Aquilino, contador de estórias e repórter de memórias

 

MANUEL RODRIGUES VAZ


Palestra lida no Restaurante O Pote, em Lisboa, aos 29 dias de Outubro de 2021, no âmbito da Tertúlia À Margem


Nascido eu em 1944, numa aldeia, (Beira Valente, freguesia de Leomil), algures nas que Aquilino tão acertadamente denominou de Terras do Demo, em cuja sede de concelho – Moimenta da Beira – ainda não há atualmente nenhuma livraria, era natural que, aos 14 anos, nunca tivesse ouvido sequer falar de Aquilino Ribeiro, apesar de já devorar todos os papéis impressos que me chegavam às mãos.

Foi em 1958 que Aquilino juntou numa nova edição do seu inolvidável Malhadinhas, a novela Mina de Diamantes, curiosamente uma recriação biográfica de um “brasileiro” de torna viagem, natural de Carapito, Moimenta da Beira, Justo Fernandes, que enriquecera no Brasil e que, por acaso, naquele mesmo ano tinha vindo gozar férias na sua aldeia, onde foi logo notado pela ostentação natural de riqueza.

Na sua novela, Justo Fernandes aparecia como o comendador Diamantino Dores, aliás Dêdê, com os seus tiques todos de novo rico e mais alguns que a emigração no Brasil lhe forneceu.

Desenho de Pedro Albuquerque, do livro “Aquilino sem Palavras”

Tinham-mo apontado na feira dos 15, pelo que tentei entrevistá-lo para o quinzenário local, o famigerado Correio Beirão, mas o “brasileiro” estava muito escarmentado por causa do livro do Aquilino e não esteve pelos ajustes. A feira dos 15, que se realizava em Moimenta da Beira de 15 em 15 dias, era naquela altura, uma das mais fortes da região. Aquilino não faltava a nenhuma quando ia passar uns dias a Soutosa, e os notáveis da vila, embora estivessem nos antípodas da sua posição política, competiam em lhe agradar de várias maneiras. Fui testemunha de uma cena que dizia bem da saloiice local: o mestre tinha comprado umas panelas de barro negro e vinha com elas na mão, com a maior das naturalidades, quando por ele passaram tanto o presidente da Câmara Municipal, então o Dr. José de Sousa Machado, como o delegado de Saúde, o dr. José Frutuoso e Melo, ambos fiéis filiados da União Nacional, puseram-se à compita para serem eles a levar as panelas, o que mestre Aquilino recusou, depois de uma cena vastamente caricata, um e outro tentando aliviá-lo cortesmente – porque, diziam, parecia mal – e o escritor a dizer bem alto que não perdia os pergaminhos se continuasse a carregar com elas como um feirante que era.

Deenho de Pedro Albuquerque, do livro “Aquilino sem Palavras”

Este episódio levou-me a encomendar um dos seus livros para a Livraria Bertrand, de Lisboa, sua editora de sempre, tendo recaído a minha escolha no Terras do Demo, a cuja leitura aderi de imediato pelo encanto da sua escrita e pelo que me dizia da minha região onde nasci e vivia.

Em 1960, tive como colega, na Escola do Magistério Primário de Lisboa, um seu afilhado, José Natário, que fará carreira invulgar como professor em Viseu, e cujos pais eram os caseiros das terras ainda hoje adredes à Fundação Aquilino Ribeiro, em Soutosa. Tendo-nos tornado amigos, não só porque tínhamos os mesmos interesses culturais mas também porque éramos conterrâneos, por várias vezes fui passar alguns dias nas férias a Soutosa, que para mim era uma forma de estar perto do grande escritor, pois os pais viviam na mesma tapada, onde é hoje o Museu Rural da Fundação.

Assim, privei muitas vezes com o mestre, que aceitava pacientemente algumas das minhas observações ingénuas, e tive a oportunidade de conhecer em Soutosa uma das figuras que ele tão bem retratou no seu livro Aldeia, terra, gente e bichos, mestre Zé Aveleira, pedreiro de grande prestígio na região, que, antes de mais, era um contador de estórias de estalo. Cada vez que ia a Soutosa, era certo passar as primeiras tardes na sua casa, no largo da igreja, tardes de encanto e magia, que agora recordo com imensa saudade.

Continuando a ler outras obras de Aquilino, cedo me dei conta que muitas das estórias de mestre Zé Aveleira se cruzavam com os enredos de várias das suas obras, especialmente O Malhadinhas, Volfrâmio, Andam Faunos pelos Bosques e Quando os lobos uivam.

Num dos encontros com Zé Aveleira, dou-lhe conta desta observação e depressa me satisfaz a curiosidade. Sim, mestre Aquilino Ribeiro ouvia muitas vezes as suas histórias, como ouvia a doutros contadores mais velhos, e era sabido que se servia delas para as contar de outra maneira nos seus livros, o que fazia orgulho a eles todos. As tramas do livro Malhadinhas, como do Volfrâmio, foram inspiradas nas histórias que o velho Natário, avô do meu amigo José Natário, tinha contado a Aquilino e que este imortalizaria em obras imorredoiras. Aliás, o velho Natário aparece mesmo com a sua alcunha como co-protagonista do Volfrâmio – era o velho Calhorras, figura ímpar que o mestre soube pintar primorosamente.

Refira-se a propósito que mestre Aquilino ouvia igualmente amiúde os irmãos José e João Bernardo dos Santos, naturais de Moimenta da Beira, o primeiro mais conhecido por Zé Sapateiro, devido à sua profissão, que vivia em Soutosa, e o segundo vivia em Peva, cujo filho Jorge foi um dos últimos presidentes da Junta de Freguesia de Peva. Os dois ficaram conhecidos nos anos 40 por serem, antes de mais, exímios narradores de histórias, tradição que o escritor alcandorou a grandes voos.

Analisando a obra de Aquilino, constituída, além dos livros já referidos, por obras de cariz autobiográfico assumido como É a Guerra: diário, Cinco Réis de Gente e Um Escritor Confessa-se, não esquecendo O homem que matou o Diabo, ao mesmo tempo uma homenagem a D. Quixote e a reportagem das suas aventuras depois da sua fuga da prisão, e A Casa Grande de Romarigães, uma monografia especial da família da sua segunda esposa, logicamente podemos verificar que a maior parte das suas obras, se não a totalidade, parte de episódios reais, mesmo o seu inesquecível Jardim das Tormentas, inspirado numa história da tradição ibérica.

O que nos leva a afirmar ousadamente: Aquilino Ribeiro não pode ser considerado como um ficcionista, mas foi, essencialmente, um excelente contador de estórias e um melhor repórter de memórias. Sim, não era um ficcionista, mas como artista que cinzelou e burilou o português, elevando a nossa Língua a nível alto de qualidade e criatividade, é inimitável, enfileirando obrigatoriamente na galeria dos grandes mestres da Língua Portuguesa, sem favor a par dos enormes Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, e por isso merece indubitavelmente o nosso reconhecimento. E como prosador emérito que universalizou a nossa região é único, embora não sejam para esquecer o contributo de Afonso Ribeiro, escritor moimentense que deu início ao neorrealismo na Literatura em Portugal, com o seu livro Ilusão na Morte (1938), e o diplomata António de Sèves, com um livro único como Leomil, a enfileirar com o melhor de Aquilino. Refira-se a propósito que este António de Sèves era irmão da que seria o primeiro amor de Aquilino, com quem não viria a casar porque os irmãos dela a isso se opuseram devido a ele ser filho de um padre e, ainda por cima, com não muitos haveres. Aquilino nunca perdoará a afronta e uma maneira de se vingar foi ter entrado numa polémica denunciando que a Serra de Leomil não deveria ter este nome, mas sim deveria continuar a chamar-se da Nave, levando-o inclusivamente a publicar um livro com o título de O Homem da Nave (Serranos, Caçadores e Fauna vária), livro de crónicas da serra, onde Aquilino Ribeiro descreve o camponês serrano ardiloso, orgulhoso e batalhador, que segue os ritmos do ano e da terra, vivendo da caça (por vezes furtiva), do campo, dos pequenos episódios do dia a dia. Lê-lo é ser transportado para aqueles brejos e montes, para aquelas estações inclementes, para a sensualidade da serra a pulsar de vida em nosso redor e para os dramas e alegrias das pequenas aldeias do interior de Portugal.

Já agora, também vem a talhe de foice conhecer a razão por que a serra da Nave viria a ser conhecida efectivamente como serra de Leomil, a nível oficial. Com efeito, o primeiro visconde de Balsemão, Luís Pinto de Sousa Coutinho, promotor do primeiro levantamento topográfico de Portugal – como Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Luís Pinto de Sousa Coutinho, patrocinou a criação de uma “comissão dos trabalhos geodésicos”, cuja missão era estabelecer uma rede para a Triangulação Geral do Reino – era natural de Leomil, onde nasceu em 27 de novembro de 1735, pelo que não resistiu a rebatizá-la, homenageando a sua terra natal.

Segundo Luís Miguel Alves de Bessa Moreira, na sua tese Cartografia, Geografia e Poder: o processo de construção da imagem cartográfica de Portugal, na segunda metade do século XVIII, na segunda metade do século XVIII, apresentada em 2012 na Universidade do Minho, «Sobre a acção de Sousa Coutinho, podemos dizer que foi o homem certo no lugar certo para impulsionar este levantamento cartográfico, já que era o embaixador português em Londres, no ano em que se iniciaram os levantamentos geodésicos da Grã-Bretanha, com o intuito de construir uma carta topográfica, encontrando-se, assim, familiarizado com as vantagens para a Administração em patrocinar este tipo de iniciativa.»

Ruinas do Solar dos Viscondes de Balsemão, em Leomil, Moimenta da Beira

Por tudo isto, repito: «Aquilino Ribeiro não pode ser considerado como um ficcionista, mas foi, essencialmente, um excelente contador de estórias e um melhor repórter de memórias. Sim, não era um ficcionista, mas como artista que cinzelou e burilou o português, elevando a nossa Língua a nível alto de qualidade e criatividade, é inimitável, enfileirando obrigatoriamente na galeria dos grandes mestres da Língua Portuguesa, sem favor a par dos enormes Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, e por isso merece indubitavelmente o nosso reconhecimento.»