António Salvado e a apologia de Apolo

 

 

 

 

 

 

PAULO JORGE BRITO E ABREU


APOSTOLADO E «POST SCRIPTUM»: ANTÓNIO SALVADO E A APOLOGIA DE APOLO

«O inconsciente é o discurso do Outro.»
Jacques Lacan

 

Numa Graça, e bom agouro, aqui temos, no fundo, o Ágape, agora: seja benéfico o banquete, e seja fértil a adiafa. Seja selecto o simpósio, seja edível o edule. Seja firme, seja forte e facundo o Messias, dessarte, em vida minha: essa a minha esperança e a minha aspiração. Me surdiu, António Salvado ( 20/ 02/ 1936 – 05/ 03/ 2023 ), quando eu era, solerte, em Outono da vida minha; sendo eu afecto e afeito à sua Poesia, eu nela diviso uma preste Teologia. Quando, em minha lavra, assinalava a Teurgia, eu queria, com isso, aduzir e dizer: um labor ou trabalho de origem divina. E quando, em livro meu, eu fazia o tentâmen da Taumaturgia, eu queria, com isso, mencionar e libar: miraculosamente o Génio miracula. Génio, Salvado, e assistido por génios. Depois de completar os 17 lustros alumbrados, começou, o António, por a Alegria de alaúde, evoluiu, depós, para o dolente adolescente – e resta-lhe, agora, a Graça do Graal. Só assim se compreende que, em «A Plana Luz do Dia», se consorcie, o Autor, com a plena luz do dia. E só, desta sorte, se entende: cantar este himeneu é «vestir», em deusa Vesta, «o pensamento de jardins». E daí, na sua veste, o meu vestibular. «Para mim não há diferença entre uma biblioteca e um jardim», assevera, selecto, o bem-querente Cardeal José Tolentino Mendonça ( Machico, Madeira, 15/ 12/ 1965 ). Pois no âmago, no imo, no «Interior à Luz»: se é fruteira pois a fronde, e é frutífera Efrata, que luza a lis agora, que luza, para sempre, o bíblico Génesis ( Gn. 28: 19 e Gn. 35: 6 ). É força, aqui, é força dizê-lo: de cada vez que Salvado escreve um poema, é nativo o natal e a natura, nutrice, um mundo nasce, deveras, de novo. Sendo, aqui, a consciência, uma ciência das Almas, sendo pois, a «con-naissance», o nascimento em conjunto. E daí, no racimo, e daí Renascimento. Se muitos são chamados, e poucos, os escolhidos, é óbvio que António foi vocado, convocado, pra batalhar, preste e pronto, na Vinha do Senhor. Se ele é, com justeza, um Sacerdote da Poesia, é dele, desta sorte, a voz e a vez: «É tão grácil a praia – tantos mares / que a beijam em contínua calidez / e em surpresas vernais inesperadas. // E o que sentimos nunca se desfaz / quando nas rochas ao desejo presos / vemos o dia em noite disfarçado.» E sublinhemos, no lance: nós «Vemos o dia em noite disfarçado.» E eis o «Verbo Escuro» do Teixeira de Pascoaes ( 02/ 11/ 1877 – 14/ 12/ 1952 ), a «Noite Escura» e pura do S. João da Cruz ( 1542 – 14/ 12/ 1591 ). Eis a Noite nitente em que a Saudade, e a bruma, são mais pesados, e pensados, do que o pindárico e a pedra. A propósito, aqui, da cultura espanhola, remembremos o prémio salamanquense: a 14 de Outubro de 2021, António Salvado recebeu, em a Lira cristiana, a Medalha Fray Luis de Léon de Poesia Iberoamericana. Fray Luis ( 1527 ou 1528 – 23/ 08/ 1591 ), o Poeta, linguista, escritor e Professor universitário, Frei Luis o conclave, e o coevo, do Luís de Camões ( 1524 – 1580 ). Se o maior sonetista português cativou, decerto, António Salvado, com os sonetos, dessarte, se faz uma sonata. Dizer isto é, pois, alembrar: se em Primavera da vida o Salvado aprendeu com Fernando Lopes Graça ( 17/ 12/ 1906 – 27/ 11/ 1994 ), a Música é ciência do metro, da medida e da modulação, e na Harmonia das esferas canta, o canoro, em mistério gracioso. Que entoar, ou cantar, é rezar duas vezes – e assim assevera o Bispo de Hipona ( 13/ 11/ 354 – 28/ 08/ 430 ). E daí a purgação, e daí a Catarse que Aristóteles ( 384 – 322 a. C. ) divisava nas grandes obras de Arte. E eis, aqui, o Teatro de improviso, e eis o Psicodrama de Jacob Levy Moreno ( 18/ 05/ 1889 – 14/ 05/ 1974 ), ele vai ao encontro das psicoses e da histeria assinaladas em complexo. «Mas tudo dispuseste com medida, número e peso»: assim fala, sem falácia, a Sabedoria, de Salomão, 11: 20. A Música, a Poesia, por isso, são tributárias, secretárias – da ciência Matemática. Pois segundo o Platão ( 427? – 347 a. C. ), Deus geometriza – e o Arconte é Arcano, Arquitecto é o génio do Mosteiro da Batalha. Ou melhor: pede a Música a Musa e o músico é Museu. Sendo o Museu, para os Antigos, o Templo das Musas. Filhas de Júpiter, e Mnemósine, as nove Musas liberam, as nove Musas presidem às Artes Liberais. Pois louvando, nesta cita, o Voltaire ( 21/ 11/ 1694 – 30/ 05/ 1778 ), «a pintura é poesia sem palavras», e eis o plectro, em Apolo, do progredimento. Versemos, agora, os tópicos e tropos da tipologia. E «Tropos», dessarte, é o título de um «liber», que Salvado deu a lume em 1969. Magiquemos, por isso, e imaginemos: em língua da láurea novilatina, o «tropu» deu origem à palavra «tropare», «tropare», por seu turno, fez «trovar», e «trovar» o «trovador». Que é, desta feita, o «turvador», aquele que perturba a ordem estabelecida. Mas que é, no gaulês, aquele que «trouve» ou encontra. Que alimenta, complementa ou suplementa, a palavra correcta para a Lira entreaberta. Ora «tropo», afinal, é carme, é conotação, é linguagem usada em sentido figurado. Como sejam, «verbi gratia», as metáforas, metonímias, as sinédoques, os símbolos, e as lautas litotes. A plástica do Verbo, a alegria fantástica das alegorias. E, na fábula, e, na Palavra, a parabólica fala. Ou melhor: se é cousa, de feito, o sentido literal, o sentido figurado é deveras letradura, o senso figurado é Espírito e Pneuma. Quero eu dizer: na «Flor Álea», ou no símbolo, das prestes alegorias, eis a Rosa, Acidália, no centro da Cruz. Ou tendo como base o que atrás arrazoámos: consagrada à deusa Flora, entre os avitos Romanos, era, deveras, a Florália, e daí, de feito, feracidade, e daí, sem jugo, os Jogos Florais. E daí, no florecer, o 1.º de Maio, e daí, em Portugal, a Festa das Maias. E se Apolo, aqui, é nosso pólo, se bem nós somos hermeneuta, existe ou insiste, na Poesia de Salvado, um sacral, por isso, um liame sagrado: o consórcio, deliberado, de Vénus com Maria, e de Cristo com o Pã. Pois «Fala, fala, a terra fala / à espera de ser ‘scutada.», e o andamento é dialogal, é «O dueto», afinal, «entre a espiga e a papoula!» E se o agro, aqui, é meu agrado, pondere, por isso, pondere o ledor: se o Verbo, na vis, é da veiga e é da varga, a venusta é qual vieira, a Vénus Vinália é Vénus veneno. E se o que está fora é aquilo que dentro está, a Poesia, entanto, é Psicologia, e a fala da terra, ela é, de feito, a fala da Alma. Ou melhor: se o Astro é qual o estro, o falante é pois aflante. E o culto é do oculto, e a amência, de Amor, é hieromania. E a Lua, amendoada, é qual a Luz, à Mãe doada: e aqui temos a frol, e aqui temos, no fasto, «A Flor e a Noite» ( 1955 ). Ou, nas palavras do Poeta, «Não consenti que o rasto de veneno / macule as palmas brancas e serenas / das vossas mãos, os frutos das promessas.» E se a messe, aqui, é do Messias, se é d’álea, por isso a Castália, os álamos são Almas que trinam à noute: e eis alento e alimento, eis o verde, e a vis, em António Salvado. Hieromania ou loucura sagrada: na Carta aos Coríntios é a Loucura da Cruz ( 1 Cor. 1: 18, 25 ). E é pois o endeusamento, é o «entusiasmo» no sentido etimológico. E se Deus se fez homem, foi pra que os homens, dessarte, deuses se tornem. Eis o que eu chamo uma Ontologia dos valores poéticos em Lira e no lar de António Salvado. E não sendo, propriamente, o dipsomaníaco, nós hemos, em Salvado, o bondoso beletrista, o ébrio com o sangue de Cristo Jesus. E sempre e sempre como o jogral, e como o Vate, Vaticano, do Deus vivo. Pois seguindo o germano, quer dizer, seguindo e segundo o teutónico Hegel ( 27/ 08/ 1770 – 14/ 11/ 1831 ), «a coruja de Minerva só levanta o seu voo ao cair do crepúsculo.» O palato, por isso, é paladar, a Palavra é paládio e a Palas Atena. E falando em termos de Pinharanda Gomes ( 16/ 07/ 1939 – 27/ 07/ 2019 ), a Poesia, de Salvado, é preclara,  Poesia é plectro e o Pão da Vida perene. E se a escrita do Vate é uma forma de acribia, nós hemos, em Salvado, o acroamático, nós hemos, em Salvado, uma acrobacia. Em António, meus Amigos, a crisologia é Cristologia, e ele é, na sua lide, o crisóstomo da Cruz. Ou melhor: em críptica cripta, ele é crisma e carisma, ele cresce e ele cria com a força da crença. Essa crença, em António, é benquerença, ele crê porque quer e ele quer porque cria. No albor, alado, do albicastrense, aqui temos, por isso, o alor, a Poesia como forma de predestinação. Aqui, meus Amigos, é como em S. Mateus, façamos, dele, uma cita solerte: é que muitos são chamados, e poucos os escolhidos ( Mt. 22: 14 ). O homem que estava sentado ao telónio nos dilucida e elucida: é que «o reino dos Céus é tomado à força, e os violentos, deveras, o tomam de assalto» ( Mt. 11: 12 ). É o cortar, radicalmente, com o mundo, que é imundo, e é batalhar, «Bateleur», no Teatro do Ser. E isso só se consegue com uma leal, coa liberal, e lídima paixão. Paixão por a messe, por a sua missão, por a Língua Portuguesa que nos liga e religa. E «Nós não somos deste mundo»: eis a estreia, ou Teoria, do preste Ruy Cinatti ( 08/ 03/ 1915 – 12/ 10/ 1986 ). E é por isso o Nume, o múnus devido, a Santa cruzada da Luz contra as trevas. E fortificando, na fronde, e frutificando, Salvado corrobora, celestino, Afonso Lopes Vieira ( 26/ 01/ 1878 – 25/ 01/ 1946 ): é mister no jardim, «à beira-mar plantado», «reaportuguesar Portugal, tornando-o europeu»: essa pois a sua liça, e a nossa lição. E a vénia devida, com verdor e ardor, a Tomás António Ribeiro Ferreira ( 1831 – 1901 ). Pois se o Poeta, em Rimbaud ( 20/ 10/ 1854 – 10/ 11/ 1891 ), é o roubador do Fogo, é que o António, liberal, veio trazer o Fogo à terra – e a terra lhe agradece sob a forma de mulher: e aqui nós alçamos, alcandoramos, aqui, Maria Adelaide Neto Salvado. Com dezenas e dezenas de livros publicados, esta Senhora se dedica à cultura como culto, às igrejas e à Arte Sacra. Que o Génio, já o dissemos, é aquele que gera: e o faz independentemente dos órgãos e dos genes que a Madre Natureza destinou à geração. E toda a criação se faz, adamantina, à imagem e semelhança do seu criador. E se Atena nasceu do crânio de Zeus, eis aqui o Salvado, e nós hemos, em Minerva, o ministério menestrel. Quero eu aqui dizer: através do palavrar, um livro, afinal, é qual ser vivo e animado; através das Maias, das Magias, ou das artes maiêutas, nós entramos, solertes, em Teatro do Mundo. Sejamos, ao nele entrar, qual «Homo Viator», sejamos «passageiro nas águas viageiras.» Porquanto o divo diz: «Inteira a casa é um suspiro solto / que atravessou estações, e para trás / deixou jardins com lagos e canteiros / e quantas alegrias / e quantas bocas a dizer amor.» Aqui trazemos, portanto, à colação, «Cooperatores Veritatis»: e eis o lema e emblema de Bento XVI ( 16/ 04/ 1927 – 31/ 12/ 2022 ). A hermenêutica, leal, ela está, novamente, na Primeira, ou certeira, Carta aos Coríntios, 3: 9: «Efectivamente, somos cooperadores de Deus. Vós sois cultura de Deus, sois edifício de Deus.» Quero eu dizer: através da fala, do Mito, e da parábola, colabora, o Poeta, com Deus, no projecto criacionista. Que é preciso liberar, o ser senciente, da dor, do transir e do entrave da morte. Ou melhor: se as sementes são lançadas em porto e a porta, basta abri-la em Abril numa nova Primavera, quando o Sol tiver chegado, ou quando os frutos quentes forem. É que os frutos são magísteres, e as sementes são lançadas em preste seminário. Ou melhor: em escol e a escola da Nossa Senhora. E só assim a oração brotará do coração, e só assim será Luz e a Paideia divina. E se o Mago, aqui, é malabar, encíclica é a sigla, e o Sacerdote ensina a ciência do Livro. E esses livros, dessarte, são os livres, e os homens são libertos por as Artes Liberais. Que ensinar é modular, é moldar e modelar, e quem ensina só o faz de acordo com os signos. Pois como acontece, outrossim, com certos e superlativos literatos, Salvado, o espiritual, é apóstolo, é qual Epopta, é Pontífice, portanto, ou construtor de pontes. Ele liga, numa palavra, o Eu ao Tu, o Céu à terra, o inconsciente pessoal ao colectivo, oblativo inconsciente. E o faz em nome da unidade indefectível, da unidade, inviolável, da pessoa humana. Sempre tendo em atenção que o esquizomorfo é de evitar, que o anonimato é roaz, que o indivíduo é aquele que não se divide. E batalhando, eu já o disse, como o faz o «Bateleur». Que a Musa antonina é mais do que o simples comunicar; busca a tuna de Salvado a unicidade e a «communio», uma preste comunhão. E manducando pois o crístico, o místico, o eucarístico Pão. E o companheiro, por isso mesmo, é camarada, e no cenáculo encenas as tuas imagens. ‘Té que se manifeste, em vida nossa, o Espírito Paracleto, o Consolador; Ele é qual messe e o Messias do meu desiderato, Ele é, numa Escolástica, o escopo e a escola de António Salvado. Em lhaneza, agora, de chão plano: se anela aqui, a criação, uma pronta e uma preste recreação, é que a «skholé», para os Antigos, ela é recreio, o lazer e o princípio do prazer. E aqui, pelotiqueiro, nós fazemos um apelo: é premente e é urgente, urge que seja, o ginásio, a ginástica da Alma. Que o Ensino Superior seja, em Portugal, o Ensino soberano, e por isso suserano. Ou melhor: quero que façam, os Doutores, a doutrina e a supina que libere o nosso povo. O pensamento, aqui, é movimento, a moção é comoção. E seja lido o Salvado, em lenda e a legenda, à luz do Movimento da Filosofia Portuguesa: essa a nossa esperança e a nossa aspiração. E essa pois a liça, e essa a lição de António Salvado. Mas ouçamos, de novo, o albicastrense. Num soneto intitulado «Existe em Mim», oferendado, sem jaça, à Maria de Lurdes Gouveia Barata, afiança, de feito, o Poeta nosso: «Existe em mim contínua rebeldia: / sejam iguais as horas desiguais / semeio pelas noites pelos dias / inquietações insónias e desaires». Ou melhor: é, no conjunto, a Obra de Salvado uma trans-mundação, um «ek-stático» ente do siderar-se ou «ex-sistere». Pois de acordo com Schopenhauer ( 22/ 02/ 1788 – 21/ 09/ 1860 ), o sonho é uma curta loucura, e a loucura, dessarte, um longo e fantástico «rêve éveillé», e eis o diverso de Robert Desoille ( 29/ 05/ 1890 – 10/ 10/ 1966 ). Poesia, portanto, é o êxtase, é o estro e é furor, e Horácio chama ao canto uma «amabilis insania». E eis o que eu nomeio, na linha de Lacan ( 13/ 04/ 1901 – 09/ 09/ 1981 ), a «ex-centricidade do Ser». E ademais e deveras, e com todas as veras: o Grego dos LXX traduz «sonho» por «ékstasis». Isto é: tão absorto nos Arquétipos, nos arcanos, e no mundo do sidéreo, o Poeta especula, o Poeta considera, o Poeta não dá conta do que se passa ao pé de si. Especular, por isso, é fundamental, é esquadrinhar, o Firmamento, com a ajuda de um espelho. E não alembras, no lance, o alumbrado e o génio do Tales de Mileto ( c. 624 – c. 546 a. C. )??? Entre a Música, portanto, e a Matemática do metro, aí vigora, e se amelhora, a Poesia de Salvado. Que é mister, para o nosso mista, «Folhear os minutos / de uma ancoragem presa à comoção / de um amor passageiro, / quando era primavera / e os cânticos fremiam pelas árvores / a branquejar na sombra / um luminoso puro alvorecer». E o luminoso, decerto, é numinoso. Sendo, esse Númen, um ser celeste, inspiração, o Génio generoso de que falámos atrás. Ou melhor: se o Verbo é a Palavra, a Palavra Deus é. Em última análise, não somos nós que fazemos os nossos poemas, os poemas é que fazem, fabricam, fulguram vida nossa. E as palavras que escrevemos, tarde ou cedo, elas voltam à fonte donde emanaram. Palavras são forças, palavras são cargas electromagnéticas. E essas parábolas, deveras, nunca caem no vácuo. Em recitais de Poesia, segundo Platão, é tudo uma questão do dinamizar ou imanizar; o trovador mesmeriza, ele magnetiza, ele hipnotiza, dessarte, o público seu. E mais do que pensarmos, nós somos pensados, nós somos prensados. Por o «ça», por o Id, por o nosso Inconsciente. Decifrar pois, na clínica do Estilo, os sonhos do Poeta: e eis aqui a missão do Crítico literário. Que é na flama, e na chama, um novo Champollion ( 23/ 12/ 1790 – 04/ 03/ 1832 ) perante os hieróglifos. Pois o livro é, deveras, ser vivo e senciente. E vergastar, verrinar, ou verberar um Poeta, criticamente, é perreá-lo, é espancá-lo, é dar-lhe, no Teatro, o turvar e a tunda. E aqui temos, no carme, a celebração, ou, então, na linha de Heidegger ( 26/ 09/ 1889 – 26/ 05/ 1976 ), o espaço e o espasmo, o tempo do sagrado. E o «carmen» do Lácio significa, dessarte: «canto, esconjuro, oração, cântico, hino, fórmula mágica». É que a Música, acompanhada, devidamente, por o mantra e oração, pode levar, o postulante, a estados paranormais, ou melhor, supra-reais. E é por isso que eu canto, e é por isso que o charme é próprio do Poeta. Sigamos, então, sigamos a sugestão do lírico nosso: «Assim continuarei – de mim o espelho: / o ritmo das vivências que procura / ver no papel figuração de música». A música, o trino, a figura-fulgor. O Autor, enfim, como actor, o escrever no papel e re-apresentar, depois, o mesmo papel. O que é que, a talho de foice, a língua nos diz??? Que o amante é qual amente, que o estro vem do estrogénio, e que o hino é dessarte o rompimento do hímen. Que bem leve, e bem leal, o genial sublima, acrisola, ele acura o genital. Que Idália, pois, e Acidália, é a Musa, liberal, de António Salvado. Que o Vaticano, enfim, deriva da vis, e da força do Vate. Que o Profeta profere, que o Professor, afinal, é aquele que professa. E que há, no ensino, o «transfert», e que repete, o bom aluno, a biografia do Mestre. E o que é que, entanto, a Psicanálise nos diz??? Que a histeria, de feito, é deformação de uma Obra de Arte. Que a mesma histeria não é própria, só, do sexo feminino. Que o Fernando Pessoa ( 13/ 06/ 1888 – 30/ 11/ 1935 ) se considerava, a ele mesmo, um histeroneurasténico. E que, afinal, a paixão libidinosa é um tipo de neurose socialmente aceitável: e isto mesmo, à parte o Pessoa, isto mesmo nos ensinou um Sigmund Freud ( 06/ 05/ 1856 – 23/ 09/ 1939 ). É que o sintoma, afinal, é um símbolo. Que o Freud classifica, de «resíduos arcaicos», aquilo a que Jung ( 26/ 07/ 1875 – 06/ 06/ 1961 ) Arquétipos chama. E já estamos, afinal, a aprender, compreender, o salmo e o som de António Salvado. E se isso florece, ou acontece, é que prendemos, sua Lira, de encontro ao peito nosso. Um pouco como faz, a menina lilial, com seu urso de peluche. E o fantoche, afinal, é fáctico fetiche, e tem no «poster» o «teenager» a guitarra do cantor. Disparava, com dolo, o Malebranche ( 06/ 08/ 1638 – 13/ 10/ 1715 ): «A imaginação é a louca da casa.» Não era certo, quanto a mim, o oratoriano: é que a «imago», afinal, é terminante no psiquismo, e se as imagens são magias, é que as ideias factícias elas são, afinal, as fictícias ideias. A ficção, exactamente, a qualidade de quem finge. É recto, é escorreito e correcto dizer: os filhos e os frutos de António Salvado ficaram com uma boa «imago» paterna. Salvado, desse modo, o Príncipe das nuvens. Dos sonhos liliais em cujo labor surdem metáforas, metonímias, e lautas litotes. O sonho, desse modo, é ficção. Toda a Arte é uma mentira que se transforma em verdade. Todo o sonho é surreal que fecunda o real. E temos, fortemente, em Salvado, a Filologia, Magia ou Metaciência, as imagens, os mitos e as metáforas. E o muito, muito mais que em sua vida há-de vir. E hemos aqui o rito qual diegese, didascália, a dramatização do mito. «A Arte gerou-se, propriamente, da religião e com a religião»: e eis o que nos diz o teutónico Goethe ( 28/ 08/ 1749 – 22/ 03/ 1832 ). O ramerraneiro, por isso, é trivial, o estupendo e estupefacto é próprio do Mito. E tanto o Ésquilo ( c. 525 – c. 456 a. C. ), como o Sófocles ( c. 496 – c. 406 a. C. ), como o Eurípides ( c. 480 – c. 406 a. C. ), eles dramatizam, deveras, o que fazem os deuses no seu Panteão. O Poeta, aqui, como o Teólogo, aquele que alça, e que alteia, os luminares do seu povo. E sendo afinal, a hieromania, outra forma, liberal, da hierofania. Sendo o Mito, em Salvado, o melhor «élan vital». E sendo, em Salvado, o pitiatismo, qual a Pítia, afinal, do Oráculo de Delfos, e aqui a louvamos e aqui a lembramos. Que o espírito pitónico não é, como o pensam alguns, o satanismo ou diabolismo… Ter um espírito pitónico significa, tão-somente, o saber ler na luz astral, o ser, no lance, um profeta ou adivinho, e adivinho, dessarte, é o que luz, é o que sonda, ou sinala, o pensamento do deus. E alçamos, aqui, o experto, a História e as Artes divinatórias… Em Teoria, por isso, ou teurgia, nos diz, deveras, António Salvado: «O meu olhar afaga todo o mundo, / escreve irmão na mais longínqua estrela / e beija a rocha da mais funda terra»: e chama-se a isso, bem-querente, o ser benevolente. Pois postado, aqui o vemos, à Porta do Ser, o Poeta recebe de Deus pra doar, solerte, aos homens. E eis aqui a diferença entre a Arte e o engenho: se a Arte se atinge mediante a técnica, o trabalho e o treino, o engenho é o que se afla, ou insufla, a partir da geração, e é «ingenium», dessarte, aquilo que vem com os genes. Dito de outro modo, o que é ingénito é o que vem a partir da Natura. Ora a Poesia é um dom, quero eu dizer, uma predestinação. E o dom só existe pra ser doado na Graça. Alembremos aqui o lema, a Boa Nova de Mateus: se «o operário tem direito ao seu alimento», «dai de graça o que de graça recebestes» ( Mt. 10: 10 e Mt. 10: 8 ). E eis, quanto a mim, as duas provas mais probantes da existência de Deus, «verbi gratia»: a existência das Mães e a resistência, a insistência dos artistas. O sacrifício, aqui, é «sacrum facere». O Salvado não é só aquele que se dedica à Poesia, o Salvado é aquele que se sacrifica por ela. E nela descobre, em sacramento, o sagrado e o segredo. Finalmente e alfim ( e estamos prestes a findar ), o caso e a causa de António Salvado não diz só respeito a ele: ele é genérico, ge( ne )ral, e por isso universal. Ou dito doutro modo: em Salvado, o inconsciente pessoal se alcandorou, leve e livre, ao Arquétipo e tipo do inconsciente colectivo. Ou pra citar, decerto, a Musa minha: «Dado ao mundo por Deus, em grão e glande, / «Pera do mundo a Deus dar parte grande», / És Salvado, és lazúli, entremês, / Onde quer que se fale Português.» E rematamos pois deveras aduzindo e dizendo: cremos nós, com todas as veras, que António Salvado é germe, e é gigante, num país e numa plaga de liliputianos. Ou por vocábulos outros: ele é verso e Universo, é o Infante de Sagres da Poesia Portuguesa. Que ele é, gentil e ingente, a nova génese: é preciso, pra ser Génio, digerir a diegese…

 

Tomar, Cidade Templária, 25 de Abril de 2022

MISERANDO ATQUE ELIGENDO

PAULO JORGE BRITO E ABREU

 

PARALIPÓMENOS

A Música é Museu e o Museu, amavioso, é o Templo das Musas. Poesia é uma difícil, estreita passagem por o fio da navalha. Se o Poeta vencer existencialmente, ele chega a geronte e ele fala com os génios; senão, ele é, sem «adresse», despedaçado por as Bacantes. Que António é falante e por isso o aflante, ele clareia, abertamente, na clareira do Ser. Queremos dizer: é sua, dessarte, a fronde e Efrata, uma «ek-stática» insistência na verdade do Ser. Meditemos, por isso, e afirmemos: em mais de catorze lustros de vida literária, aquilo que se encontra, em António Salvado, são os Arquétipos e Mitos, são os tópicos e tropos do Espírito Absoluto. Ou melhor: a Poesia é Religião e a Bíblia apela, em vis e a via, à forte e à facunda Filosofia. É força, aqui, é força dizê-lo: não se dedica, António Salvado, à sua Poesia, António Salvado sacrifica-se por ela. Que a mesma Poesia, no tropo, é o «topos», o lugar, a experiência do sagrado. E é tempo de averbar que, em António Salvado, é como, também, no António Barahona ( Lisboa, 17/ 11/ 1939 ): Literatura é expressão do preternatural. E afirmemos, de feito, em Firmamento firme: António Salvado, por isso, não se pertence, ele é qual médium, canal ou instrumento, nas mãos de forças e poderes que em muito o transcendem. E mais do que possuir ele é, no lance, possuído por um deus. Se Poesia, aqui, é simpatia, o passivo, por isso, é paciente, é a patética paixão que enfuna, de feito, as velas do navio. Por ser o jogo oposto ao jugo, a Arte é uma actividade totalmente desinteressada, por isso vive, o Poeta, em certeiro e arteiro estado de Graça. Queremos, nós, aqui, dizer: Poesia, na ponte, é Teofania, de cada vez que um Poeta sonha, os Anjos sobem e descem por a escada de Jacob ( Gn. 28: 10, 17 ). O lema do Santo Padre Bento XVI nos doutrina, dessarte, e ensina: através da Palavra, o fito do homem é cooperar, com Deus, na Obra da Verdade, é colaborar, com Cristo, no projecto criacionista; essa a sua messe e a sua missão. Mas se a linguagem ou «Logos» aparta o homem da animalidade, a magia das imagens, nele, é factor divinizante. É que a língua, também, a língua é liame e a língua é a liga, a Palavra é o Verbo e o Verbo Deus é. E eis que são, no mês de Maio, as Maias de Maria. «Entre o fortuito e o acaso, um passo», nos diz, na cita, João Belo. «Não é por acaso que nada é por acaso.»


Tomar, 16/ 03/ 2023

MISERANDO ATQUE ELIGENDO

PAULO JORGE BRITO E ABREU