagação amante, de germinação do vivo, capaz de abdicar da tu[au]toria exclusiva do sentido).
Ademais, esta escrita perfila-se nas periferias da multidão (no sentido em que esta é criticada por Kierkegaard), dando preferência à singularidade (das figuras do pobre) aberta à realidade-ainda-não-existente, em filigrana e detrito no exercício da escrita. Esta abertura ao dissímil é um dos traços do serpenteamento da escrita, e um dos mais individualizadores dentre as várias estâncias tropológicas de Llansol. A figura do pobre: eis a prova.
O pobre, ímpar, aventura-se no desconhecido, nos flancos daa ausência de território: o pobre é o que combate, marginalmente, contra a imutabilidade da anulação: o próprio amor mutável, força motriz do Novo.
As figuras do pobre são as que se não deixam emparedar na natureza trágica – como sucede, por exemplo, com os pobres em Raúl Brandão (a que voltarei) – porquanto são passagem e metamorfose, inconstância e busca incessante – em desfavor da representação narrativa, da posse, da dicotomia e da hierarquização – como espaço-em-branco ou fisionomia do sim incoactivo à rimbaudiana liberdade livre (título repescado por António Ramos Rosa no seu livro de ensaios Poesia Liberdade Livre, 1962): modus vivendi – modus amori: sabor do ser-aí (Dasein) na liberdade de consciência.
Num amplo tecido de sensualidade/sensorialidade, atente-se na maneira como Llansol atravessa as áleas da escrita em detrimento dos códigos automatizados, das padronizações pseudo-canónicas ou pseudo-ortodoxas, da dita literatura, nomeadamente a do realismo, assente na lisa representação esquemática e narratológica.
Percorrendo as instáveis vertentes da actualização fulgurante do real, o texto llansoliano acolhe a[s] figura[s] do pobre como hóspede[s] de um espaço edénico, da esfera do misticismo textual, figura vinda-para-o-futuro carreada pelo real-não-existente, desiderativo, erótico.
Sensualismo de linhagem mística e que entrevejo como ab-Grund do devir aisthesiológico, ou seja, da sensualética, via pela qual o pobre abre novos possíveis ao/do humano e [co]participadas pelos legentes.
Formalmente, mas com efeitos de conteúdo, realço a forma como a sinalética da pobreza é, ainda assim, uma grafia cerzida com pontos abertos, consonantes, aliás, com a espessura das suspensões frásicas: espaços deixados em branco; tracejados potenciadores da respiração do legente na caixa torácica da língua. Sinais de pobreza ainda: o modo como o texto acrescenta à sua teia compositiva os textuantes, i. é., não personagens de um qualquer género literário ou impostas pelos artifícios da narração. Ao invés, Figuras
O amor: fio de ariana que vai perfazendo a coalescência móvel de uma «paisagem agreste que alguém me emprestou [sublinho no punho expressivo a despretensão, o desapossamento] para eu viver, apagando-me, em Comunidade» (Llansol, 2018). Por uma paisagem-em-andamento afim, segue, julgo, a ética de E. Levinas, que enaltece o terceiro-incluído (Levinas, 2013).
O núcleo dos pobres ramifica nos textos, das beguinas a Aossê, Jorge de Sena, Müntzer, Copérnico (que «é uma companhia excelsa, apesar do seu ar de pobre homem por detrás da luz»: Llansol, 1986), Giordano Bruno (mantido sete anos em cativeiro até ao veredicto da sua condenação a auto-de-fé pela Inquisição, porventura sob o sol que soube ver/conhecer à luz de mundos infinitos), a poeta medianeira Hadewijch de Antuérpia, Ana de Peñalosa, Spinoza, Nietzsche, Hölderlin, entre várias outras figuras exiladas na sua indigência, nas torres da loucura, de João da Cruz a Bach e todos os seres litorais que assomam às brechas místicas e mitológicas do corpo textual. «É no exílio, no fora de fora, que a rede de figuras, como Ana de Peñalosa, Nietzsche, São João da Cruz, Eckhart, Müntzer, Hadewijch, e outros, se instala para a recepção do mito da restante vida» (Llansol, 2001, 100).
Eis um leque de espécimes de pobres que transpõem os muros da indiferença, as sebes da humilhação para [re]descobrirem, na carne amativa do texto, as metamorfoses que a escrita incita e transfigura: nada mais carismático da imaginação amorosa, do amor sem porquê, do que escancarar a escrita ao ser-dos- entes inusitados: franquear ao pobre as portas da escrita é acolhê-lo numa Comunidade onde o amor se dissemina, incluindo sobre os objectos e sobre a matéria da restante vida aberta ao amor, conquanto não correlatos de uma consciência auto-suficiente, de figuras-parceiros oficiantes do devir, do canto das palavras que os [re]significam: inteligência apaixonada, fisiologia dos que respondem por mim numa voz inaudível (Llansol, 2004).
Por conseguinte, a escrita llansoliano, a que chamo pobre em si mesma, é abertura à passagem e à paisagem, encontrando, pelo misticismo da luz amante, os condenados à penumbra [des]potenciada, à burocracia do poder (à maneira de Kafka) hierárquico. Respondo, portanto, sim, a esta interrogação: «Mas não deveria eu entrar na órbita repetitiva dos pobres?» (Llansol 2018a), justamente porque é essa iteração à volta dos pobres que permite libertar o amor, alastrá-lo ao a-vir (invoco o Livro a vir de M. Blanchot), ao amor futurante.
Hipotipose:
onde corre o cão Jade, onde comem os gatos vadios, onde ascendem as árvores, os falcões dançantes sobre as veias do pulso, onde leveda o pão de cada frase, gestando a simplicidade criadora dos astros, das [meta]noites, introduzem-se os fragmentos do espaço navegado pela aliança nupcial do futuro, da escrita.
Ora, os pobres – defendo – fazem parte desta orla da alteridade, desta [hiper] dialéctica do amor inconhecido conhecível, de permeio com as fulgorizações nómadas (:o nomadismo da penúria, da errância, da trajectória sem trajecto, do caminhar sem onde, do amor sem porquê, por que escoam as figuras do pobre e da sua des-estigmatização).
Penso que as suas raízes se acham, em latência, num conto escrito por Llansol aos onze anos, Destinos Ciganos, cuja centralidade é já a marginalização, e, tão à la page, dos ciganos (Llansol, 2018).
De realçar também o alcance pedagógico-lúdico do colégio Amanhecer co-fundado por Llansol; e, mais tarde, da Escola da Rua Namur, em Lovaina, a que se seguiram a da Ferme Jacobs e a da Escola La Maison, em Ottiginies, todas erguidas ora para acolher crianças com necessidades especiais, não- raro filhas de exilados políticos, ora para propor uma espiritualidade alternativa, acolhedora e sem freios autoritários.
Outra modulação que associo à figura do pobre é a da linha, de inúmeras facetas, da espera (tema nuclear do meu livro de poesia, Elogio da Espera, 2022) que, grosso modo, interpreto como uma aproximação aos outros, a nós trânsfugas de nós mesmos (e que a poesia de Robert Walser tão bem dá conta (Walser, 2022). O amor: caminho de aproximação ao diverso vivo. Contudo, trata-se, de uma aproximação inaniquilável no sempre ilusório conseguimento do objecto desejado: é, sobretudo, génese de abandono, do amor indómito, completo e por concluir, desdobrado pela recíproca não-anulação de outrem. A meu ver, actualíssima, a necessidade de combater o poder, os aparelhos ideológicos do mando e da norma. O amor dos pobres passa por uma deslocação textuante rumo à descoberta do incógnito, do deus abscondis na Comunidade.
Os pobres movem-se, assim, nas não razões de amar; são seres-de espera (Pereira, 2022) afluindo para os textos como se «pessoas que esperassem, como eu e os legentes, sarar as suas feridas e tornar perene o solo e o sol» (Llansol, 2018).
Içado este pórtico, passo, doravante – de forma necessariamente sinóptica – a aprofundar, mais sistematicamente, as figuras do pobre. Ponto de partida, inserto no texto A Restante Vida: O mistério do mundo não está na ambição dos poderosos mas na vontade de escravidão dos pobres. Vontade urgida segundo o ideário de Nietzsche.
É, afinal, em desfavor dessa vontade destrutiva, nivelada por baixo, que se insurge a escrita de Llansol, dando abrigo, no plano da textualidade, aos «rebeldes ocultos, mas já no rasto da liberdade de consciência» (Llansol, 1994). Partindo dos místicos (Hadewijch, S. João da Cruz, beguinagem, etc.) até relevo anónimo de pobres, os caminhantes na obscuridade, permanentemente ameaçados pelos lobos (hobbesianos) da anulação, criaturas -de-escrita «pedindo abrigo, partilha de pão, reciprocidade» (ibid.), em libertação, nas correntes de M. G. Llansol, a «mulher-serva» (como se lhe dirige Hélia Correia: Llansol, 2018). Há, na verdade, uma servitude prestativa, uma clausura aberta para a janela de humanidade que é capaz do dom amoroso, sem porquê e sem servidão.
O pobre é um ser de abandono, assim o qualifica Raúl Brandão (que retomarei) na obra Os Pobres ou, seguindo Silvina Rodrigues Lopes (Lopes, 2013), um ser de «des-possessão»: figura da infinitização; figura da viagem, do partir, tão nítido na escrita diarística, marcado, abonadamente, pela erosão, i. é., pela vida não possuída. Como refere Llansol: «Os bandos dos pobres em definitivo ainda não limitado, são as bases de desenvolvimento de Da Sebe ao Ser […]» (Llansol, 1998a, O Diário primevo).
Mais acrescento a importância dos ecos do livro A Pobreza e a Assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média e também as leituras de Llansol sobre a Rainha Isabel e a Pobreza, cujo efeito maior é o seguinte: cada pobre do bando irredutível a um número. Um tópico recorrente ao longo do encontro figural com a maldição histórica dos Simples.
A figura do pobre acontece nas duas trilogias que iniciam a prevalência da sobreimpressão e do seu corpo de figuras, ou seja: a escrita que se desloca para a vizinhança do pobre, que assume formas plurais, geralmente de cariz bibliográfico de maneira a vincar singularidades. Camões, Müntzer, Isabôl, Hadewijch, Eckhart, Bach, Nietzsche, Musil (exilado em Zurique, depois em Genebra, desde a ocupação nazi de Viena) et coetera – em movimento um complexo de textualidades receptivas de um poemário-em- drama de peregrinos, de irradiações do amor extático, de cenas-fulgor.
Eis alguns exemplos, a partir de Contos do mal errante:
«Bandos imensos de pobres nos estenderão as mãos e, se não tivermos que dar, despedaçar-nos-ão em moedas de ouro, de prata e de fome»; Hadewijch de Antuérpia prepara-se para adentrar-se no deserto, na vivência de uma religiosidade amorosa – corporal e espiritual- debruçada, cortesmente, sobre a alma do amado, no abismo da desterritorização (na acepção de Deleuze/Guattari, a qual ajuda a iluminar a figura do pobre como o fragmentário em interna viagem: o pobre: ser-dos-ermos na sua caminhada anónima e divergente).
O pobre pode ser um nome, pode ser o rastro de uma voz, o fragmento do corpo de quem vive para libertar-se da enunciação e da distinção. Daí a sua condição, a um tempo eterna e mutável, de transumante: o pobre é, por conseguinte, o tresmalhado diante da tirania do poder, beneficiando, todavia, de um salvo-conduto para porfiar no Nada, para pastorear sem bússola e sem projectos, auto-criando-se e, desse modo, subtraindo-se às imagens convencionadas, designadamente da tradição cristã que marca a escarlate os judeus, os moribundos da lepra, os loucos, de tão afeiçoada ao poder.
A dispersão dos pobres é aclarada neste excerto de A Restante Vida:
«Tinham necessidade desse anonimato onde se produz a escrita, ou seja, os seus elos com todas as coisas, sua destruição e seu renascimento […] Olhavam o mundo inteiro e ninguém. Conheciam o mundo inteiro e ninguém.» (Llansol, 2001).
Fundamentalmente, o pobre é figura do contra-poder, é ser da metamorfose, é elo incontável, é um jeito de ser resoluto no que respeita à liberdade das imagens, à intrepidez do [re]novo, é o inclassificável, é um ser-em-demanda – embora a pobreza sempre impertinente (Dostroiévsky 2006).
Faço uma deriva para aventar uma hipótese hermenêutica – carecida, necessariamente, de maior crescimento: na obra de José Saramago, Memorial do Convento (2014), para lá da comitiva de pobres, tratados pelo poder como meros tijolos, as personagens de Baltasar e de Blimunda, pobres entre os pobres, são submetidas ao capricho, não-sonhante, do todo-poderoso D. João V. São ambaspersonagens errantes na noite libidinal do ambo, do amor à revelia das convenções e da economia dos interesses. Penso no seguinte trecho: «Na prática sexual do Príncipe não há um acto de prazer e de reprodução, há também, e sobretudo, um acto de posse da terra, dos homens e do feudo» (Llansol, 1994). Ora, Baltasar é queimado, em auto-de-fé, (condenada também a mãe de Blimunda considerada, pela monocultura inquisitorial do poder eclesiástico, uma sibila herética), por dar pano ao sonho da viagem na máquina-voadora.
Uma das obras mais relevantes para a compreensão da figura do pobre é LiboaLeipzig 1 – O encontro inesperado do diverso, e que Llansol recapitula na obra O Senhor de Herbais (Llansol, 2002):
«Sob a forma de ensaio, procurei pegar no contrato e, atravessando o cenistro, remover o contacto como lugar de origem do humano. Serviu-me de carril a figura do eremita [com diversos traços convergentes com a figura do pobre] como antecipação retrospectiva de uma forma de humano-que-foi… e não vingou, destroçado por séculos de monaquismo».
Por outras, bem mais modestas palavras, decorreram séculos de amputação do modo de vida dos eremitas, tanto pela imposição de regras ditadas pela tradição da Igreja como pelas lutas de poder entre ordens monásticas. Foi esse monaquismo biopolítico (M. Foucault) que censurou e puniu a prática dos pobres, enquanto «praticantes indefectíveis da qualidade» (Llansol, 2002) sem qualidades (R. Musil).
A dualidade transcendente/imanente – desde a esquizofrenia socrática-platónica- minou a erosão orográfica da mística, em muito tributária da propagação do eremitismo, e propulsora do temor ante os fantasmas da tirania.
Eremitas: atletas de uma ambição feitos de um só vórtice, intensos, exclusiva e metodicamente ocupados a utilizarem as suas próprias vidas como lugar, por excelência, da interrogação humana, e o meio exclusivo da resposta a encontrar (Llansol, 1994). Em alternativa «à cega opressão de alguém sobre ninguém», a escrevente «fala de um povo que é singularmente outro, sem ainda saber em quê, e por quê» (Ibid.).
O eremita é centro voraz da irradiação de imagens, é o que ousa opor-se à ortodoxa reprodução da espécie human. É o que se embrenha nos despovoados ausentes de fronteiras. Fá-lo, justamente, para alimentar uma outridade sem ressentimento e sem remorso, modo próprio de amar o desconhecido. A este movimento de exposição do/no Outro, enuncia Llansol como o Prazer do Amante (Llansol, 2002). Neste combinam-se dois estados contraditórios: o da renúncia/ascese e o da entrega, o da parusia (presença-vinda) e o da presentificação do futurável. Em velada correspondência, lê-se no livro de Zacarias: Então sairá o Senhor e pelejará contra essas nações, como quando pelejou no dia da batalha. Naquele dia estarão os seus pés sobre o monte.
Em síntese: Os eremitas, da linhagem dos pobres, evadem-se da razão binária, da inanidade do princípio da não-contradição e dos sistemas constringentes, aproximando-se do erotismo das coincidências, tropo-mobile recuperado no livro O Encontro Inesperado do Diverso, propugnando a defesa das livres vontades à mercê da vontade [de poder] aniquilada às garras do tirano, a rebeldia amativa – na base do conhecimento – perante a figura-contra-figuras do príncipe.
O subtítulo de O Senhor d´ Herbais – Breves Ensaios Literários sobre a reprodução estética do mundo e suas tentações, permite-me considerar o eremita como emblema significativo de uma estética não-realista, ou meramente reprodutiva/descritiva, desprovida do rasgo do novo, a contrapelo da sobreimpressão, como neste trecho crítico: «A estética da cinza [que] cria o mercado, a estética de fogo cria a recessão, a chamada destruição criativa, a estética do bolor […]» (Llansol, 2002). Contra a letargia museológica, o que mais importa ver-em-horizonte é, do meu ponto de vista, uma estética sensualética da pobreza a partir do corpo libidinal, por isso, sob o signo de Eros, difundindo-se pela vibração das dissemelhanças. Uma estética com uma ética dentro (e de que me ocuparei num estudo futuro) despontando de uma libidinalidade, sem presúria, entre os pobres: erótica de corpo e alma, como nos poemas de Hadewijch.
Pobres futuráveis: os indominados, os desguetizados, os não vassalos. Porque a figura do pobre é incompatível com um pobre mandado, que recuse a pobreza da sua natureza» (Llansol, 2018).
A este respeito, assinalo a imagem orbitada pelos vagabundos do luar libidinal do corpo (Llansol, Caderno 1.57, 76-81; 2018), e que são, enfim, os que se comunicam amorosamente para proteger a restante vida e cobrir com o extenso xaile de Natália «Os corpos cercados»: Llansol, conto,1987).
A saudação aos eremitas inscreve-se, igualmente, no fluir do nomadismo da língua esgueirada dos dispositivos, crescentemente digitais e artificiais, da fala comprometida com a sintaxe do poder e que deixa de fora a veemência do entresser.
Ademais: é a impostura da língua, temida pela figura-Témia, que alisa os vincos do silêncio. Este, a meu ver, não é, de modo algum, citação do mutismo oco, mas antes, adesão às periferias da linguagem por onde possa reboar a religião do afecto, dos corpos em acção, escuta visão e transformação imagética, não submetidos aos afunilantes formulários da representação social, do jogo há tanto cenografado dos estatutos e papéis estáticos.
Do que se trata, portanto, é de coligir os limiares de uma estética erótica inserta na pobreza e onde fazer e dizer, entender e transformar apareçam indivisos, soltos do modelo da diferenciação que, remotamente, a Caverna de Platão alegoriza e, na polis dos poderosos, propõe como forma de governo, precursor do tablado infausto da História:
«o sobrevivente tem aqui o nome de Pobre. Dele não se poderá sequer dizer que seja um pobre homem. Homem não há, o pobre é a imagem da parte perdida da batalha […] uma batalha continuamente perdida (essa a definição mais genérica de tempo) para benefício dos príncipes e, quando estes mortos e ultrapassados, em benefício de seus sucessores poderosos. Ficou-nos uma concepção de real, uma sombra, um espaço vazio e uma virtualidade.» (Llansol, 2001).
«É triste [luminoso] precisar de dinheiro para vibrar. Mas tu [um pobre] vibras com o menor impulso de dinheiro possível. O que é ainda mais luminoso» (Llansol, Caderno 1.47, 1-9; 2018: Llansol, 2018).
Eis uma matéria singularmente irradiante em Hölderlin. Penso no seu romance epistolar Hipérion ou o eremita da Grécia (Hölderlin, 2022), que conglomera a errância existenciária e a procura de uma «demência mansa» (Barrento, 2021) por entre os rasgos fúlgidos da loucura, debrum de uma vida-outra para lá da linha divisória entre senhores e servos e do enclave dos pobres nulificados. Diotima – «espécie de anjo do silêncio amoroso» (Hölderlin, 2022) sincronizado com a natureza no decurso do exílio. Cito o poema «O Homem»:
Quem o bem honra, nenhum dano vem a causar,
Digno vive, para outros não é vã a sua existência,
Conhece o valor, o fruto de tal coerência,
Confia no que é melhor, abençoado é o seu caminho”.
(Hölderlin, 2022a).
O signo «caminho» atesta a potência do encontro-de-escrita entre Llansol e a figura de Hölderlin, uma vez que é indício da imagem da errância, das práticas corporais do exílio e do abrigo, da peregrinação da figura do pobre, tendo em consideração o seu movimento-metamorfose de um ser sendo a ser: caminho, uma tendência singular por-vir, o diverso, o estranho (Unheimlich) de permeio.
Especialmente relevante é o encontro figural com o eremita Ramon Llull, místico catalão que impulsionou a pobreza agida por S. Francisco de Assis. Escreveu O Livro do Amigo e do Amado, certamente com ressonâncias do Tratado de Amor de Ibn ‘Arabī, dando alojamento aos foragidos ao mandato de ofuscação dos eremitas nómadas, tão preponderante, aliás, na Idade Média.
Sublinho, a este propósito, que o diálogo com textos da mística ocidental dos séculos XIII e XIV é primal na geografia aberta de Llansol, que substituiu a descrição pelo diálogo enquanto saudação: «saudar entre pessoas era o equivalente de dialogar» (Llansol, 2001), um diálogo alastrado ao legente
No que concerne à saudação, de entre diversos exemplos possíveis, escolho algumas figuras para confirmar esta formulação, bem-aventurados os alucinados:
Nietzsche experimentou a ebriedade do ser, a fragmentação do sistémico, sentido onde, renovadamente, os pobres têm um lugar indirecto, no apelo à luta contra a privação e a injustiça dos humanos-de-hoje. Hölderlin/Hölder, os desiludidos no limiar da insanidade. Spinosa, Bach, _____Jorge de Sena/Jorge Anés que, não obstante as suas obras rectoras da ética e da civilidade, não deixaram de exprimir fracassos perante países anestesiados e estereotipados, não deixando espaço para a restante vida.
Por exemplo, no poema A miséria das palavras, do qual cito estes versos: «[…] Se a miséria e a pobreza/fossem o vómito que deviam ser, posto em palavras, / […] viria a liberdade por acréscimo,/ sem palavras, sem gestos, sem delíquios» (Sena, 2014). E, transplantada do livro Um Falcão no Punho, esta [sobre]impressão de Llansol:
«Continuei pensando que o vira como ele desejava ter vivido. Havia nele uma bala, ou estilhaço, provinda de outros combates…que nunca ninguém conseguira extrair-lhe […] porque neles o pensamento se fará humano/ bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível/ bem-aventurados os desesperados.
os pobres: Rilke (falecido no sanatório de Valmont) encontrou no Aberto, o Anjo: “com uma boca de mil bocas feitas” (Rilke, 2020), Hadewijch de Antuérpia: com o seu alfabeto barbantino e musical manuscreveu a mística religiosa de feição erótica- libidinal (tópico a que volto infra). As suas visões de beguina acrescentadas pelas forças do amor (vide P. Mommaers & E. Dutton, 1989). A esperança do amor sem porquê, a toada da poesia trovadoresca e cortesã, a vida contraditória do amor entre a clausura e a abertura à mundaneidade do mundo exterior.
Contra o poder autoritário, os pobres – no presente da sua exclusão – são subsumidos em várias categorias redutoras: loucos, marginais, ou, na linguagem charlatã do senso-comum, os outros-de-ameaça, bastardos derrogados – refugiados, exilados, migrantes, infoexcluídos, relegados para as periferias – quase como se arrastassem o contágio, a peste da sua divergência. Ainda hoje, e cada vez mais, persiste o comando das fronteiras muradas e dos campos farpados, a anulação, a delimitação cómoda à propaganda da miséria e da morte, a selva de Calais, o assistencialismo demagógico e estratégico.
Ao invés, a escrita de Llansol atende ao múltiplo da singularidade, acompanhando, assim, o possível da sua arte de viver e da presença perante o amável, o amante (assunto a incluir na estética da pobreza de que cuidarei noutro lugar): É uma relação entre pessoas, seja qual for a sua ordem em busca de uma arte de viver, ou seja, de mútua não-anulação (Llansol, 2001). Escrita do pobre-incluído na linhagem do não-uso, da aceitação germinativa (amar: que cultiva, do lat. amatu + -ivo) dos que não têm voz.
Com efeito, os que seguem a tangente do poder são incapazes de amicícia: conglomerados sob a figura do Príncipe, banindo, a florete e a espada, a figura do pobre (o hiéros) cuja liberdade de consciência se faz escutar como dom poético e por escrever.
Llull aparece ao texto como um quase nada, desmunido, aterrado sob uma dupla muralha: a da tradição islâmica e a da Europa cristã, vergada às pontas presas nas noites das cruzadas. Llull, em Lisboaleipzig I, aponta para “uma leitura do espírito segundo o coração” (Llansol, 1994), e, de novo, o amor como elo sem causas. Ainda assim, a figura de Llull ilustra o eclipse da divisão entre a realidade representativa e a assumida: uma dicotomia afim da oposição Mundo e Restante vida e deveras nociva para a humanidade que não pode perder de vista s exemplar geografia de eremitérios. Eis esta nota, deixada em nota por Llansol:
“estes homens e mulheres tiveram uma noção de real que, sendo embora antagónica da razão ocidental, não deixava de ser integralmente exequível na esfera da acção a que se aplicava. Criaram um mundo a que deram forma […] esse real caracterizava-se por uma componente imaginal intensa, constituída por objectos, estados e visões que, hoje, tenderíamos a considerar bizarros, quando não loucos” (Llansol, 1994).
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De uma outra perspectiva: o pobre é a imagem da potencial insurgência contra a lei exterior, monástica. Comandos de castração agilizados pelo panóptico da opressão – surgido no séc. XIX embora assaz operativo na actualidade: sob a cilada da visibilidade e da docilidade dos corpos, transformou-se em estratégia do poder de vigilância e punição, aquinhoado na linguagem jurídica, de forma a que o cidadão se mantivesse coagido pelo poder. Um mecanismo esclarecido por M. Foucault (também por G. Agamben, Althusser, G. Agamben [1993] et. al.) que acolheu o modelo panóptico de Jeremy Brentham de imposição da vigilância e da luz feérica com o objectivo de não deixar ninguém na obscuridade e de judicializar a sociedade da transparência: uma sequela da procura da saída do homem da sua menoridade, tal como Kant define Aufklärung, mas que agrilhoa, sobremaneira, os excluídos, todos submetidos a engrenagens disciplinares [des]intensificadoras dos afectos/do amor, arregimentando o ímpar dos amantes à previsibilidade social e à obediência ao poder policial (Foucault, 2018). Deste modo, é o pobre vigiado que tem de rebelar-se contra a tirania do príncipe. Caracteriza-o, por conseguinte, a insubordinação, inclusive perante o amor em moldes repetitivos e esculpidos pela força.
É, pois, mediante a presentificação móvel das figuras do pobre, cromossomas da deiscência, que a escrita llansoliana devém uma estética da vida-em-pobreza, isto é, um lugar propício à interrogação e à busca da qualidade, da “prática da consciência livre” (Llansol, 1994). A Liberdade do espírito, tão barbaramente sangrada na batalha de Frankenhausen, 1525, mas com a acção de Thomas Müntzer – redutoramente qualificado nos anais da História como anabatista tout court –, figura do místico predisposto a combater pelos mais pobres – os camponeses. Evoco que J. G. Hamann foi um dos camponeses morto na luta contra o poder e contra os pobres de espírito mascarados de poderosos: “Eram os tempos em que um pobre de espírito, um miserável monte de esterco, julgava possuir o mundo, que nada mais lhe servia senão para ostentar o seu fausto e a sua arrogância.” (O Sermão aos Príncipes por J. Barrento, in Llansol, 2021). Ao seu modo, na obra In Nomine Dei, J. Saramago também assinala a correnteza anabatista na cidade de Münster, seja dos nobres católicos seja dos luterianos).
E fundamente, no século XX, o holocausto de Auschwitz (e tantos outros desvios anteriores e ulteriores) conducente à catastrófica devastação, conforme à tolerância do mando e do ódio. Não obstante, da sombra sem significante da figura do pobre Llansol não deixa porfiar na exemplaridade tapeçaria do Possível.
Do pórtico de abertura de Lisboaleipzig 2 entrevemos a pré-história futura assente nas beguinas, fontes da sensualética, exigindo um questionamento dirigido ao do Poder e a todas as formas dogmáticas, os quais só poderão adquirir uma vertente positiva e afirmativa na estética.
O pobre é a figura que a cultura ocidental açaim[a]ou, ao reger-se por fórmulas confrontacionais de enquistamento do novo e do júbilo heurístico, seja ao nível da razão introjectada e enunciativa (crisálida esvaziada), seja ao bloqueio de migratórias formas de vida (Llansol, 1995) e de escrita ( F. Pessoa e a sua bi-humanidade, Vergílio Ferreira, Jorge de Sena, Proust, Yourcenar, Musil entre outros. A este propósito, três citações avulsas e confluentes:
Carlos Vaz lê nessa linhagem o tropo do mútuo, bem como o “[…] pôr em comum indivíduos do mesmo corp´a ´screver, através de um novo contrato de leitura que procura a liberdade de consciência, originada pelo dom poético, face ao poder dos Príncipes e à impostura da língua”. (Vaz, 2005, 57).
Sobre a pobreza: “É uma coisa verdadeiramente excelente, ter sido pobre; abençoo essa pobreza inesperada […] Certamente, aos que nunca foram pobres falta-lhes qualquer coisa; uma parte interessante deste mundo mantém-se-lhes desconhecida.” (Loti, 2016). “Rilke, que à figura de Cristo preferia a de Francisco de Assis, amava os pobres pela simples razão de serem diferentes do comum, noutras palavras, por cada um deles lhe surgir como mais real e mais pessoa.” (Caeiro, 2007, 19).
Em sentido anexo à figura do pobre: o eremita é alguém que a História persistiu em excluir, um pobre vergado pelo Herr (senhor/dono): história da distopia do eremita e do pobre condenados a devir “cordeiros a degolar pelos Príncipes” (Llansol, 1986). A imagem não é inédita, porém serve de travejamento à ensaiada sensualética; aisthésis das metamorfoses [também as kafkianas].
É a humanidade e, por acção dela, em perigo (vide O Senhor d´Herbais) com o surto contemporâneo da digitalização massiva, dos cyborgs, da robótica, da inteligência artificializada, dos androides e afins (um exemplo ficcional: “Eu, Maria do Carmo [a enfermeira androide], sou a soma de todas as peças de hardware, middleware e software.”, Portela, 2021): a humanidade artificial/digital. Eremita e pobre, as figuras do misticismo carnal (a carne, no sentido de Merleau-Ponty) ou perspetivadas a partir de esquemas corporais são, afinal, figuras da restante resistência que o poder se empenhou, e empenha, em interditar : o pobre vem a este meu texto como o sobrevivente e como o textual futurante, englobante-englobado nesta hifa comum “[…] o pobre é a imagem da parte perdida da batalha […] Ficou-nos uma concepção do real, uma sombra, um espaço vazio e uma virtualidade.“ (Llansol, 2008).
Dito doutra forma: a figura do pobre é a de uma sombra hifenada, escalonamento em superfície da liberdade de consciência e do dom poético – os pobres são seres sem ciúme de si-mesmos, sem ressentimento nem remorso, são singulares diversos da não-vassalagem.
Cito Silvina Lopes: “A multidão dos sem-lugar, na Idade Média desenha um espaço pulsional, intensamente agitado, onde se reproduzem imagens de ódio e de poder que se agregam a um imaginário de exclusão que parece ameaçar a espécie humana.” (Lopes, Ibid., 26).
A figura do pobre atrai o viço da batalha, entreé no âmbito da criação de ecossisstemas (Llansol, 1987), transferindo os efeitos excludentes para o estriamento da “sinografia do há em que a nossa biografia se cruza (e tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos.” (Llansol, 1996, 141): biopolítica em deslocação.
O pobre é um sentimento textual avassalado pelo Príncipe, constringente do real feito resíduo monossilábico- e pela sociedade – coreografada por intermédio da iconografia monocromática dos que chamam a si a desvalorização dos designados subalternos.
O pobre impele-nos a perseverar na espera opugnadora ou espera-em-batalha perante os ciclos opressivos da História. É o “único que nos permite passar além do Príncipe” e compreender as perguntas sequentes: “Por que tardar em manifestar a nostalgia do momento em que as imagens do poder deixarão de andar à solta, imprevisíveis, famintas e tirânicas?” (Llansol, 2008);
“Recebi hoje uma grande honra. O mais pobre, que acompanhei na Rua Ferreira Borges das árvores, deu-me o seu calçado para engraxar, e partiu, disperso, para ajudar um carro a arrumar. A pobreza e a desprotecção social são conceitos? [também categorial, p. ex., o conceito de limiar da pobreza e etc.] (Ibid., 2008);
“Cortaram-lhes também a água quando eram crianças, como aos cães?” (Llansol, 2018). Seguindo este fio de escrita, é, então possível visualizar, de dentro do texto, a imagem do pré-homem-a-caminho sobre o os seus vestígios: “Porque o pobre não é só o resto, é ele o arquétipo” (subl. meu, Llansol, 2008), é o “acto <aguado> de futuro, do que não se poderá por muito mais tempo dispensar que advenha.” (Ibid., 2008).
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Sinalizo, ademais, a dimensão do pobre-criança e a desentronização do cogito e do logofixismo para que possa esplender o sopro de uma causa errante, a intensidade da mudança, a exemplo de S. João da Cruz – uma das figuras do texto – que se sublevou contra a Ordem Camelita, criando a ordem dos camelitas descalços, em dispersão por comunidades mais coincidentes com o despojae com as formas de fricção da pobreza, invisível ao olhar obnubilante dos vencedores ocasionais.
Serve este excurso para citar alguns trechos de poemas de Rilke insertos n´O Livro da pobreza e da morte (2007) e com os quais encontro afinidades electivas com a tópica que venho inquirindo_______. Parto deste aforismo: Porque a pobreza é uma grande luz que vem de dentro.
sobre o peregrinato dos pobres:
“Quero ir juntar-me aos peregrinos
e para que mentira alguma possa mais separar-me
das suas vozes e das suas figuras […]
seguir o caminho que ninguém conhece
sobre a dominação exercida pela multidão que ostraciza os pobres:
“sujeitos aos caprichos de um milhar de algozes
e agredidos pelo gongo de cada hora,
erram, solitários […]”;
sobre os pobres como figuras errantes:
“e oferece-lhes a solidão de uma estrela
para que o não ultraje nenhum olhar de espanto
ao perderem-se […]”;
sobre a ligação imaginal entre o pobre e a criança:
“Faz que conheça de novo a infância,
o desconhecido e o maravilhoso…”;
sobre a referência aos príncipes:
“E não são como esses príncipes que desdenhavam
o ouro, em que não encontravam perfume […]
Esses eram os ricos que forçavam a vida
a durar sem limites […]
os pobres […] são sem vontade e sem mundo […]
e por toda a parte desfolhados e desfigurados […]
conhecesse a tua terra de indigência,
entrançava-a num colar de rosas […]
Porque eles são mais puros que as pedras puras
[…] nada desejam
[assinalo a ressonância do sentimento de pobreza em Mestre Eckarht, a que voltarei infra, para umas nótulas]
e só de uma coisa precisam: poderem ser tão pobres como na realidade são.”
(Rilke, 2007)
Em síntese:
a figura do pobre é resquício da impotência humana face ao desacerto da História e à anulação do modus vivendi/modus operandi do amor disperso pelo humano aquém da sua transfiguração em valor, em potencialidade libidinal: dança sensual; foliar, portanto, no eterno retorno do mútuo, no ambo iterativo dos pobres) infundido na vigília textuante. Não se trata de nostálgico retorno às origens, mas, outrossim, ultrapassagem dos limites e tempo a-vir: “Tempo em branco, receptivo ao tempo/ […] as crianças, os homens pobres e os homens criativos, la flèche, belle plume à écrire […]” (Llansol, 1987). Para tal, urge o desapego da posse- como se evadida dos compêndios de direitos reais -. Mais acrescento: no acolhimento das figuras do pobre, a escrita llansoliana não visa operar uma psicologia da interioridade. Ao contrário, lança luz sobre a auscultação da exterioridade, isto é, sobre o traço-de-união do humano e da paisagem, o elo da ligação com o amor restante, com o simples e com o paradoxo.
Introduzo a intertextualidade figural com o heterónimo de Pessoa Alberto Caeiro (também chamado por Llansol), um inquilino imagético que incluo na singular figura do pobre, dado que parceiro duma estética do encontro corporal, desde logo no modo como perspectiva a poesia e o seu vínculo com a espontaneidade: modo de afastamento da hipotrofia do Eu; o sujeito poético escolhe ser um gesto metamórfico/sensualético guiado pelo bordão de pastor,
“Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.”
(Caeiro, poema XLVI).
de pobre ressignificado:
“Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.”
(Pessoa, 2021).
Nítido é, igualmente, o embarque na mais-paisagem, a que “surge quando a terra onde pomos os pés não é apenas propriedade nossa, mas a presença de um cuidado. Um nós, visto de outra margem […] Assim a vejo como a vê o menino-vê”, (Llansol, 2021].
Na mesma senda heteronímica, o funcionário Alberto Soares usa o seu corpo ser-vil em relação aos comandos do patrão Vasques, tentando encontrar na arte e no sonho vias para escapar à dominação por parte do patrão-príncipe, representativo da banalidade da vida: Vasques: o mandante do rotineiro (Pessoa, 2014). Contudo, Alberto Soares, como é manifesto na escrita de Llansol, não tange a questão típica do escravo (o que ainda não alcançou a lídima pergunta do homem livre de consciência): Quem me chama? Quem sou eu? Atente-se na coda do poema do Ortónimo (Pessoa, 2015): “Gato que brincas na rua”:
“Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.”
Mais realço que Alberto Soares é, no essencial, um sujeito à deriva, que intui a superação da dicotomia identidade/alteridade, apesar de se não insurgir contra a sua condição de funcionário cansado (título de um poema do primeiro livro – O Grito Claro – de A. Ramos Rosa, 1958). Em geral, Pessoa (na figura de Aosê) é a imagem de uma figura percorrendo o espaço [in]substancial do entresser.
A figura do pobre vibra, igualmente, na ética de Baruch de Spinoza, companheiro e princípio de vida significativo na escrita de Llansol, e que distingue três modalidades de conhecimento (para Spinoza, o mais vigoroso é o dos afectos) – mutatis mutandis, talvez precursoras, das três metamorfoses em Nietzsche, uma vez que camelo, leão, criança, anunciadas por Zaratustra (Nietzsche, 2010) têm, do meu ponto de vista, similitudes com a passagem do humano do reino da razão – do humano incapaz de criar geografias inéditas, de tão calcificado no ressentimento e nos conceitos – ao misticismo amoroso, que torna o humano virtuoso e sábio (Ética de Spinoza, 2020).
Importa realçar o terceiro tipo de conhecimento, correspondente a uma ciência intuitiva, à utilização das ideias adequadas para que nos abeiremos da substância, do uno, do amor completo, e da perfeição da natureza.
Trata-se, defendo, de uma ciênciética do assombro por via da [des]subjectivação e da imanência corpórea, susceptíveís de transmutar o real no real-não existente: intuição do sim da criança à metamorfose, ao cântico da singularidade, ao amor-fati nietzschiano além do bem e do mal; do sim de quem, deiscentemente, se transmuda, dando pano ao falcão no punho escrevendo à beira do abismo,
à perda dos possessivos e das poses e à restauração da liberdade da não importância, do nada sem vazio. Ensina-nos o texto do cão-figura-Jade a romper trelas e o ceptro do príncipe (vide Porete, 2001, 251 e ss.): disponibilizemos, pois a intelgência afectiva (Ibid. 2001, 24) – tão miseravelmente (des)cultivada pela inteligência artificial e seus cambiantes-; sirvamos a rebeldia da generosidade (proposta de Spinosa).
Nietzssche arriba na escrita llansoliana qual figura-em-espiral do exílio próximo da comunidade nómada do texto no seu ponto charneira do mútuo acolhedor da não derrilação da loucura que, segundo Llansol, sob porosas formas, conjuga as figuras de excepção e, assim, a do pobre, igualmente desajustado aos escolhos do seu tempo, o que nele reforça o perfil da solidão, como no excerto de Fernando Pessoa ciado acima.
D´O Livro de Horas 1: “partem todos, e Zaratustra, ao ficar só, toca a serpente com a mão”, assim também com o pobre na sua peregrinagem: “Passeámos então como seres singulares por entre nossos semelhantes, que também se singularizavam e num bando de profundos peregrinos se encaminhavam para nós”.
É por-haver o rasto no deserto estriado (Guattari, F e Deleuze, G, 1980); o plano de imanência (Ibid.) – de hecceidades (isto é: individuação sem sujeito), aliás um legado de Duns Scot – por contraste com o plano de estratificação (Guattari, F e Deleuze, G, 1991).
Com efeito, o ser amante não-anulado, inquilino do universo – eis o modo como a escrita de Llansol, assim a leio, presentifica o pobre não submetido à categorização do discurso dominante/fulminante.
Dito de outra forma: um ser-em-devir e por-vir imiscuído num real-em-mutação e deslocado dos nós corredios das significações rígidas. A escrita de Llansol abre uma geografia pejada de ecossistemas, e destes, fazem parte as figuras do pobre, porque fora-de-série, sujeito-a-ser, para lá da dualidade subjectivismo/substancialismo e não assujeitado ao poder. O pobre é uma qualidade figural de que carece a humanidade e o mundo restante, conquanto manietado quanto à deflagração da sua virtualidade. O pobre-em-excursão pertence aos lugares dos não-lugares: “entre-dois quiasmático do visível e do invisível” (Merleau-Ponty, 1964).
Alerta: “[…] [a] dualidade pensada e assumida tem causado imensas e incalculáveis perdas ao ser humano mais comum. A ele, mas também a esta pedra, a este arbusto, a este bicho.” (Llansol, 1994,). Sucessão de danos infligidos ao(s) sentido(s) não-segregativo. Figuras ao serviço de uma figurabilidade (dia)crítica deste tempo nevoento em que prevalece a regra da marginalização da diferença, a normatividade do desvalor da liberdade criadora. A formulação “pobre” transpõe as sebes do predicado, precisamente por ser uma figura do desejo e da intensidade no âmbito da estética da pobreza que encaro como estética do encontro. Em contra-figura permanece a estética do contrato, do estado de guerra civil do Leviatã, urdido por Thomas Hobbes.
No fundo, a estética da pobreza por escrever é lugar u-tópico da mútua não-anulação da figura da Quimera:
“Mas há um sexo que desconhecemos, o que vem do futuro, chame-lhe vontade de mudança, vaga aspiração, desejo fortíssimo, como quiser, é a Quimera”
[relativamente à qual a figura de Pessoa/Aossê percepciona a estranheza do humano.]
Quimera é un dos elementos da estética da pobreza que conflitua com a estética cenistra (Llansol, 2002), por. ex. a da dita aldeia global [conceito de Marshall McLuhan, 1992], sucedânea dos realismos e mais ainda: dos humanos-lobos-dos-humanos (Hobbes), das Listas da solução final hitleriana (Llansol, 2002), das tenazes algorítmicas e da cibernética … das cripto-moedas e coreografias similares. Noutra voz: “[…] desenhando um trilho que avançadíssimos programas de tecnologias de vigilância com várias pontas visuais, auditivas, olfativas e cardíacas descodificavam.” (Portela, 2021, 169). De maneira cristalina, João Barrento lança luz sobre as linhas gerais em que assenta uma tal estética da pobreza:
Dialogando com a figura do pobre, Llansol oferece abrigo ao possíve/ à espera da outra margem/aos litorais adormecidos, fazendo ecoar, creio, o anúncio do super-homem nietzschiano: “Pôr no mundo crianças de nascer [itálico no original], e não crianças de cópia”, Llansol, 2018), replicadas a partir da cristalização do poder, crianças que transportem a potência do mito, da escrita de pasmo infantil (Llansol, 1985).
“Ana de Peñalosa suspeita todavia de que o pobre é o seu último disfarce.” (Llansol, 2008), ao arrepio da escrita realista.
A imagética do o super-homem entabula uma relação criativa, a do dom poético, de que gotejam volições-outras. Igualmente, o fluxo amoroso, transbordante: é inenarrável, incontável: a figura do pobre implica-nos numa decisão íntima em desfavor do Estado- Leviatã, mas sem jamais insuflar as velas saudosistas dirigida à Atlântica.
Pelo contário, os pobres devêm epístolas do mundo mutável, contra o mundo da mimese, d´[…]a pouca inteligência e a crueldade’ (Llansol, 2008). Saliento outro exemplo: Augusto Joaquim (o ambo), é o rebelde desertor do destino da guerra colonial a que o votava a ditadura. Eis o programa da sensualética (que cursarei num estudo mais aprofundado):
“[…] operação deste sentir [assente no funcionamento libidinal dos corpos e que tem a metamorfose imagética como ignição para que cheguem ao amor completo, corpos isolados, mesmo que eremíticos, mas corpos de corpos – massas, colectivos, agregados, comunidades… -, essa mutação a haver será sempre obra de um nós [de anastomose], por mais submerso que ele se apresente.” (do posfácio de Augusto Joaquim a Llansol, Llansol,1985).
Ainda do ponto de fuga estético [stricto sensu], creio que a ideia heideggeriana da obra na senda da verdade (Heidegger, 1991, 46), não é compatível com os textos de Llansol. Considero-os antes uma prefiguração mais próxima à de M. Blanchot (1971), porque sentem a arte como errância, distância, vagabundagem, exteriorização (anonimato/impessoalidade, despojamento do ego) (Blanchot, 1986) e exercício dubitativo e renunciativo face a qualquer guião da verdade, vizinho da compreensão intuitiva de Nietzsche- e, inclusivamente, julgo, de Montaigne, que assimila à escrita uma embriaguez natural (Montaigne, 2016).
A sensualética (aisthésis & ética) de Llansol difunde a aesthética (com o cunho de Baumgarten, 2020) e instabiliza-a no lugar sem onde da lonjura – de que é emblemática a experiência da música (Llansol, 1994b) -, do vadiar do pensamento que é, mutuamente, acolhimento da comunidade dos pobres. Figuras transbordo das fronteiras mapeadas pela lei comum – parálise, na expressão de Derrida, 2010 -, em favor do misticismo da doação. Doutro ângulo: uma espécie de um já e não ainda do livro A morte de Vergílio de Hernann Broch, 2014 “[…] de tal modo que nenhum corpo poderá ser naturalmente o executante de imagens alheias ao poder. Assim sendo, as finalidades do humano estarão a cargo exclusivo da própria espécie pré-humana [aquém da sujeição e da hierarquização].” (do posfácio de J. Augisto Mourão a Llansol, 2001).
Dou esta referência: na Volta do Duche – Sintra -, ao busto de Gregório Rafael Silva d´Almeida (o chamado médico dos pobres), que foi “[…] o Amigo Maior e mais desinteressado dos pobres […] “(Llansol, 2018) e ainda a seguinte menção ao merecimento dos pobres de “[…] uma pedra preciosa nascida da união dos dois vagabundos” (ibid., 2018).
Mais: D. Isabel/ Isabôl e a sua ligação à pobreza. Pobres que, entre muitas outras figuras, são hóspedes esperados-a-saudar na “casa […] de Toki Alai [abrigo em basco]” (Llansol, 2018) Em analepse-prolepse, Llansol apresenta o luar libidinal do terceiro livro da segunda trilogia: O Litoral do Mundo.
Desta tópica da figura do pobre não poderia deixar de evidenciar o entendimento do misticismo da pobreza por parte de Mestre Eckhart (2020): dialogante com místicas reno-flamengas e, em larga medida, com as beguinas e com os “Novos Poemas”, segundo Paulo Borges (2009), atribuídos a Hadewijch de Anvers (surgida na escrita de Llansol desde 1975 e, como Eckhart, figura da escuta, da sedução, do amor sem porquê) e com Marguerite Porete (vide McGinn, 1994).
Parto, especialmente, daquele que é conhecido como Sermão da Pobreza (Sermão 52, Eckhart, 2022)). Para o que mais importa, é preciso, desde logo, atender à diferença entre Got (Deus trinitário e criador) e Gottheit (divindade encarada como abismo sem fundo (Abgrund), filamento prévio e facilitador da mística negativa, tal como neste pedido de M. Eckhart: “Eu peço a Deus que me liberte de Deus”. (vide Eckhart, 1962).
É, afinal, dessa libertação que emerge a possibilidade da vida ímpar. pois deriva da mesma o ser-aí (Dasein) no mundo como causa sui, ou seja: ser-amoroso, tal como a legendária rosa sem porquê de Angelus Silesius (1991, e também em Epigramas (in O Cardo e a Rosa, trad. João Barrento, 2002, 89):
”A rosa é sem porquê, está em flor porque é flor,
Não pergunta se a vemos. de si não quer saber.”.
Para Mestre Eckhart, a bem-aventurança, à semelhança de Mateus (5, 3-0), centra-se n´ “os que são perseguidos por causa da justiça” e, desta maneira, nos Pobres, nos acossados. É o prolífero amor, tendencialmente místico, que nos convoca para uma vida-sem-porquê, para um movimento desprovido de transitividade e de teleologia recuperando a inconsciência primal do incausado imune à separação. O amor-sem-porquê, tão exemplarmente nos poemas de Hadewijch (com grande influência em J. Van Ruysbrueck), é ser-a-ser, ser-antes-de-ser, potência, simplicidade do porvir e da auto-criação, [des]constituição do sujeito (vide Sermão Beati pauperses spiritu, 2022). Hadewijch é esta virtualidade (no sentido de presença efectiva /afectiva) da fecundez, da abundância e do fulgor do amor ímpar, do mútuo em ritornelo (inclusive na acepção de Deleuze e Guattari, 1980 e 1991). Dito de outro modo: a sua figuralidade do amor aberto é corpo/espírito do dom poético.
Alguns versos de Hadewijch (traduzidos por J. Barrento):
“Aquele a que a Caridade
Toca no fundo da alma
Conhecerá muita hora de desolação”
“Ora humilhado, ora exaltado, agora escondido,
Manifesto ainda há pouco
Para se ser um dia atingido pela dilecção
É preciso arriscar muita aventura –
Antes de alcançar
Aquele ponto [a que Llansol chama ponto voraz] em que se desfruta
Da pura essência do Amor”
Julgo pertinente esta formulação do homem da infância: “O espírito de infância não faz quaisquer cálculos, não amontoa nada […] é sempre novo, volta sempre a partir dos começos do mundo, dos primeiros passos do amor. O homem racional é um homem acumulado, amontoado, construído. O homem de infância é o contrário de um homem adicionado sobre si mesmo: um homem retirado de si, que renasce em todo o nascimento de tudo.” (Bobin, 2013, 95).
O pobre não é parte de uma ontologia, porque destituído do ser substancialista. É o que o torna lugar-não-lugar, homo erotikos, estesiologia vacante e disponível, carisma da criança (vide Mateus, 11-25),
A pobreza-em-presença constela a figura do pobre como o despojado, o esvaziado do despotismo da vontade), na acepção de Kénosis, figura da paisagem-em-passagem, vontade de metanoia (: uma mudança de olhar, uma inversão qualitativa do modus vivendi) aberta-em-Aberto (o Aberto no sentido de Rilke, oitava Elegia de Duíno, 2020) e vinculada a uma ucronia (Barrento, in 2010, 17) – capaz de reunir forças que magnetizam o entre. Di-lo Llansol: “como escritor tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre do tempo” ou “como adjacência de tempos, como simultaneidade inscrita no devir.” (Llansol1998b,).
Um outro encontro que introduzo neste texto, conquanto de forma muito sucinta, é o perfil do pobre em Raúl Brandão. O autor de Húmus imprime uma dimensão dramática associada aos pobres: “A figura duma pobre mão estendida é uma figura dramática” (Brandão, 1931, 135). [do relicário de memórias de Llansol]: “[…] meu pai […] estando à janela de guilhotina, viu um pedinte no Largo. Manda vir a casa o barbeiro para lhe fazer a barba e cortar o cabelo. Manda ir buscar uma camisa e roupa branca, manda dar-lhe jantar.” (Llansol, 2008, e Caderno 1.03 in Llansol, 2018)].
Tal como na nossa escrevente também em R. Brandão, a figura do pobre, seja por implicação endógena – pois um lado d” a tragédia é interior” ´ (Brandão, Ibid., 158), seja por decisão com repercussão extrínseca, p.ex. a resolução de afastar-se da turba que o repudia e a de prosseguir na vereda da sua singularidade-borrão (Ibid., 138) advindo das margens e das fugas em ré menor (de Bach) nas tábuas do sonho.
No seu realismo irrealista (Simões, J. G., 1987), Raúl Brandão acerca-se do pobre como criatura singular – na linha de Gorki (p. ex., 2022), pautada pelo realismo da compaixão e do alerta para a sua condição de preteridos. Ou seja: aglutina os pobres no infra-humano excluído: figuras de espera (Pereira, 2022, 160).
“Há pobres numa decadência que faz frio, de pessoas que querem manter certa aparência e têm fome aos setenta anos, há-os infantis, há-os que se põem a olhar para a gente com a boca a tremer”; “Amo os criadores pela figura que fazem [em itálico no original]. Assombrando o deserto atraem os pobres, a quem faltam letras. […] e em relação a quem é necessária uma verdadeira acção, Llansol, 2020b].
Sob domínio dos poderosos, “os pobres fazem-se mais pequenos para não ocuparem lugar.” (Brandão, 2017, 41). Da minha humílima perspectiva, é, justamente, esse lugar-casa [“Casa, não espaço fechado mas ser que envolve outro ser, que por sua vez será envolvido, Llansol, 2010] que a escrita llansoliana lhes franqueia vendo-os à luz da perfectibilidade, do possível-real do novo, do visitante textual que vem habitar. R. Brandão, ao enfocar boa parte da sua obra na pobreza, acaba por, sub-repticiamente, denunciá-la, mantendo viva a vontade-de-acção transmutadora dos “seres de abandono, plantas que vivem estioladas” (Brandão, Ibid., 86).
Mais saliento a ligação à vividez da natureza (pois, diferentemente, de Protágoras, o homem não é a medida de todas as coisas), ponto cardeal da sensualética de um pobre-entre-pobres. Como nesta fala de Gabiru:
“Quando pois me chegar a vez de ser humano hei-de viver. Quero viver da minha própria vida; quero que fale dentro de mim o universo que eu já fui – a pedra que eu já fui – a árvore que eu já fui – o bicho humilde que eu já fui…” (Brandão, Ibid., 91).
Por outro lado, há o elo respeitante à união das figuras do pobre às tensões libidinais: a configuração do pobre como viator do encontro além/aquém da banalização do mal (expressão de Hannah Arendt, 2017) perpetrada pelo poder emalhado no social: “a vida é um acto religioso ou um acto brutal e inútil” (R. Brandão).
Sobre o amor, contiguidade com Llansol:” amar não consiste em fazeres o teu dever – nem mesmo te despires pelos outros- amar é irradiação. Amar é um estado de graça. Poder amar é quasi ser deus” (Brandão, Ibid, 181, sublinhado meu). Em Llansol: “O amor é uma saudação de caminhantes. Um chá que cura a valer”, 2001): um erotismo religioso, místico. E o revés do amor: “[…] há avarentos que se guardam em casa, mal suspeitam de um olhar de pobre.” (Llansol, 2000b).
Encontro, tanto em Llansol como em R. Brandão, um relevo espiritual atribuído à singularidade do pobre que se insurge contra os aduladores do príncipe e cuja pista textual é o desejo de justiça, tal como como propõe, entre outros, Derrida (vide Bernardo, 2021), desafiando-nos a mudar as vestes do sujeito-espectador, da acomodação, do logos invulnerável, portanto, ao pensamento do corpo, ao cognoscente amativo sem titular e sem foro.
Todavia, entendo que em Llansol – por contraste com R. Brandão- é mais figural e rebelde a demanda do sim incoactivo, sem porquê (de Hadewijch a Silesius e a Eckhart), pois, muito dificilmente visualizo nos textos de R. Brandão um efúgio, uma vez que o pobre é, sobretudo, marcado pelo circunstancial e pela disforia do ensimesmamento, embora a partilha não esteja ausente. Por exemplo, no café preparado para a partilha com outrem, no texto dramatúrgico Gebo e Sombra (2003), acto segundo. Mas, uma leitura atenta de Llansol mostra quão mais fulgurante a necessidade de abdicação do poder, renúncia à posse, inclusive do amado.
Em jeito de epílogo: mal errante é a forma como a História [des]trata a figura do pobre que, em Llansol, é arquétipo de futuro. Catalogando o pobre, no sentido alumiado infra, como marginal, louco, doente, refugiado, vagabundo, saltimbanco (Llansol, 2000b,) migrante, pedinte, o Poder quer vigiá-lo, censurá-lo, excluí-lo – assim mostram as anfractuosidades do terror -, gaseando, anulando, vilipendiando, diminuindo o valor da diversidade e de uma nova arte libidinal comunitária. Contudo, “O barco ainda não veio” (lê-se no Livro das Comunidades), e tão amplas as travessias: há que aparelhar as velas, ousar presentificar os sonhos dos pobres sob um olhar não-preso às disjunções. Ou seja: saudá-los como companheiros de jogo (Llansol, 1991), como alguém. Com os pobres cheguei à vivo do texto, e com eles vou de partida.
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nota: o autor deste texto não segue acordos ortográficos/imposturas da língua.
* escritor: poeta, ensaísta & etc. – investigador nas áreas da filosofia e da literatura. Publicou os livros de poesia: A Tela do Mundo; No lugar da Pouca Farinha; Consoante as Esteva e Elogio da Espera. No prelo: livro de poesia e ensaio sobre a intertextualidade A. Ramos Rosa e M. Merleau-Ponty. Colaborou em diversas antologias, revistas, nacionais e estrangeiras. Mestre em teoria da Literatura & etc. _
** este estudo teve como ponto de partida uma comunicação no Espaço Llansol, a convite do Prof. João Barrento, tema escolhido por mim. Em sequência, fui convidado a rever e ampliar o texto-lido (finais de 2022) para que o mesmo fosse publicado, em Caderno autónimo, pela mesma instituição, mas até este momento inédito.
Referências
Obras de Maria Gabriela Llansol
1986 – Contos do Mal Errante. Edições Rolim.
1987 – Os Pregos na Erva. Edições Rolim.
1991 – Um beijo dado mais tarde. Edições Rolim.
1994 – Lisboaleipzig 1. O encontro inesperado do diverso. Edições Rolim.
1994b – Lisboaleipzig 2. O Ensaio de Música. Edições Rolim.
1996 – Inquérito às Quatro Confidências. Diário III. Relógio d´Água.
1996b – Causa Amante. Relógio d`Água.
1998- Ardente Texto Joshua. Relógio D´Água.
1998b – Um Falcão no Punho. Relógio D´Água.
1999 – O Livro das Comunidades. Seguido de Apontamentos sobre a Escola da Rua Namur. Relógio D´Água.
2000 – Finita. Diário 2. Edições Rolim.
2000b – Cantileno. Relógio D´Água.
2000b – Onde Vais, Drama-Poesia?. Relógio D´Água.
2001- Parasceve. Relógio D’Água.
2002 – O Senhor de Herbais. Relógio D´ Água.
2003- O jogo da liberdade da alma. Relógio D´Água.
2003b – O Começo de um Livro é Precioso. Assírio & Alvim.
2004- O raio sobre o lápis (desenhos de Julião Sarmento). Assírio & Alvim.
2006 – Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004. Assírio & Alvim.
2007- Desenhos a Lápis com Fala – Amar um cão [desenhos de Augusto Joaquim,
Posfácio João Barrento]. Assírio & Alvim.
2001 – A Restante Vida. Relógio D´Água.
2003 – Na Casa de Julho a Agosto. Relógio D´Água.
2010 – Um Arco Singular. Livro de Horas II. Assírio & Alvim.
2015 – “O homem do livro”. Nietzsche e Llansol. Cadernos da Letra E. Espaço Llansol.
2018 – Llansol uma vida de escrita. De Campo de Ourique…ao infinito. [Org. João Barrento e Maria Etelvina Santos]. Espaço Llansol e Mariposa Azual
2018b – Herbais de Silêncio. Livro das Horas VI. Assírio & Alvim.
2019 – Da Sebe ao Ser. [Org. de João Barrento e Maria Etelvina Santos] Assírio & Alvim.
2020- O sonho é um grande escritor. Livro de Horas VII. [selec. e notas João Barrento e Maria Etelvina Santos]. Assírio & Alvim.
2020b – O Texto-Catarina. [Org. João Barrento e Maria Etelvina Santos]. Edições Sr. Teste.
2021- A Voz das Figuras. [Selec. e Pref. de João Barrento]. Cadernos de Tejo-Rio #15.
2022 – “Um ser musical e vivo”. Os gatos de Maria Gabriela Llansol. Cadernos de Tejo-Rio #20.
Espaço Llansol.
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