|
||
ANNABELA RITA - COR DA PALAVRA | ||
|
||
|
||
poema narcísico se intitula este depoimento reflexivo sobre a escrita e a sua leitura, no caso, a minha, assim convocada pela dedicatória de António Vera. Esta oferta poética singulariza e identifica em paradigmático destinatário, eu, o gesto que informa toda a obra do poeta, radicada num diálogo de olhos nos olhos, no lugar vago ao lado (Cursivo Menor, 32) que me atrevo a ocupar aqui, em renovada cumplicidade (1).Desde a sua colaboração na Árvore (2) e na Távola Redonda passando por cursivo menor (Lisboa, Colibri, 1998), Palavras com Rosto (Lisboa, Universitária Editora, 2000) e As Pestanas de Afrodite (Lisboa, Universitária Editora, 2001) e suspendendo-se agora em escrito na margem, António Vera mira [ -se ] no papel, construindo a sua identidade poética, caldeando-a na persistência de motivos, atitudes e propostas, na evocação de uma memória cultural que favorece o reconhecimento e a empatia. E, se, até aqui, essa construção se exprimia também no texto apresentacional aspirando a definir o rosto autoral, a corporificá-lo quanto possível, agora, essa figura esfuma-se nas margens da escrita que a esboçou, fantasmizada na transparência da palavra, na ambiguidade do signo, nas reverberações do poema, ofelicamente pressentida na superfície aquarificada ou nostalgicamente oculta nas sombras do fundo lodoso:
só resta o que fica escrito O título da obra, escrito na margem, evoca as principais coordenadas da escrita que a gerou. Enuncio-as. A distância implicada na margem de onde o poeta escreve, qual figura de Bernardim Ribeiro, é multímoda. Distância de observação. Justificando uma atitude crítica e intelectual face à realidade, atitude que modaliza de deceptividade e ironia afectos e emoções da vida encarada como passagem do testemunho que o tempo vai metamorfoseando ao nosso olhar, substituindo crenças ancestrais pelos novos mitos (a clonagem, os jogos de prazer, etc) e a comunidade tradicional de um rio extinto pelas gerações dos plantadores de guerras/ com sementes de fome, mercadores de mentiras. Distância existencial e estatutária entre vida e escrita, homem e poeta, facto e palavra, infinito pessoal onde ambos se reflectem, se interpenetram, se complexificam e se subtilizam. Distância da memória, ampliada no tempo. Memória que nadifica' as imagens do passado, dissolvendo-as irremediavelmente em direcção a um ponto de fuga assemelhado a buraco negro: nadaretratos do passado, de que vos estais rindo? /.../ dou volta à moldura, e, em menos dum clique, o passado, o presente, e também o futuro se juntam ao eterno. já nem são este instante. Já em cursivo menor falara dessa nadificação', da dissolução dessas imagens mnésicas, ofélicas, imponderáveis: na tela de seda da minha memória quer vir ao de cima, coleia esvaída, como que ajudada, aflora um momento, e expira afogada... (CM, 8) Memória de que também surgem imagens evocadoras das composições de Escher, de perspectivas contraditórias e imbrincadas, lacunares, inextricáveis, impossíveis, rompendo com a linearidade de uma trajectória tão só ascendente ou descendente: para o arquivo infindável E a escassez de sinais orientadores (pontuação, maiúsculas, etc.) promove também a imagem labiríntica de tal escadaria, onde as únicas referências são o ritmo do verso, a respiração da frase, o corpo da palavra. O escrito é em cursivo menor (3), consagrando a oralidade, com uma voz modulada pela memória de outras cujo timbre foi igualmente marcado por essa distância e anelante de paz e harmonia: a de uma genealogia mítica de um povo perdido (99) que a ocidentalidade protagonizou em Ulisses e que a portugalidade reivindicou nos lusíadas; a de uma linhagem literária onde vibra uma delicada dor da nostalgia (89), representada por António Nobre, Camilo Pessanha, etc., mas também por uma ancestralidade popular já denunciada em textos anteriores (4).Entendendo-o assim, escrito na margem tende a desenvolver-se como longo monólogo anelante de nós, leitores, semelhante ao teatro de sombras chinesas, ora confundindo, ora fazendo reconhecer fantasmas seus, nossos e alheios, coreografando uma dança para que sistematicamente nos convida, deixando-nos hesitantes entre cá e lá , entre a expectância e a participação, margem e centro, induzindo-nos a experimentar ambos os lugares, a ensaiar o passo metonimizador, o gesto de ligação, instituindo-o radical de leitura, como da escrita.Trata-se, aliás, de uma poesia que se apresenta para se fazer possuir pelo leitor que a desejar, em gesto de desafiadora sedução, como evidencia o jogo entre os textos apresentação dum poema e poema apresentado (p. 52), teatralmente desdobrados na mesma página. Recordo o primeiro deles: este poema murmurado por alguém há muito muito se tiver dono por agora A poesia oferece-se à leitura desde o título, que pode constituir autêntico desafio, como acontece com falta pôr o título (p. 97), esteticizando a sedução que a informa, constituindo-me em desejada co-autora.E é também uma escrita consciente de que o seu objecto, a palavra, tem vida própria e escapa ao seu controlo, sendo exactamente nessa fuga que o autor se constitui como tal. Poesia assumida como arte da fuga, imponderável e surpreendente, fascinante por isso: as palavras nos revelam as palavras nos ocultam, e, no fio de água onde eu caiba, escrito na margem conclui-se com um poema, o regresso , sobre a sua escrita como entrada mnésica no que foi . Aí consagra António Vera a ambiguidade, através do movimento de uma porta que abre, ou fecha, ou entre-abre para nós: abri a porta para entrar certo ou talvez por ter saído (sangrou-me o coração, |
||
(1) Em 20 de Dezembro de 2000, apresentei a obra de António Vera, Palavras com Rosto (Lisboa, Universitária Editora, 2000) no seu lançamento realizado na Biblioteca do Palácio das Galveias. Cf. texto dessa apresentação (António Vera: Palavras com Rosto ) no meu livro No Fundo dos Espelhos (I vol.) , Porto, Edições Caixotim, 2003, pp. 155/161. E esse gesto de apresentação renovou-se agora, no lançamento de Escrito na margem realizado na Biblioteca do Palácio das Galveias em 14 de Maio de 2003.(2) Por ex., o poema 23 (dentro de mim cai a pedra) de cursivo menor foi um dos poemas com que colaborou no 1º fascículo de Árvore folhas de poesia, agora, em edição fac-similada com um excelente estudo introdutório de Luís Adriano Carlos (Lisboa, Outono de 1951, p.15).(3) Que estrategicamente intitula anterior livro seu, Cursivo Menor. (4) Cf o que sobre isso digo em No Fundo dos Espelhos. Incursões na cena literária, Porto, Edições Caixotim, 2003; António Vera: Palavras com Rosto , pp. 155/161. |
||