As anotações de um poeta gnóstico

 

CLAUDIO WILLER


Nos estudos sobre o gnosticismo – campo bem familiar para Gledson Souza – há uma divisão de interpretações. Uma delas, esposada por Festugière, Doresse e outros especialistas, distingue a “gnose pessimista”, da “gnose otimista”. A outra, formulada por Hans Jonas, interpreta gnosticismo de um modo mais amplo: corresponderia à religião individual, à busca do retorno à Unidade através do conhecimento. De um “entendimento não discursivo”, como frisa Bentley Layton. Nesse caso, pertenceriam igualmente ao campo do gnosticismo, de um lado, “escrituras” mais típicas, expondo uma mitologia ou teologia especulativa segundo a qual o mundo é regido por um mau demiurgo, acompanhado por arcontes ou regentes igualmente horríveis. Semelhante gnosticismo abrange as doutrinas de um pessimismo extremo, como o maniqueísmo. De outro lado, no polo otimista, o Corpus Hermeticum e inumeráveis visões de místicos com seus vislumbres da unidade ou de uma harmonia universal, incluindo Jacob Böhme.

Conforme insisti em um curso recente sobre William Blake, místicos e poetas visionários podem apresentar as duas modalidades de gnosticismo, pois não são ideólogos nem doutrinadores de matriz aristotélica. Para eles, pouco importa o princípio da identidade e não-contradição. Assim, no Asclépio, principal dos escritos do Corpus Hermeticum, em seguida à sacralização do sexo, à declaração da presença do divino no mundo, à afirmação de que homens podem criar deuses, é dito que o mundo, invadido por homens maus, deverá acabar. Um final maniqueísta em um escrito de um otimismo exuberante.

Já havia observado a presença ou soma dos dois gnosticismos ao escrever sobre o livro precedente de Gledson, o belo Fantasmas. Inclusive, exemplificando com o Gérard de Nerval de “El desdichado” e “Versos dourados”: é o mesmo poeta, mostrando visões opostas através de um poema especialmente sombrio e de outro que é sublime. Poderia mostrar o mesmo a propósito, entre tantos bons exemplos, da exaltação e do pessimismo em Fernando Pessoa; da bipolaridade exacerbada em Rimbaud; de Walt Whitman em êxtase, enxergando o universo na folha de na folha de relva, e sombrio ao situar-se nas grandes metrópoles.

Em pôr a poesia – seguido de espiral (editora Córrego, 2020), Gledson apresenta-se como gnóstico e panteísta, simultaneamente. Confronta as duas cosmovisões, em passagens como esta, de espiral:

Vi

O começo do mundo

O demiurgo criava

O que a Deusa sonhara

Ou neste trecho de pôr a poesia:

E seguimos adiante, centauro e aprendiz cruzando o sertão, encontrando mortos e outros em procissões, cruzamos a matéria até sair do outro lado do papel milimetrado, esquadrinhado por deuses perversos e dionísios, e dianas encantadas prontas a nos resgatarem das mãos do falso demiurgo. Assim fomos felizes na travessia, despedimo-nos da razão, levantamos vela, eia, adiante, vamos viver sempre o tempo que nos resta!

Fala em uma travessia. O trecho permite paralelos com dois poemas capitais tratando de viagens. Um deles, “A viagem”, poema extenso de Baudelaire, escolhido por ele para encerrar As flores do mal: dispõe-se a correr todos os riscos ao percorrer todos os lugares possíveis (e Baudelaire detestava viajar), desde que, ao final, encontre o novo. O outro, também extenso, é O barco bêbado de Rimbaud: sim, a navegação ao território da Utopia é possível, desde que os condutores do barco – entenda-se, a razão aristotélica e cartesiana – sejam destruídos. Há uma plena consciência desse trajeto: “Contracorrente o rio da poesia flui em direção ao mar.”

Reunindo prosa poética, crônica e algum ensaio, o livro também pertence à família dos relatos de viagem, pelo mundo natural e ao mesmo tempo mítico, integrados. Seu glossário de espécies vivas procede à fusão do mítico e natural, ou à naturalização do mítico, ao nos apresentar, sucessivamente, a águia prometeica, o miriápode, tamanduá-bandeira (bicho da predileção de André Breton), urutau, a terrível caravela portuguesa (a água-viva que aflige banhistas), o beija-flor e os porcos de Circe.

Viaja, mas com os pés no chão, sabendo onde está:

A poesia não é um irracional. Irracionais são as formas econômicas que insistem na destruição como um motor e que levam o planeta à beira do abismo, abismo esse como puro lugar da queda, sem redenção.

Superar fronteiras permite situá-lo na categoria que Alexandrian, em seu excelente História da filosofia oculta, designa como “gnósticos modernos”:

A palavra Gnose é imortal e serve para designar, ainda hoje, uma tentativa de vanguarda. […] Os gnósticos modernos são também aqueles que procuram os pontos de concordância de todas as religiões, que reivindicam uma moral anticonformista, uma tomada de consciência das instituições do pensamento mágico, enfim, todos os que propõem um método de salvação aos seres que se sentem “estrangeiros” neste mundo.

Surpreende, na produção literária de Gledson Souza, como é possível escrever deste modo, ser tão visionário, e, ao mesmo tempo, “normal”, desempenhando sua atividade profissional, voltado para sua família, fazendo as coisas que outras pessoas fazem. Como pode ele não estar à margem da nossa sociedade, até mesmo, como já aconteceu com outros poetas-profetas ou poetas-videntes, institucionalizado ou errando pelas quebradas da vida, assombração urbana? E, ao mesmo tempo, dar a impressão de haver estado em contato com os deuses da Antiguidade, de modo semelhante a Hölderlin ao ser “fulminado por Apolo”. O Hölderlin cuja frase, “Das Heilige sei mein Wort”, “Que o sagrado seja minha palavra”, se aplica à sua obra.

Já havia observado essa reconquista do sagrado através da poesia na apresentação de Fantasmas, citando o excelente ensaio A poesia e os deuses de Roberto Calasso:

Os deuses são hóspedes fugidios da literatura. Deixam nela os rastros dos seus nomes. Mas logo a desertam também. Toda a vez que um escritor esboça um texto, tem que reconquistá-los.

Gledson empreende o que Calasso examina como reconquista dos deuses por escritores. Mas não se limita a invocá-los no modo clássico. Procura evidenciá-los. Traz, novamente citando Calasso, “Aquela espécie de “evidência” que, depois, foi herdada pela poesia. E que é, talvez, o traço que mais a distingue de qualquer outra forma literária.” Isso, através da “literatura absoluta”. Nela, “nos interstícios daquele teatro, já se abrem, diante dos olhos de todos, as vastas cavernas onde ressoam, como sempre, os nomes dos deuses.”

A essa categoria, “literatura absoluta”, com sua simbiose de gêneros, sua proposição de uma nova linguagem, o “baixo-serpentês”, pertence o binômio pôr a poesia – espiral.


Claudio Jorge Willer (São Paulo, 2 de dezembro de 1940) é um poeta, ensaísta, crítico e tradutor brasileiro. Graduado em Psicologia pela USP (1966) e em Ciências Sociais e Políticas pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1963), obteve o título de Doutor em Letras, pela FFLCH-USP, na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, com a tese “Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e a Poesia Moderna”, aprovada com distinção em 28 de março de 2008.[1] Completou pós-doutorado em 2011, também em Letras na USP, com ensaios sobre o tema “Religiões estranhas, msiticismo e poesia”.

Como poeta, Willer distingue-se pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Ao lado de Sergio Lima e Roberto Piva, é um dos únicos poetas brasileiros a receber menção do periódico francês La Bréche – Actión Surrealisté, dirigida por André Breton em fevereiro de 1965.

Como crítico e ensaísta, escreveu em vários periódicos brasileiros: nos diários Jornal da Tarde, Jornal do Brasil (caderno Idéias), Folha de S. Paulo,O Estado de S. Paulo, Correio Braziliense, nas revistas Isto É e Cult e em publicações da imprensa alternativa e independente: jornal Versus, revista Singular e Plural, jornal O Escritor da UBE, Linguagem Viva, Muito Mais, Página Central, Reserva Cultural (cinema) e outras.

Seus trabalhos estão incluídos em antologias e coletâneas, no Brasil e em outros países, além de uma bibliografia crítica, formada por ensaios em revistas literárias, resenhas e reportagens na imprensa, além de citação ou comentários em obras de história da literatura brasileira, como as de Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Carlos Nejar, José Paulo Paes, Luciana Stegagno-Picchio.

Ocupou cargos públicos em administração cultural e presidiu por vários mandatos a UBE, União Brasileira de Escritores.

Co-editou, com Floriano Martins, a revista eletrônica Agulha, de 1999 a 2009. Ministrou inúmeros cursos e palestras e coordenou oficinas literárias em universidades, casas de cultura e outras instituições. 

Da Wikipedia

 


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