As deusas solares e as Barbies

MARIA AZENHA


É usual hoje em dia considerar o Sol eminentemente masculino, mas nem sempre foi assim.

Em certas tradições o Sol era mesmo uma deusa antes de se tornar um deus.

Vejamos como ele é apresentado em algumas culturas:

I – Na época clássica, a deusa Aurora, irmã de Hélios o Sol e Selene a Lua, representava o Sol nascente.

A imagem de uma mulher jovem semelhante ao Sol nascente é encontrada em muitas outras civilizações.

Por exemplo,

II –  No panteão védico, a aurora é também simbolizada por uma deusa de incomparável beleza, chamada Usas, uma das raras divindades femininas a quem são dedicados numerosos hinos no Rig-Veda. O seu poder é imenso pois ela repele as Trevas. Ela simboliza a vitória do bem sobre o mal. Também tem o poder de despertar os seres como iniciadora e portadora de luz.

Notemos que Usas apressa-se a vencer a noite, antes de tudo por amor, para se poder juntar àquele que ama.

Aqui a Luz é ao mesmo tempo feminina e masculina e a complementaridade das duas polaridades realiza-se não ao nível de um positivo-negativo ou ativo-passivo, mas sim em função da ordem de aparecimento, o feminino precedendo o masculino.

 

III – A Arábia pré-islâmica oferece-nos um bouquet de divindades femininas.

Heródoto dizia que os árabes adoravam o equivalente aos Dionisos(1) e Ourania(2)  gregos, sob os nomes de Orotal e Alilat.

Para os especialistas, o deus Orotal tornou-se Ruda (Benevolência), às vezes representado por uma figura feminina.

Quanto a Alilat transformou-se em Allât, o que significa simplesmente “a Deusa”.

Segundo o Alcorão (16,57) trata-se da esposa ou uma das três filhas de Alá (literalmente:” o Deus”).

  • Não confundir Dionísio com Dioniso. Dionísio quer dizer dedicado a Dioniso, que na antiga religião grega representa o deus dos ciclos vitais (filho de Zeus e da princesa Semele).
  • Ourânia ou Urânia representa o amor mais celestial do corpo e da alma.

Mais ao norte, na atual Arábia saudita, a divindade suprema era uma deusa solar chamada de Allât.

Era então uma deusa que ocupava o ápice do panteão e o próprio Sol tinha natureza feminina.

É de observar que a palavra Sol, em árabe, é do género feminino.

IV – Na mitologia chinesa não há apenas um, mas dez sóis, que se deslocam um de cada vez, graças a uma carruagem cujo cocheiro não é senão a mãe deles.

Embora não tenha natureza feminina, o Sol procede do feminino de que emanou, melhor ainda, é movido por esse aspecto feminino.

É então yang, já que é de fogo, mas o movimento que o anima provém do yin maternal.

 

V  No Japão, a principal divindade do panteão é Amaterasu- OmiKami, deusa do Sol, além de ancestral do clã imperial.

Um dos seus irmãos é o deus da Lua e, o outro, o deus do mar. Este último tem por atributo um sabre, ao passo que a cintilante deusa tem jóias.

Mas por ter tido mau comportamento, este último, o deus do mar, ele terá provocado a ira de Amaterasu.

Amaterasu fechou-se então numa caverna   mergulhando o mundo em trevas e caos.

E nada a faria sair a não ser a curiosidade.  Mas… ao ouvir as outras divindades rirem diante de uma dança sensual executada por uma delas, ela espreitou para fora da gruta, onde havia sido colocado um espelho na entrada.

Amaterasu intrigada com a sua própria imagem , saiu e a vida readquiriu os seus direitos.

Isto para dizer que a deusa- Sol representa no Japão, não somente a Força vital, mas também a supremacia da paz e da ordem sobre a guerra e o caos.

 

VI – Entre os esquimós, o Sol é também uma deusa, Siqiniq, a irmã de Taqiq, deus da lua.

O seu papel é bastante limitado, pois o Sol brilha pouco nas latitudes boreais, ainda que seja ele que imprima os ritmos de ordem cósmica e terrestre.

 

VII – Na Roma antiga, era Mater Matuta quem representava a Aurora.

Era ela que colocava o Sol no mundo cada manhã.

Isto fazia dela uma deusa maternal. E protectora.

Mater Matuta possuía em si todo a Força vital do Mundo.

O aspeto masculino do Sol, brilhando no céu, era tributário de uma ação feminina que o precedia e sem o que ele nada era.

 

VIII –Também os eslavos viam em Zarya a deusa do alvorecer.

Era uma guerreira  incumbida  de combater as trevas da noite e de as dissipar.

Ela nada tinha de pacífica, mas a sua violência não era gratuita, visto que estava ao serviço do bem.

 

IX – Entre os babilónios havia uma divindade semelhante – Dilbah-também guerreira  de armadura flamejante, que fazia a luz triunfar sobre as trevas.

 

X – Para os bascos, o nome do Sol variava conforme as regiões.

Eles distinguem Euzki, a luz solar, de Euzkigegi, o olho do Sol, ou seja ele mesmo.

Mas o que é interessante é que se trata de uma personagem feminina: a Grande Mãe Sol.

Ela é qualificada como “bendita” e “santa”. É-lhe atribuído o poder de expulsar os espíritos nefastos da noite.

Pensa-se que ela nasceu da terra e, quando se deita no oeste, dizem os bascos que a “Grande Mãe Sol vai para junto de sua mãe”.

Para os bascos, a Criação em seu todo é então feminina.

Todavia, em certas regiões, pensa-se que a mãe do Sol é antes a deusa Mari, figura muito importante da mitologia basca, ora semelhante  à Mãe- Terra universal, ora semelhante

à Virgem Maria numa perspetiva cristã.

                                                                    *

Fora das divindades, o Sol é concebido como uma potência feminina em muitos mitos celtas posteriores à cristianização.

Várias heroínas têm aí o nome de Grainné, vocábulo que significa “sol”.

Essas heroínas eram frequentemente aparentadas com o sol negro, isto é, o sol não material, da realidade espiritual que brilha para os Adeptos.

Deve observar-se que, quando ele aparece àquele que o busca, é frequentemente entregue a ele por uma jovem mulher.

Compreendemos assim, ainda que numa lista muito incompleta, que os aspetos solares ligados ao princípio feminino são numerosos. Restam vestígios simples disso na língua, como em árabe, conforme vimos, ou ainda em alemão, onde a palavra “sol” é feminina – “die Sonne”, ao passo que “der Mond” (a lua) é masculina.

Esta abundância de evidências demonstra que considerar o feminino como um aspecto solar foi um procedimento comum no seio de civilizações muito distintas e afastadas, tanto geograficamente como temporalmente.

Ao longo dos tempos esse aspecto solar feminino foi decaindo, tendo sido substituído pelo seu oposto.

 

E actualmente como é encarado o aspecto Feminino na Sociedade?

Mais propriamente:

Que mulher a sociedade reflecte?

 

A MULHER-SACRA?

A MULHER-OBJECTO?

A MULHER-BONECA?

A MULHER-CAMPEÃ?

A MULHER-SALVADORA?

A MULHER-MÁQUINA?

 

 

Termino com dois textos poéticos que podem enquadrar

estas questões, ficando a reflexão em aberto.

 


Barbie, fanática religiosa

Denise Duhamel

 

Eva, a primogénita,
não tinha umbigo porque não brotou
de útero nenhum. Barbie vê seu nascimento
estéril e sem sangue também. Aliando-se ao sagrado,
ela diz com fervor Nunca lamentarei a ausência de um útero.
Nunca conhecerei uma mãe defeituosa.
Mas criada numa sociedade campeã
em pisotear o espírito feminino, Barbie foi ensinada
a se sentir mal pelo que não tinha. Tão oca
quanto o Homem de Lata, se envergonhava
pelo coração ausente. Se achou inadequada,
esvaziada de osso e tripa. Foi também a natureza incompleta
de boneca que a encaminhou para a religião. Antes da Queda,
a Eva, como a Barbie: sem menstruação, cólica, dor
de parto. Agora a amiga da Barbie, Judite,
A Barbie-grávida, da mesma forma faz do parto uma entrega
Sem estria, gritaria, placenta, anestesia.
A barriga da Judite é um alçapão que esconde uma criança limpinha
com a cabeça cheia de cabelo. Remova o bebé, pressione a barriga,
e Judite já está pronta para usar as roupas da Barbie.
Barbie questiona-se : a amiga é um sinal:
A Judite poderia ser virgem mesmo sem vagina?
Poderia a imaculada conceição ser aplicada ao plástico?
Esses mini-salvadores, brancos e negros,
como suas mães, caberiam facilmente nos bercinhos
em presépios no natal.
Poderia o próximo messias ser uma menina?
Poderia Judite, a amiga da Barbie, ser a próxima Maria?
Mesmo sem doutorado em teologia,
Barbie consegue ligar os pontos.
Sabe que chegou bem antes do Ken, sem precisar
da costela dele, o que a faz se perguntar
sobre Adão, se ele realmente chegou antes que a Eva
no Jardim do Éden. Barbie se imagina uma apóstola
da primeira onda do segundo advento
enquanto junta panfletos religiosos –
A Boa NovaSorria – Deus Te Ama–  desses
distribuídos pela Testemunhas de Jeová. Ela risca
partes que não concorda e polvilha o texto
de setas e o nome “Judite”. Clientes juntam-se
enquanto Barbie prega sua versão no corredor
de bonecas das Lojas Americanas. As guerras
e desastres naturais continuam, certamente, da
forma como ela previu. Embora as menorzinhas acreditem nela,
no começo estão muito ocupadas brincando
para entender as conexões. Uns heregezinhos jogam
a filhinha da Judite no fundo das caixas de brinquedo
e a esquecem lá por anos. Vocês não enxergam? diz Barbie,
veste o biquíni e aponta para onde seu umbigo deveria estar.
A voz dela é pura potência, sem precisar de bateria
ou cordinha. E a Mattel, Barbie clama, é seu Deus amado.
Ela se dá bem especialmente na conversão das meninas
conforme elas crescem e enxergam os próprios defeitos. Elas louvam
o paraíso da Barbie – roupas, casas, carros.
Ela é livre como elas esperam ser –
sem maçãs de plástico à vista.

 

Tradução de Emanuela Siqueira e Julia Raiz

Sobre a autora: nascida em 1961 no estado de Rhode Island (EUA), Denise Duhamel é uma poeta que se destaca da sua geração. Desde os primeiros livros publicados, sua escrita é fortemente marcada por uma perspectiva feminista, humor sagaz e aguçada crítica cultural.


V ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas
Lumiar . Lisboa . 17 de março de 2018