Artesãos, Artistas, Artes e Belas-Artes

A.M. GALOPIM DE CARVALHO


Na Grécia Antiga, Platão (428-348 a.C.) definiu arte como um reflexo da capacidade do ser humano para criar obras de modo inteligente através de uma aprendizagem adequada. Na mesma época, o seu mais conhecido discípulo, Aristóteles (384-322 a.C.), definiu-a como sendo uma capacidade dos seus semelhantes para produzirem obras de forma racional. Diga-se, a propósito, que, no tempo em que viveram ou mesmo antes, a palavra tecnhê referia não só a técnica, como também a habilidade para realizar qualquer atividade produtiva, artística ou não. A técnica, que então se confundia com a arte, era, como hoje, toda a actividade, sujeita a aprendizagem, que visa obter um determinado resultado, num qualquer tipo de actividade programada, baseada em regras definidas, o que não exclui a criatividade de quem a pratica. Com técnica ou arte se fazia um barco, uma túnica ou uma sandália, se proferia um discurso, se pintava um vaso ou se esculpia uma estátua.

Mais tarde, em Roma, Fábio Quintiliano (35-95) entendia como arte tudo o que fosse baseado num método e numa ordem. Cinco séculos depois, Flávio Magno Cassandro (490-581) dava realce ao aspecto produtivo e ordenado da arte, atribuindo-lhe as funções de ensinar, impressionar e dar prazer.

A arte, cuja definição, de conhecida complexidade, varia com o tempo e em função das diversas culturas humanas, é vulgarmente tida como uma das melhores maneiras do ser humano expressar sentimentos e emoções. Há quem diga que arte é aquilo que é criado deliberadamente pelo homem como uma expressão da habilidade ou da imaginação. Num outro contexto, aceita-se que a arte (seja ela a pintura, a escultura, o desenho, a literatura, a música, a dança, o teatro ou o cinema) é o reflexo da história e da cultura das sociedades. Unanimemente aceite como algo inerente ao ser humano, está longe de ser definida, em rigor e consenso, pela comunidade dos críticos e historiadores de arte, mas ganhou estatuto elitista, assumindo-se como uma atividade criativa decorrente da sensibilidade ou estética (do grego aisthésis: sensibilidade, sensação) do autor. A arte grega do período helenístico (entre os séculos III e II a.C.) atingiu um muito elevado grau de perfeição (beleza) na replicação do modelo, que a história nos transmitiu como expressão de beleza.

Na Idade Média, quando a arte ainda se confundia com a técnica, a Igreja dominava a sociedade europeia, levando os artistas e artesãos, através das suas obras, a incrementarem a religiosidade do povo. Uns e outros estavam unidos por laços de entreajuda e de defesa mútua (segurança de emprego e garantia de inserção no mercado de trabalho) em corporações de ofícios conhecidas por guildas, onde também se praticava ensino essencialmente oficinal.

Não existe uma definição universal de artista. Poderá dizer-se que é uma pessoa que, em qualquer lugar da Terra e em qualquer época, produziu ou produz obras aceites como arte, cujo conceito é, como se disse atrás, subjectivo, controverso e variável no espaço e no tempo. De um modo muito simplificado entende-se por artista tanto os antepassados pré-históricos, que nos deixaram as pinturas e gravuras rupestres, como os virtuosos renascentistas ou os abstracionistas e surrealistas contemporâneos, fazendo uso de uma imensa diversidade de estilos e técnicas modernas e ultramodernas.

Intimamente ligado à arte, o artesão é definido como alguém dotado de um certo grau de habilidade e/ou tecnicidade que, manualmente e com o auxílio de ferramentas, produz, de sua concepção ou na de outrem, objectos utilitários ou decorativos.

No Renascimento dá-se a separação das artes face às técnicas próprias dos ofícios produtivos. Foi neste período áureo da civilização ocidental que surgiram as academias e o Academismo, institucionalizando uma metodologia de ensino sistemático e graduado, inspirada na das universidades, que se manteve, como corrente dominante de assinalável prestígio, até finais do século XIX. Numa postura, dir-se-ia, de carácter científico, os artistas formados nestas academias tinham os clássicos por padrão, respeitando regras estabelecidas de acordo com a tradição. Neles, o interesse pela forma ultrapassava o significado do conteúdo. O pintor ou o escultor academista, vinculado ao culto do virtuosismo técnico e do conceito de beleza de então, era alguém dotado de talento excepcional para copiar e reproduzir, na perfeição, o modelo visado, mas estava privado de liberdade e independência criativas. Assiste-se, então, à recuperação dos valores do Classicismo (opção da Antiguidade Clássica como padrão, por excelência, do sentido estético), bem exemplificados na conhecidíssima escultura helenista, Vénus de Milo (século II a.C.), de Alexandre de Antioquia. Para os academistas, a beleza era aceite como um valor perene e universal. Grandes mestres renascentistas, como Miguel Ângelo, tiveram por padrão as obras deixadas pelos melhores artistas desse período antigo, visando atingir o mesmo grau de perfeição e de beleza.

O ensino nas Academias facultava formação teórica ou intelectual especializada em domínios da anatomia, da geometria, da história e da filosofia. Suplantando em muito a aprendizagem nas guildas medievais, aproximou os artistas dos intelectuais e dos profissionais liberais desse tempo, elevando-lhes o estatuto social muito acima do dos artesãos. Foi nesta fase que o artista passou a ser visto como um “indivíduo possuidor não só de habilidade técnica, mas principalmente de imaginação criativa e de um talento superior inato”.

Como reacção ao virtuosismo, racionalismo, sobriedade e conceito estético do Classicismo, mas sem perda de prestígio do artista, desenvolveu-se, entre finais do século XVIII e finais do XIX, o Romantismo, movimento artístico com grande visibilidade na pintura, na literatura e na música, na Europa ocidental. A prevalência dos valores estéticos (esteticismo) ganhava terreno como elemento-chave na definição de arte. Essencial na emergência deste outro movimento, o esteticismo valorizou a intuição, a sensibilidade e a criatividade individuais do artista, acentuando, com isso, o culto do génio.

Foi a meio do Romantismo que o escritor e crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900) e o designer, seu conterrâneo, William Morris (1834-1896) desenvolveram um movimento estético em defesa do artesanato, conhecido pela expressão inglesa Arts & Crafts (Artes e Ofícios), como alternativa à mecanização e à produção industrial massiva. Este movimento defendia não haver diferença entre artistas e artesãos. Com efeito, são inúmeras as peças catalogadas e conhecidas como verdadeiras obras de arte, saídas de actividades artesanais tão diversas como cerâmica, vidraria, joalharia, prataria, cantaria artística e outras à base de ferro, de bronze ou de estanho. A Arte Nova e a Art Déco, dois estilos que diluíram a separação entre arte, design e artesanato, e os associaram à indústria, valorizaram enormemente os ofícios e os trabalhos manuais, numa época em que a fábrica e a industrialização alastravam na sociedade.

As profundas mudanças sociais e políticas na Europa do século XIX, a abertura de museus de arte, o crescimento de uma classe média com acesso ao mercado e a ascensão de movimentos artísticos defensores dos valores estéticos em detrimento dos temas sociais, o surgimento da crítica de arte na imprensa, acessível a um público cada vez mais numeroso, libertaram os artistas dos padrões tradicionalistas, difusores das virtudes morais colectivas, abrindo portas ao experimentalismo individual.

Grandemente influenciados ou apoiados nas ideias filosóficas a circularem na Europa (Auguste ComteJohn Stuart Mill, Friedrich Nietzsche, Friedrich Engels, Karl Marx, e outros), nos múltiplos e admiráveis progressos alcançados pela ciência (William Kelvin, Alfred Nobel, Charles Darwin, Niels Bohr, Pierre e Marie Curie, Henri Becquerel, Rutherford Hays, Max Planck, Albert Einstein e muitos outros) e nos recursos tecnológicos de então (máquina a vapor, comboio, automóvel, avião, fotografia e cinema), muitos artistas abriram caminho ao Modernismo, um movimento intelectual de rompimento com a tradição e, ao mesmo tempo, de abertura a uma nova relação do homem com o mundo. Dito de outra maneira, o Modernismo não só recusou os padrões antigos, como buscou ideias nos notáveis avanços da ciência e da tecnologia, na Revolução Industrial e nas lutas sociais decorrentes desta realidade.

Foi um período de grandes contradições, assumindo maior relevo na pintura, onde se destacaram movimentos modernistas a que os historiadores e críticos de Arte deram nomes de Realismo, Naturalismo, Impressionismo, Fauvismo, Cubismo, Simbolismo, Expressionismo, Abstraccionismo, Dadaísmo, Surrealismo, entre outros.

Esta pulverização de propostas experimentais ou estilos e o abandono do Academismo aumentaram a dificuldade das definições de arte e de artista, situação que se tem vindo a agravar com a globalização e a cultura de massas, iniciadas a meados do século passado, abrindo terreno a obras de qualidade questionável, circulando no mercado, obras que o cidadão comum não tem conhecimentos para avaliar.

Alcançar o conceito geral de arte foi encontrar o que havia de comum entre produções tão diferentes como um vaso grego antigo, um poema de Virgílio, uma iluminura medieval, uma catedral gótica, um desenho de Da Vinci, os Lusíadas de Camões, um retábulo barroco ou uma tela de Gustav Klimt.

O objeto de arte, em particular uma pintura ou uma escultura, além de uma fonte de admiração, passou a ser uma marca de distinção social, de poder, de riqueza e de prestígio, dando origem ao mecenato e ao coleciconismo. Neste quadro, os artistas desta época, em progressiva ascensão social, procuravam aproximar-se dos intelectuais e dos cientistas, ao mesmo tempo que se iam afastando dos artesãos e artífices.

Nasceu, então, o conceito de “arte pela arte”, com um fim em si mesma, despojada de toda a sua antiga funcionalidade. Assim, a arte não seria o resultado de um projecto predeterminado, mas simplesmente surgia do acto da sua realização, que é, afinal, o que acontece na chamada arte abstracta.

Naturalmente elitistas, as Academias distinguiam “belas-artes” e “artes aplicadas”, na convicção de que determinados tipos de manifestações artísticas eram superiores aos demais, tidos por inferiores. As primeiras, de carácter não utilitário, compreendendo as chamadas artes plásticas (pintura, escultura, desenho, arquitectura), eram tidas por possuírem dignidade e nobreza. As artes aplicadas, dado o facto de serem produzidas por trabalhadores, eram consideradas menores e, como tal, desvalorizadas.

Esta separação não era nova. Já na Antiguidade, se fazia  distinção entre “artes liberais”, fruto de uma atitude mental, tida por superior, e “artes mecânicas”, ligadas aos trabalhos manuais e, portanto, inferiores. Também no Renascimento italiano, Giorgio Vasari (1511-1574) pintor, arquitecto e pensador, definia a atividade artística como fruto de um trabalho reflexivo individual de nível superior. Falava-se, então, de “arte académica”, “grandes artes” ou “artes nobres”, abrangendo desenho, pintura, escultura e arquitectura, sendo as outras, as associadas ao artesanato, classificadas de inferiores.

 

Não é utópico admitir que o desenvolvimento da inteligência artificial virá, no futuro, a produzir robôs capazes de criar obras ditas de arte. Teremos, então, de reformular os conceitos de arte e de artista.

 


(do livro agora editado, “Com Coentros e Conversas à Mistura”, Âncora Editora, 2019)