A obra O Fulgor é Móvel, de José Augusto Mourão, é o volume inaugural da colecção “Faces de Penélope”, que, com “Faces de Vénus” constitui um projecto pioneiro na Literatura Lusófona Contemporânea, como sublinhou Eduardo Lourenço (1), inscrito como projecto de investigação sob o título “Faces da Literatura Lusófona” no Centro de Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. As colecções pretendem convocar grandes autorescontemporâneos (poetas, ficcionistas e ensaístas) em volumes de co-autoria, sempre que possível: o escritor e o seu(s) leitor(s) definindo as faces estéticas do primeiro, perscrutando-lhe a obra édita e inédita, a face visível e a oculta, as diferentes componentes da sua produção, quer na antologia (auto)apresentacional do escritor, quer no ensaio sobre ele, da responsabilidade do(s) segundo(s), geralmente, por ele escolhido. Colecções que desejam, assim, promover o encontro com grandes vozes da Literatura e da Ensaística em Língua Portuguesa, entendida como vasto território da Lusofonia, desvendando, até, obra ainda em projecto e pensamento estético dos seus autores.
Como directora da colecção e coordenadora do projecto, surpreenderei certamente, surgindo a público com uma apresentação da obra, como agora. Até porque ela está feita na saudação que lhe dedico na mensagem “Ao Leitor” na abertura do volume.
Que este gesto, ciente embora da sua redundância e da transgressão ao tácito preceito que interdita a crítica a um fenómeno em que o sujeito esteja comprometido, seja entendido como afirmação e consagração de uma convivialidade de facto entre todos os autores de ambas as colecções, forjando uma comunidade alargada e em expansão, mas também como convite a todos para que nela e com ela convivam. Casimiro de Brito, autor inaugural da colecção-irmã “Faces de Vénus”, saudou, no lançamento, os autores inaugurais da outra, deu-lhes as boas-vindas, estabelecendo a ponte simbólica entre géneros (aqui e agora, bem discutíveis) e colecções, denunciando as íntimas ligações entre eles e os seus autores. Eu faço-o aqui, arriscando a vossa suspeição.
Avanço, pois, nesta arriscada “linha de costa” em direcção à que José Augusto Mourão percorre e cartografa na obra de Maria Gabriela Llansol, ao longo de prolongado convívio literário e pessoal com a autora, experiência partilhada com outros numa espécie de “seminário permanente” de reflexão sobre a sua escrita, cartografia lida de novo antes desta publicação, como que em gesto de despedida:
“Sou um legente que escreve desde há uns anos já sobre Maria Gabriela Llansol com o sentimento de ter sempre vagueado por uma inextrincável linha de costa, portanto sem ter a presunção de alguma vez ter chegado a um terminal de mundos, sabendo que das ruínas da biografia não se pode erguer uma estátua, temendo ademais, e como Témia a impostura da língua, fiado apenas na ‘cordialidade’ do sentido (Tauler), no puro amor do ‘há’, na equivalência entre estética e ética, nada sabendo em definitivo, apenas entrevendo. Sabe-se que se é legente quando o júbilo de existir e o ler se tocam. Ou quando o ‘Luar libidinal’ ou o ‘Sexo de ler” nos move a querer, a ler, a pensar, a reconhecer a linhagem do vivo que não se restringe ao humano nem aos vivos. Por graça, não por artimanhas e denodados esforços. ‘Magníficos os espíritos/ Que se cruzam sem espada/ E com bondade’. Ser e ler é a toada dos legentes.” (p. 190)
E, a seguir, afirma ainda:
“Nós estamos ligados uns aos outros através de um amor comum que nos envolve, tal a philia que Zeus dá a todos, ou, segundo um outro modelo, pela ‘ternura’ – tal a hesed bíblica – vinda do Deus único, a ‘graça’ celeste que se derrama nos corações. O reconhecimento (kharis) era, no tempo de Platão, o tipo de atitude ligado à reciprocidade generosa, à relação de dom mútuo. Tive a graça de durante alguns anos acompanhar outros legentes tocados como eu pela ‘estranha fé que nutrem pelo texto’ lansoniano. No Epílogo de O Senhor de Herbais, a autora alude a esse encontro de estudos, primeiro centrado sobre O Livro das Comunidades, depois alargado ao Parasceve e a Amar um Cão. Ao ‘proximal’ (F. Rastier), esse espaço relativo à posição do sujeito da enunciação – como lugar de um Tu em face de um Eu – chega-se sempre em companhia. Neste universo de escrita até o ‘real’ é legente e o animal escuta. A fidúcia preside a todos os encontros: como não presidria ao acto de ler? ‘para cima da fonte há outro livro – o senhor de Herbais -, que é o lugar ermo onde a figura do legente nasceu para acompanhar a singularidade desta escrita. Ele partilha comigo a dor do sentido que aparece, e se desvanece.’” (p. 190)
Assim caracteriza José Augusto Mourão, ensaísta de vasta bibliografia e reconhecido leitor de Maria Gabriela Llansol, o seu “modo de estar-com” (p. 165) a obra que analisa, assumindo um tipo de relação especial com ela, mas também com um grupo de outros “legentes” que formam com ele uma comunidade, uma geografia de rebeldes (para usar um título da autora), em torno da oficiante de um rito, Maria Gabriela Llansol-escritora, “guardiã do texto” (p. 26), figura de uma instância de escrita continuada, transcendência apenas apreensível através de “fulgurações” que ofuscam e cegam, à semelhança das de um divino que os textos sagrados do cristianismo (e de outras religiões) consagram.
O que desloca a letra llansoniana para a esfera da escritura sagrada, constituída em Livro significativamente maiusculado. Manifestação de um ser que é aquilo que é, permanente na sua existência e metamórfico nas suas manifestações:
“Não sei se é o mesmo Livro, direi antes que é o mesmo espaço evoluindo e abrindo-se e fechando-se e abrindo-se e fechando-se porque só isso me parece verdadeiramente real (cf. Um Beijo Dado Mais Tarde).” (p. 16)
E lugar de peregrinação desse ser e do encontro com ele: o beijo, o contacto.
Na errância de uma escrita sem “um ponto fixo onde prender-se” (p. 16), resta a José Augusto Mourão perscrutar as “figuras” ou “incandescências” (p. 16) da sua estética “maravilhante” pelas quais tenta aceder, “fora da estrutura de representação, /.../ a um espaço ainda indeterminado em que tudo é possível e em que o dito faz ‘nascer’” (p. 15). E o ensaísta torna-se, assim, ser em busca, profeta ou arauto de uma religião (“trabalho de escrita [que] deverá (re)unir o que tem andado dividido”, p. 16) que procura conformar e explicar, aspirando à coda e aos seus rituais, transmitindo a mensagem de que, sendo “a matéria prima do texto /.../ o confronto/adequação dos afectos e da língua, sobre o solo de um lugar, que é sempre um corpo e uma paisagem falando-se” (verbo de Maria Gabriela Llansol), a operação principal” é “uma mutação libidinal ou afectiva” (p.16):
“Desta libido scribendi, crescem livros como cresce a erva ou os falcões voam. Porque a mesma mutabilidade, a mesma anarquia e a mesma matriz polimorfa ligam o invisível nas dobras do visível, a carne mística e o corpo glorioso (da escrita) ao desejo (muito nietzcheano) que todo o passado se torne ligeiro, todo o corpo, bailarino, todo o espírito, pássaro.” (p. 13)
Facto que prescreve um exercício de leitura mimético, pelo menos, quanto possível. Pois, sendo a obra literária um “objecto invisível” (p. 27), ler é reconhecer as “manchas” dos livros “como sinais de uma escrita” (p. 27) que se procura compreender, mas também seguir as suas remissões para um destinatário exterior e para uma pluralidade semântica que “criam” e convocam uma “comunidade mística” (p. 31), “inesquecíveis seres que estão aqui e estão por vir” (verbo de Maria Gabriela Llansol, p. 31) e que “lidam com a palavra como um vivo” (contra-capa), comprometidos num “contrato fiduciário” em grande parte radicado na ‘crença’ de que o texto, de consubstancial anamorfose, “tem um ‘espaço vocativo’, de atracção para o vortex, para as metamorfoses, da língua, da paisagem e do desejo, em vista do espaço edénico” (p. 21).
Daí o título da obra O Fulgor é Móvel, implicando em si toda esta problemática, agitando a ânsia de um além, fonte de luz que a capa sugere para além de e por entre as placas de madeira sobrepostas.
Daí, ainda, o subtítulo “em torno da obra de Maria Gabriela Llansol”, descrevendo a órbita percorrida pelo planeta em volta do centro solar do sistema, imagem do transcendente, “que não se compreende, excepto pela companhia” (2), como postula a autora, centro em implosão suspeitada nas palavras autorais:
“Será um livro póstumo, ou um livro antigo, e chamar-se-á, referindo-se a uma mulher, Biografia. Não por eu ser escritora, ou uma mulher que dá testemunho; mas por ter nascido ser vivo; que eu fale sem enigmas, com a clareza e a sinceridade que descansam os espíritos.” (3)
Daí também o subtítulo do primeiro capítulo, “Figuras da metamorfose na obra de Maria Gabriela Llansol”, assinalando a figuração e a metamorfose consubstanciais à escrita de tão enigmática autora, as “imagens que arfam no texto” (4), uma escrita que se dá a ver “como um laboratório em que vários mundos simultaneamente levitam, levedam, transmigram” e como “uma forma de envolvimento, uma paixão ou condição (feminina): /.../ [a] renda” (p. 43), escrita aspirando à totalidade de um modo que evoca o pluralismo e fluidez do texto bíblico original. No corpo do texto, o prodígio acontece, versão de outros e, por sua vez, vertendo-se noutros ainda, num progressivo entendimento que Maria Gabriela Llansol descreve assim sexuado:
“o que vejo, quando escrevo, é que a mudança contém aparentemente uma forte dose de ilusão. /.../ No corpo que cresce e evolui, sobretudo quando está prestes a degenerar e a morrer, vai-se formando uma espécie de monstro, um ser compósito formado de vários sexos,
o que temos,
aquele com que nascemos,
aquele que o texto nos dá e que é o mais profundo,
aquele que experimentámos no amor,
o sexo dos que amamos,
o das plantas que nos dão beleza,
o dos animais que nos dão sensibilidade
e, em certos casos, o sexo da paisagem, por exemplo,
o seu plátano.”(5)
Daí, finalmente, todo um itinerário de escrita-diálogo, de escrita em diálogo (de facto), longa convivência e visitação da obra, da autora e da escritora, que se conclui com “Maria Gabriela Llansol retrato de um legente”, título sedutor de ambiguidade: ‘retrato de Maria Gabriela Llansol por um seu legente’ e ‘retrato de um legente de Maria Gabriela Llansol’. Terminando a relação com o selo de um rosto em marca d’água onde autora e leitor se sobreimprimem, fundidos pelo ritual que toda a obra constitui, percurso ascensional de “apelo e quimera” (p. 31) e de encontro, incandescência. Intensidade de que só é possível falar depois, por interposta e homóloga experiência autoralmente descrita, e com o tempo passado imperfeito, derramado ainda no presente:
“Há uma palavra para esta estranha relação. Eu e ela éramos textuantes.” (6)
Como que seguindo as lições da paranética (e da retórica, do processo ciceroniano de ponere ante oculos) e o modelo da via sacra, cada texto constitui um dos passos que nos conduzem, no final, ao encontro dessa imago em sobreimpressão num percurso em solene marcha lenta através do discurso de Maria Gabriela Llansol, suspendendo-nos a cada fulguração, até esse contacto emocionante com o sujeito ‘crístico’ (metanoia). Teatralização ritualizadora, sugerindo José Augusto Mourão como sacerdote que nos conduz a Ela-Nós, apresentando-a e homenageando-a (7)..
Por isso, e por respeito à vontade de Maria Gabriela Llansol, que não se quer ver antologiada em vida, o volume omitiu a antologia pedida pela colecção que abre, remetendo o leitor, irremediável e proselitistamente, para a obra da autora, que a breve bibliografia evoca (marcada pela intimidade denunciada nos inéditos assinalados) e que as longas epígrafes entre capítulos convocam. Interdição de Maria Gabriela Llansol que é mais um óbvio “fulgor” dessa face oculta que as colecções também desejam captar.
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