Ao sol o gato

 

 

 

 

 

 

JOSÉ MARTO


José Ribeiro Marto (1960). É professor de português – língua estrangeira. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas e é pós-graduado em Escrita Literária e em Estudos Portugueses Multidisciplinares. Escreve poesia, contos e crónicas.


Paisagem

 

No perto os pássaros a bicicleta um comboio

As horas no longe e um cão triste de passar

Nas mãos doze esferas de perder

No vento doze esferas de encontrar

 

No longe eram casas de viver e vinhas

De bicicleta eram casas de passar

Nas mãos doze esferas de perder

Nos bolsos doze esferas de contar

 

Os cães eram de festas ou eram de ladrar

As rodas da bicicleta eram rodas de voar

Nas mãos doze esferas de perder

No dia doze esferas de encontrar

 

Os poços eram do longe

Fundos ecos de gritar

A chuva caía mourinha

Vinda atirada do mar

 

As esferas eram de perder ou ganhar

Nos bolsos eram esferas de guardar

À noite sonhavam-se bosques e raposas

De dia eram os pombos de contar

 

De manhã passavam os ciganos

Sempre tristes de passar


A classe Média

 

A classe média sai de casa toda necessária

Quando regressa já vem empresária

 

A classe média tão bem estacionada

Chega ao emprego já engarrafada

 

O meu poema tão de rimas pobres

Todas abastadas andam aos cobres

 

A classe média tão depenada

Vai ao cabeleireiro já vem penteada

 

A classe média está sempre dourada

Vai à esplanada já está bronzeada

 

O meu poema tão de rimas pobres

Todas fanadas andam aos cobres

 

A classe média tão abastada

Vai aos saldos já vem salteada

 

A classe média tão programada

Vai aos mapas já está viajada

 

O meu poema tão de rimas pobres

Todas abastadas andam aos cobres

 

A classe média vai ao ginásio toda a semana

Já conta o peso grama por grama

 

A classe média cheia de desgostos

Toda cambiada discute os impostos

 

A classe média tem grandes destinos

Todos o quais ligados aos intestinos

Todos os quais ligados aos intestinos

É coisa muito pouca ligada à boca

 

É sempre baixinha e merdiazinha

Baixa -baixa- abaixa, coitadinha

Vê-se na alta que é igualzinha!


Misericórdia

 

Misericórdia para quem faz as perguntas

Para poder dar as respostas

 

Misericórdia para quem dá as respostas

Mas já sabe as perguntas

 

Misericórdia para quem pergunta por perguntar

E para quem responde por responder

 

Misericórdia para quem está sempre a responder

Porque acha que estão sempre a perguntar

 

Misericórdia para quem responde para acrescentar um ponto

E para quem perguntou dando-lhe esse desconto

 

Misericórdia para quem atira a verdes

E só colhe as maduras

 

Misericórdia para quem atira às maduras

E por falta de pontaria só colhe as verdes

 

Misericórdia para quem atira a verdes

E colhe maduras e verdes e peras

E assim sucessivamente

 

Misericórdia para quem não atirou a nada

Mas colheu verdes e maduras etecetramente

 

A verdes e maduras muita fartura

Na árvore do conhecimento da Terra!


Ao sol o gato fez tantas contas insondáveis

 

Ao sol o gato fez tantas contas insondáveis,

Soube do raio do avião, viu a pluma do carro,

Ouviu a lagartixa perto da água natural,

Sem mistério moveu o pêlo numa orelha de luz.

 

Fez parte do vaso da orquídea, da brisa,

Reuniu a tarde.

Leu-me a lagartixa amorosa na flor rebelde,

Deu-me o tempo na unidade da minha tinta,

No papel, no vaso, no passeio da lagartixa.

 

São justos, a tinta e o brio dos olhos do gato.

Justo também se corta o coração na viva tarde.

E a natureza se junta ao tempo porque escrevo.

 

O gato levantou-se, olhou ainda o vaso da orquídea

Com a lagartixa migradora na corrida imparável.

Senti a tarde com o ouro de uma côdea de luz,

Protegi os olhos com precisão.


A senhora Ling deu-me uma laranja

Por nada

Como se houvesse um desastre

Tão longe no mundo

E a laranja fosse

Uma mão de vida salva

 

Fico a descascá-la no jardim

Com os pardais ao lado

Que me estudam os atilhos

dos sapatos

 

Um homem de jornal na cabeça

Feito de avião de sol e graça

Festeja os golos do clube

Como um especialista de vitórias

Recita-me tempos   marcas

Defesas   glórias   remates

 

Dou-lhe metade da laranja

O homem bate-me no ombro

Deseja-me muita saúde

Como se o meu gesto fosse

Melhores dias

Chegasse tarde!


À passagem

 

Um melro trina algures no lodão

Ainda cheio de sol debica o ramo

Na calçada rente ao alcatrão

Quatro flores amarelas subitamente

Que nome terão?

 

As flores soçobram pétala a pétala

À passagem de dono e cão

Levados na solidão de passeio

 

O cão mija-as abundantemente

E defeca


Chamam as crianças na sua língua de chamar

 

Passeiam à beira dos muros que ainda escondem arame

Que ainda são água e fronteira no silêncio anónimo da cidade

Sentam-se no banco do jardim para que as crianças corram

 

As crianças festejam a hora da tarde com os braços de voo aberto

Como os pardais que procuram as árvores nos jardins das casas

 

Vozes chamam as crianças na sua língua de chamar

No descaso com o tempo que passa no vento da tarde

Os muros das casas onde explodem flores debaixo de arames

São eternos muros de dividir ou limiar de porta proibido

 

Os cães ladram ao anoitecer queixas lentas

No mundo doméstico feito de bondade fria

Não se ouvem nem festa nem alarido de surpresa

 

As crianças brincam e descascam tangerinas

Prometem vida ao fresco e à alegria da tarde

Comprometem os olhos com o voar dos pássaros

Que procuram a tipuana num atropelo de asas


De repente

 

Escrevo a tarde sem lugar

Apenas esta luz límpida

 

O voo do inseto limpa a flor

Amarela e branca

– pura esteva

 

Dedilha-a com a franqueza

Do bicho humilde

Passageiro ou hóspede?


Os turistas de Março

 

Os turistas aparecem nas ruas tristes da cidade

Como cinco ou seis pardais de pouco voo

Olham a linha imperecível do horizonte

Seguem obedientes descrições dos telemóveis

 

Vão ao encontro das noites a passo certo

Levam na pressa um frescor de sol sem sol

Aqueceram-se nos bancos dos jardins

Como se estivessem à lareira

Ou ligados a aquecimento dos hotéis

 

Passam num grasnar bovino incomum

Que regarão a espuma nas esplanadas

 

Num olhar e língua de repasto

Cantam vários ouropéis

Festejam a grito o plástico

 

Do turístico dizem que é turístico

Como se a natureza das coisas vistas

Fosse inevitavelmente o seu lixo


Prémios

 

O menino come as batatas fritas

– já as chorou uma a uma-

Demora-se para que durem

Sejam sal cantem no dente

 

As batatas fritas do menino

São o azul e a prata

Duram-lhe nos dedos

Estalam-lhe nos dentes

 

Há aquele som na prata

Nos dedos

Nos dentes

 

Tomo o café

É triste a regra imorredoura da tarde

Aos olhos de quem passa

Cruzados nos meus

 

A mãe sorri a cada picada do telemóvel

As unhas são azuis são a prata

As pulseiras chilreiam apressadas

Sorri como um rato desorientado

 

Num sobressalto perfeito de partida

Na mesa tudo se arredonda num salto

Um vício bastante

Une-a à regra imorredoura da cidade

Como numa exata e nua perícia