ALFREDO SOARES-FERREIRA
Alfredo Soares-Ferreira é Autor de várias intervenções, comunicações e publicações relacionadas com Cooperação e Educação para o Desenvolvimento, em Portugal, Angola, Cabo-Verde, Espanha, Guiné-Bissau, Itália, Moçambique e Timor-Leste. É Consultor de Projectos Educativos e de Inclusão Social de algumas instituições, nacionais e internacionais. É membro dos Colectivos “Porto Com Norte, Fórum de Cidadania”, “Fórum Manifesto”, “Liberdade e Pensamento Crítico” e “Tanto Mar”. É co-Autor de “Portugal, Revolução, Unidade Socialista” (1977), “Bracarenses na crise académica de 1969” (2019) e “Paranhos em Poesia, Antologia Poética” (2021). É Autor de “Reflexos do Rio Torto” (2014), “Rio Torto- A Nascente” (2021) e “Escrita da Leitura” (2024). É Licenciado em Engenharia de Telecomunicações, pós-graduado em Gestão e Estratégia Empresarial e em Administração Educacional. Actualmente aposentado de funções públicas, foi Engenheiro e Professor em diversos graus de ensino, secundário, profissional e superior.
A nota inicial vai para o Carlos Matos Gomes, Homem de Abril e da Revolução, um inconformado, um contador de estórias e um mestre da palavra, que nos deixou no passado 13 de Abril. A coincidência de ter partido em Abril deixa-nos a pensar que desaparece um pouco da Revolução a quem ele deu tudo. Fica a sua obra para a memória que urge preservar.
O aparente descontentamento tem uma origem bem fixada. Logo após a decisão da Assembleia da República ter sido anunciada, toda a comunicação social sem qualquer excepção “decretou”, “os portugueses não querem eleições”. Tal acontece devido às primeiras declarações dos partidos do designado centrão partidário, os mesmo que governam há cinquenta anos, porque se apresentam como os “fundadores da Democracia” e chamam a si a “responsabilidade” do governar o País. O facto de estarem no governo, ou na oposição não lhes retira o Poder, porque estar na oposição também é Poder, veja-se o cognome “líder da oposição”. Tudo é afinal muito claro e mais claro ainda será a circunstância de reclamaram para si a polémica questão, a chamada “estabilidade”, a falácia que serve sempre os que se julgam “proprietários” da dita “democracia”. Assim se privatiza o acto eleitoral, o mesmo acontecendo à castigada “democracia”, que hoje mais parece uma “democratapia”, termo que resulta da fusão de “democracia” e “terapia” e que foi cunhado pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek. A proposta de Žižek é introduzir a ideia de “gozo” (no original “goce”, ou “jouissance”), um conceito do psicanalista francês Jacques-Marie Lacan, que não é o mero prazer, mas sim um desejo insaciável, uma satisfação pulsional, que aliada à ideologia e à violência sistémica sustentam o capitalismo global. Daí a sua crítica à “democratapia” (ou “democracia terapêutica“) e à defesa de uma ruptura radical que consiga oferecer a emancipação, num mundo marcado por crises e desigualdades.
O questionamento das “certezas” políticas e culturais conduz à necessária interrogação sobre a instituição “debate”, com a modelagem século XXI, que é porventura o melhor exemplo da política do espectáculo nas televisões. Dessa forma se reproduz o modelo “pró e contra”, que não tem a mínima intenção de esclarecer conceitos e propostas dos candidatos, mas sim acentuar a polarização dos temas escolhidos pelas estações televisivas e moldar um putativo candidato a primeiro-ministro, deixando de lado o objectivo primeiro das eleições legislativas que é a eleição dos deputados da República. Daí resulta a natural subalternização do Parlamento e da designada “representação popular”. O “gozo” arquitectado e forçado, do prazer de dominar e da dor de ser dominado, está então bem desenhado no acto eleitoral, muito longe de ser um contentamento e que passa rapidamente ao seu oposto, na participação sempre decrescente no acto propriamente dito. O que neste momento conta é o que as televisões dizem que conta, circunstância que aliás acontece nos restantes órgãos de comunicação social detidos pelas grandes empresas. E a maior tragicidade ocorre a maior parte das vezes com as televisões e rádios do Estado, secundando a política-espectáculo em detrimento da informação séria e formativa que se impunha. Tudo isso a acrescentar ao ridículo de uma aparente “avaliação de desempenho” dos candidatos levada a cabo pelos designados “comentadores”, na sua maioria agentes (mal)disfarçados de agremiações direitistas e fascizantes, ainda que mascaradas de “isenção”, “moderação” e “sentido de estado”.
Estará nos debates a constatação de uma terapia da democracia? A resposta terá algum significado se o seu sentido pudesse ser eventualmente um aviso à deterioração completa do sistema burguês de representação. De outra forma, apenas servirá para caucionar práticas e regras de dominação, aparentemente aceites pelos intervenientes e assentes no velho princípio, escrito no romance histórico “O Leopardo” do escritor Giuseppe di Lampedusa, na segunda metade do século XIX: “é preciso mudar alguma coisa para ficar tudo na mesma”.
Este Maio pode ser mais uma primavera do nosso descontentamento, parafraseando a frase de Shakespeare, com a diferença da estação, que no Autor era “inverno” e servia como metáfora para representar um período de sofrimento e conflito, enquanto o “verão glorioso do sol de York” simbolizava a falsa paz que precede uma ambição destruidora. Nas raízes do descontentamento estarão decerto as desigualdades e alguma desconfiança, bem como o funcionamento de uma economia que privilegia os baixos salários e a instabilidade permanente no emprego. Se somarmos os preços da habitação e o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde e os ataques à Escola Pública, devido à prestação deficiente dos dois Partidos do centrão, temos o caldo propício ao crescimento da extrema-direita que ambos dizem renegar, mas que, cada um a seu modo, fez e faz o que pode para reanimar. E se pusermos em cima do bolo a “cereja” da Justiça, teremos a festa completa num ministério que, em vez de ser público, está “privatizado” para servir os populismos da extrema-direita e que, por não merecer credibilidade nem confiança, precisa urgentemente de ser restituído à esfera pública.
Carlos Matos Gomes, a quem rendemos justa homenagem, escreveu em 2023, “A Verdade Única e a Heresia de Pensar”. Nele poderemos encontrar uma crítica mordaz à “Democratapia“, afinal a democracia burguesa, onde se pede aos oprimidos que confiem nos ritmos lentos das instituições. Embora não utilize o termo de forma explícita, a ideia está lá. Uma “democracia” doente, onde se multiplicam discursos progressistas para legitimar o domínio do Capital e em que as eleições são a “terapia colectiva“, um ritual que dá ilusão de participação, mas que mantém o poder nas mãos dos mesmos e não altera significativamente a lógica do sistema. Neste sistema doente, “…o voto passou a ser uma mercadoria” e a “questão central da política era e é de convencer clientes a comprar um produto” (pág. 159).
Quando formos votar (descontentes) deveremos estar conscientes desta realidade.
Incomunidade, 20 Abril 2025
Alfredo Soares-Ferreira