A.M. GALOPIM DE CARVALHO
Introdução
Toda a nossa vida é uma aprendizagem. Aprendemos cedo a encontrar o mamilo da mãe e, meses maia tarde, a levar a colher à boca. Aprendemos a andar, a ler, a escrever e a recitar a tabuada. Aprendemos a crescer, a viver em sociedade e, até, a envelhecer.
Desde que nasce, a criança é uma “máquina de aprender”. Como nos animais superiores,
brincar é, para esta etapa inicial do ser humano, a via natural de aprendizagem,
observando e experimentando o mundo à sua volta. Aprende ao longo da vida, quer
através do que estuda e investiga quer através do que lhe seja ensinado.
Gostar de saber, por vezes, compulsivamente ou quase, é uma aptidão e uma propensão
que toca todo aquele ou aquela que teve quem lhe as despertasse: os pais, em casa, a
educadora, no jardim de infância, o professor ou a professora, na escola ou alguém,
habilitado para o fazer.
“O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Trata-se aqui de um
dito que, na nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de que só o
conhecimento nos defende dos opressores. Quer isto também dizer que, quanto mais
inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. Sempre foi
assim. Está escrito e reescrito na História e sempre assim será
É esta realidade que os professores, não obstante as difíceis condições em que
continuam a trabalhar, devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos mais
desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas marcadas
pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades desenvolvimentistas. O
Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e conquistam o
direito à cidadania, e os outros, os do abandono escolar. E nestes outros estão os do
trabalho precário e a grande maioria dos que caem na marginalidade.
São muitas, mas muitas as vezes que me levanto com a cabeça a fervilhar de ideias e
memórias que vão dos temas em que fui profissional ao muito que a vida e a minha
curiosidade, sobre tudo e mais alguma coisa, me proporcionaram. O muito que escrevi,
profissionalmente, como investigador e professor, em dissertações de doutoramento,
monografias, relatórios, artigos científicos, comunicações a congressos e outras reuniões,
totalizaram milhares de páginas escritas à mão, tendo sempre quem as dactilografasse.
Escrever à mão permitia-me uma velocidade de escrita em que a caneta a deslizar no
papel quase conseguia acompanhar o pensamento. Centenas e centenas de horas a
escrever, tornou-me fácil e, muitas vezes, agradável esse tipo de comunicação. Direi,
mesmo que me viciou no acto de escrever. Depois de afastado da chamada “vida activa”
(a partir de 2003), privado desse apoio dactilográfico, tive de aprender a usar computador,
o que me reduziu consideravelmente a dita velocidade de escrever, mas tornou-me
independente do citado apoio, permitindo-me a imediata revisão dos textos, corrigindo,
alterando ou acrescentando.
Quando, aos sessenta e poucos anos experimentei passar a escrito as minhas memórias,
reflexões e alguns esboços de ficção, beneficiei dessa experiência e era com relativa
fluidez que as ideias e as imagens passavam do cérebro ao papel. Devo dizer que a
escola e o liceu não me deram grande preparação no uso da língua. Fui aluno sofrível
nesta disciplina, sempre coxo a transitar de ano, a passar, como se dizia, “à tabela”. Sei
hoje, porque a profissão me ensinou, que na maior parte das vezes, o professor tem aqui
parte da responsabilidade. Foi só na universidade, já bem adulto (a partir dos 27 anos de
idade) que ultrapassei esta deficiência. Honra seja feita aos meus dois professores, o
geólogo Carlos Teixeira e o geógrafo Orlando Ribeiro, que, para além do muito saber
profissional que me transmitiram, me ensinaram a escrever em bom português. O
Professor Carlos Teixeira (1910-1982), grande referência no engrandecimento e
valorização da Geologia em Portugal, era senhor de uma linguagem escrita sem
intenções ou preocupações de estilo literário, mas impecavelmente correcta no uso das
palavras certas e das suas relações de concordância, de subordinação e ordem. O
Professor Orlando Ribeiro (1917-1997), renovador da Geografia em Portugal foi um
humanista reconhecido a nível nacional e internacional. Senhor de muitos outros saberes
em diversas áreas, como as da Geologia, da História, da Antropologia e da Etnografia,
expunha-os numa linguagem falada e escrita de invulgar correcção, não raras vezes
poética.
O meu propósito, no presente, por diversas vezes declarado, é, por assim dizer e à
semelhança do professor, escrever uma “lição”, em bom português, numa linguagem
acessível ao cidadão comum, sem perda de rigor científico e, sempre que possível,
agradável de ler. E na medida em que, na realidade, se trata de lições, têm todo o
cabimento os parênteses por vezes intercalados nos textos e as notas apensas a muitos
deles. O conjunto de “lições” que reuni neste novo livro, reflectem a curiosidade que
sempre tive por uma grande panóplia de assuntos. Profissionalmente, funcionei e
funciono como especialista que vou deixando de ser, na medida em que o passar dos
anos afastado do meio académico, me vai desactualizando. Como divulgador que me
assumo, direi que sou um generalista curioso de muitas “artes”.
Em cumprimento do que entendo ser um dever cívico de todo aquele que teve o privilégio
de aceder a níveis superiores do conhecimento, tenho procurado (através de livros e,
sobretudo, através do Facebook e de Blogues em que, desde 2015, diariamente,
participo) aproximar-me dos meus leitores, qualquer que seja a sua posição no tecido
sociocultural, facultando-lhes informação rigorosa em termos acessíveis e de leitura
agradável, sobre temas que não tiveram oportunidade de adquirir, aprofundar os que
possuem e relembrar os que o tempo apagou ou distorceu. E faço-o, numa relação de
afecto. E sei que assim é porque, os muitos retornos que, constantemente, me chegam, o
testemunham.
Escrever tem sido uma acção complementar das muitas palestras, lições ou, melhor
dizendo, conversas que sempre fiz e continuo a fazer nas nossas escolas, dos jardins de
infância às universidades, em Museus, Centros de Ciência, Bibliotecas Municipais e
outras instituições, por todo o País.
Numa linguagem figurada, direi que, ao tornar público o que escrevo, seja divulgação
científica, crónica, ficção, ensaio ou opinião, estou a abrir, a todos, a “biblioteca” onde
guardo, praticamente intacto e bem catalogado o que estudei e tudo o que a experiência e
a vida me ensinaram. Neste tudo, gosto de lembrar os meus difíceis tempos de escola e
as minhas sempre interessadamente vividas incursões como aprendiz de muitas artes
numa sociedade ainda muito pouco industrializada e marcadamente artesanal, que foi a
da minha infância e primeira adolescência, na cidade de Évora. Neste tudo cabem, ainda,
já mais crescidinho, as minhas incursões no mundo rural alentejano, sempre curioso na
observação e, muitas vezes, experimentação nas múltiplas fainas e onde, no convívio
como os camponeses fui, pela primeira vez, confrontado com o drama das desigualdades
sociais.
Foi nesta linha que, respondendo ao desafio dos meus leitores no Facebook, dei à
estampa, em 2023, “Ao Romper da Aurora”, uma primeira parte do conjunto
seleccionado dos posts ali publicados ao longo dos últimos nove anos. “Aprender a
gostar de Saber” é a segunda parte dessa selecção. Diga-se que o título escolhido para
este último livro, reflecte, também, o que foi a minha prática como professor, procurando e
conseguindo levar os alunos a encontrarem beleza nas matérias em estudo. Reflecte
igualmente a resposta que me pareceu dever dar aos retornos de muitos dos meus mais
de 37 000 leitores no Facebook, que, cada um à sua maneira, me têm feito saber que o
convívio diário, mantido comigo, através da leitura, têm aprendido a gostar de conhecer
matérias que desconheciam, que conheciam mal e, até, aquelas que achavam
desinteressantes ou, mesmo, que detestavam. Algo no género «eu detestava geologia,
mas, com os seus textos, aprendi a gostar de tudo o que esta disciplina nos ensina».
A.M. Galopim de Carvalho