Antropologia da esperança ativa

 

BENTO DOMINGUES, O.P.


O ser humano é estruturalmente desejo.
A antropologia, antes de o tentar explicar,
deve saber reconhecê-lo.

1

«De uma descendência de animais, hoje desaparecidos, na qual se incluíam geleias marinhas, vermes rastejantes, peixes viscosos, mamíferos peludos, este neto de peixe, este sobrinho-neto de lesma, tem direito a um certo orgulho de alguém bem sucedido. De uma certa descendência animal, que em nada parecia votada a um tal destino, saiu o animal extravagante que viria a inventar o cálculo integral e a sonhar com a justiça»[i].

A este delicioso texto do biólogo Jean Rostand (1877-1977) junto outro mais recente – situado em plena crise provocada pelo covid-19 – e um pouco menos eufórico de Arlindo Oliveira, Professor do IST:

«A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies. É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos outros animais e dos outros organismos. É essa capacidade que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização, mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa. Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais, continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais dramático, como espécie. Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um arsenal de capacidade inigualável, que permitirá combater qualquer ameaça desta natureza. O maior inimigo da espécie humana não são os vírus, as bactérias ou qualquer outro animal. O nosso maior inimigo somos nós mesmos porque, pela primeira vez, uma espécie tem a capacidade de se autodestruir. Esse é o maior risco para a espécie humana, aquele contra o qual devemos estar precavidos e atentos»[ii].

A morte dos indivíduos não atinge a espécie humana que também não tem um prazo eterno de garantia. A ciência e a tecnologia ainda não conseguiram extinguir a benéfica ilusão do desejo de viver, como diria Freud. O ser humano é estruturalmente desejo. A antropologia, antes de o tentar explicar, deve saber reconhecê-lo.

Devemos a I. Kant uma formulação admirável sobre a dignidade da nossa condição: o ser humano não tem preço, tem valor. Não é um meio para algo de mais valioso a que deva ser sacrificado.

As suas famosas perguntas: que posso eu conhecer, que devo eu fazer, que me é permitido esperar, estão todas condensadas nesta – o que é o homem? Eu prefiro perguntar o que é o ser humano?

Para ele, a resposta pertence à antropologia. O filósofo judeu, Martin Buber, fez-lhe uma observação pertinente. Kant tem, nos seus escritos, um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem. Não abordou, no entanto, nenhum dos problemas que a antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua existência como aquele que sabe que vai morrer, a sua atitude em todos os encontros, ordinários e extraordinários, com o mistério.

Martin Heidegger, o filósofo do assombro perante o acto puro de existir e que sabia unir pensamento e poesia, atribui a incongruência de Kant ao próprio carácter indeterminado da sua pergunta, “O que é o homem?”… Quer dizer, a pergunta acerca do que ele pode conhecer implica uma limitação, pois supõe também o que ele não pode conhecer, a finitude humana, que é a própria essência da nossa existência. Por isso, em lugar da antropologia surgiu uma ontologia fundamental.

Seja como for, a antropologia filosófica não quer conhecer o ser humano como um pedaço da natureza nem pode contentar-se em fazer dele apenas uma questão metafísica: deve estudar o ser humano na sua complexa integridade.

Se o fixarmos como um objecto, ficamos apenas com uma coisa da natureza, não com uma subjectividade irredutível. Quem o investiga não pode fazer de conta que não está implicado nessa investigação.

O romancista Georges Bernanos advertiu: «Se os vossos actos, os vossos sentimentos, mesmo as vossas ideias, não são mais do que simples deslocamentos moleculares, um trabalho químico e mecânico comparável ao da digestão, em nome de quem, em nome de quê, quereis que eu vos respeite?».

2

Nesta crise não faltou quem afirmasse que está a ser um erro perder tempo, espaço, dinheiro com a assistência aos idosos. É simplesmente antieconómico. Devia-se deixar que o vírus covid-19 fizesse o seu trabalho de eliminar os inúteis e reservar os cuidados com os humanos produtivos ou que possam vir a ser produtivos. Não fazer despesas com os funerais: a vala comum permite uma igualdade que lhes foi negada enquanto viveram.

O desejo infinito de viver é uma megalomania alimentada pela religião sob a capa da esperança, quando sabemos que a morte não pede nada, não fala. É o ponto final na comunicação.

O Papa Francisco tem outra ideia:

«O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus saiu para nós, ressuscitou para nós, para trazer vida onde havia morte, para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima. Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso, não cedamos à resignação, não coloquemos uma pedra sobre a esperança. Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel. Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida. Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido»[iii].

3

Quando se pergunta, o que será a nossa situação ao terminar esta pandemia, o Papa responde que depende da opção que tomarmos: «ou a nossa aposta será pela vida, pela ressurreição dos povos, ou será pelo deus dinheiro: voltar à sepultura da fome, da escravidão, das guerras, das fábricas de armas, das crianças sem escolas… aqui está a sepultura!»[iv].

A reconstrução da vida das pessoas, dos países, dos continentes, é incompatível com a nostalgia de um estilo de vida que alimentou desigualdades infames entre pessoas, grupos, países e continentes. Estivemos e estamos no mesmo barco, durante muitos meses, mas não da mesma maneira. As desigualdades abissais entre ricos e pobres não foram apagadas. É tempo de começar algo de novo, não perder as experiências admiráveis dos que apostaram em não deixar ninguém para trás.

Contra o desânimo, esperança activa. A mensagem Urbi et Orbi, do dia de Páscoa, tem emprego para todos.


[i] Este fragmento serviu de epígrafe a um meu antigo depoimento sobre ressurreição: a minha alma não sou eu.

[ii] Público (06. 04. 2020)

[iii] Homilia do Papa na Vigília Pascal

[iv] Homilia do Papa na Missa de 13. 04. 2020


in Público 19.04.2020

https://www.publico.pt/2020/04/19/sociedade/opiniao/antropologia-esperanca-activa-1912757