Anunciar a mulher antiquíssima de mamas de marfim

 

LUÍS DE BARREIROS TAVARES
(Org.)


Seis poemas inéditos de Manoel Tavares Rodrigues-Leal
De um caderno sem título, de 1971


Acontecimento

 

acontece no cimento da página

antes na mente a escrita amanhece a ciência

de tecer ao nível da memória movediça

as teclas de ternura que da boca brotam

da extrema e exacta manhã manam o rosto curvado

então irmanava-se a infância intacta ao interior interdito da memória

à ausência insone (substância do poema)

Lx. 9-3-71 […] Parede – 8-1-72

 

*

 

de ontem as quietas águas

o limite do horizonte unia-se

à curva dos olhos aquele aquário de luz

[Lx. 1971]

 

*

 

as vagas (de) palavras vogam

ao longo da linha do telefone

o café onde ousar o linho das unhas

as palavras vergam o lixo do exílio

pairam no ar as leves velas a fécula da felicidade

as vagas (de) palavras vogam

à boca afluindo o goivo das vogais

Lx. 18-3-71

 

M. T. R.-Leal – fofografia em alto contraste por LBTavares

 

Invocação do desejo

 

é fogo que sufoco

sôfrego fogo foco

de corpos no corpo

no corpo crepita

funesto fogo

que o desejo decifra

Coimbra – 29-10-71

 

 

habita-se a intacta gesticulação das giestas:

sua ardente articulação aos testículos (ao tacto), à velocidade

da luz do inverno inventado.

(como aludir à mulher antiquíssima de seios de marfim: escutá-la?).

assim abro uma fria baía nos lábios (crepúsculo corpúsculo).

menciona-se (na memória árida) (c)idade. fluir

 

Lx. 30-12-71 […] Parede – 9-1-72
– [1ª versão – o fim do poema não tem ponto final]

 

*

 

há a gesticulação das giestas nas manhãs inanimadas:

sua ardente articulação aos testículos; à velocidade da luz do inverno:

(anunciar a mulher antiquíssima de mamas de marfim). assim abrir

 

uma fria baía nos lábios eloquentes: crepúsculo corpúsculo.

aguardando o segundo silêncio as quentes palavras erva nua (c)idade

Lx. 30-12-71 […] Parede – 9-1-72
– [2ª versão – o fim do poema não tem ponto final]