Na capa, a nuca garante a suspeita que a
inicial insinua e cuja referencialidade o fragmento apresentacional
desenha no centro do pescoço alongado, desocultado pelo cabelo já não
“dourado corrido, solto” (p. 110), mas sombreado e apanhado, exposto
numa nudez parecendo antecipar a morte, a fissura, a ruptura da
actividade cerebral que conduz o discurso e suporta a ficção, vulnerável
ao golpe fatal.
O anúncio d’“o último Grande Amor português visto pela imaginação
romanesca” reforça a dimensão ficcional do texto sobre o pano de fundo
do reconhecido e reconhecível (Snu Abecassis, Francisco Sá Carneiro, um
Portugal em outroragora):
“O Último Minuto na Vida de S.
é um texto de ficção com três ou quatro
pontos de apoio na realidade portuguesa
das décadas de 1960 e 1970.” (p. 7)
O poema de Vinícius de Moraes, a seguir, impõe o timbre lírico,
anunciando a voz feminina, a perspectiva dominante.
E a nossa memória. Dos grandes Mitos do Amor ocidentais, em geral,
dramáticos, de que Denis de Rougemont destacou os principais (Tristão e
Isolda, etc.). Dos do contoário popular e tradicional que povoaram a
nossa infância, normalmente, com feliz desenlace (as princesas
adormecidas ou acordadas que “viveram felizes para sempre”). Dos que a
realidade nos tem oferecido e que a Arte tem re-elaborado, nacionais
(Pedro e Inês, p. ex.) ou estrangeiros (Abelardo e Heloísa, dentre
tantos)…
Quatro “pontos de apoio”, enfim, em pedestal à ficção de um amor e ao
amor dessa ficção.
Depois, o texto começa.
Discurso feminino dirigido ao amado, subvertendo certo cânone,
continuando outro, entretecendo ecos familiares. Cântico dos Cânticos:
“/…/ falavas em pétalas de rosa branca, esmaecidas, finas e aveludadas
como retrato fiel das minhas faces, os meus olhos esmeralda, os meus
lábios carmim, as minhas sobrancelhas cor de Outono, as minhas orelhas
tenras, suaves, todo tu me beijavas /…/.” (p. 94)
Mas também Crónica de uma Morte Anunciada (“amor e política geram
tragédia”, p. 15). Até…
“/…/ ouço pronunciares a primeira letra do meu nome, S, a mortalha de
fumo asfixia-te, as outras letras não saem já da tua boca, o teu nome
cola-se na minha, preso, de lábios cerrados, os olhos lacrimejando, as
narinas soprando o fumo preto, ansiando por respirar…” (p. 125)
Essa única e última letra pronunciada pelo amado repercutir-se-á no
título do requiem por um amor defunto, por um par unido na tragédia e
dissolvido na nuvem da explosão, na vertigem da queda do Cessna. Na
sinuosidade da letra, parece desenhar-se o incenso de Eros fundindo-se
com Thanatos. E o voo do Cessna assemelha-os ao mítico Ícaro, como ele
terminando, afundados pela pressão da lei da realidade…
Texto ritmado pelo tempo escoando na ampulheta, inexorável, fatal,
contundentemente marcado pela pontualidade do número e da contagem na
brancura da página: 0”, 10”, 20”, 30”, 40”, 50”… Etapas de um amor que a
convulsão política e alheia transformou em via crucis. Cindida, ainda,
por outras imagens indiciadoras por onde se faz vislumbrar o memento
moris, a velha tradição das vanitas, bruxuleando como em dança macabra
de antiga memória:
“Torno a olhar para o vidro da porta, esfuma-se de novo a tua figura, os
olhos desaparecem duas covas escuras, arrepio-me /…/” (p. 57)
Ciclo da plenitude à asfixia, da cintilância ao vórtice do fumo, do
olhar às lágrimas, evocando ecos de outro canto dolente perdido no
tempo, o de João Roiz de Castelo-Branco (Cancioneiro Geral), colhido
nele séculos depois pelo de Adriano Correia de Oliveira ao som do choro
da guitarra de António Portugal:
“Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.”
Apenas o discurso do amor alonga, compelindo (como o de Camões) o outro,
e a nós com ele. Encantatório. Tingido de camoneano onírico (“Em sonhos
aquela alma me aparece/ Que pera mim foi sonho nesta vida”). Nimbando de
mito a história do seu canto, suspendendo-o nas reticências que
confundem beijo e fumo, vida e morte, realidade e ficção…
Sob a poalha do anonimato denunciado pelas referências históricas,
parece afundar-se um ursinho de peluche, “[o] meu ursinho branco” (p.
109), emblematicamente identitário (de S., da editora, de um tempo),
patético na sobrevivência à tragédia de um amor quiçá sonhado na
infância, certamente destruído na fulgurância do seu incêndio tão breve.
Com ele, dissolvida também no passado, ficou a sacerdotisa desse
encontro de eleitos (“/…/ Deus empurrava-me para ti /…/”, p. 101)
“destinado a ser mais, a ser outra coisa” (p. 111), antecipando as
núpcias e o seu canto (este), diverso do que ela mesma, Natália Correia,
um dia escreverá (As Núpcias, 1992):
“/…/ e ela, áugure e sibila, pítia e pitonisa, poeta do fogo sagrado
roubado aos deuses, fez descer o seu veneno doce sobre ti, marcando-nos
um almoço, a mim ordenou-mo, forçando-me, todos falam que o nosso amor
começou nesse almoço /…/.” (p. 111)
Com ele, ainda, o eco do outro lado do fio telefónico, a profecia, o
pressentimento, o fado:
“/…/ a Mãe desconversou, amor e política geram tragédia /…/” (p. 15)
Com ele, ficou o signo sob o qual, na verdade, tudo (amor e texto)
começou:
“Chegaste /…/” (p. 13)
Com ele, ficou, igualmente, o ciclo da História. A cumprida e a
incumprida.
No branco frio da página, espaço-tempo após, só o enunciado da data e do
local de escrita põe termo a esse discurso logicamente impossível,
anti-natura, post mortem, em jeito de inscrição em pedra tumular,
pacificando os espíritos dos amantes:
“Fontanelas, 10 de Junho de 2007”
Na lápide desta página, inscrevo também, em homenagem ao par e ao
romancista-poeta, como flor “esmaecida” evocando as faces ocultadas na
fotografia da capa, outrora admiradas pelo amado:
Linda-a-Velha, 10 de Dezembro de 2008 |