Numa entrevista dada em 2006
a Carlos Quiroga (Revista AGÁLIA, Universidade de Santiago de
Compostela), fui questionado sobre os alegados riscos que corre o
romancista histórico de poder violentar a consciência das personagens
dos seus romances, sobretudo se as personagens retratadas tiveram uma
existência real e documentada. Bom, o risco, claro, existe. E parece-me
que o risco de violação pode registar-se a dois níveis.
O primeiro (mais evidente e, por tal,
menos “perigoso”) consiste nos erros de anacronismo. Ou seja, o
romancista poderá correr o perigo de incluir no romance, factos,
pensamentos, actos ou frases que seria impossível terem ocorrido na
época retratada. Poderíamos multiplicar os exemplos até à exaustão. Um
exemplo de anacronismo seria colocar uma personagem medieval a comer
peru, batatas ou chocolate, desde que a personagem não fosse um nativo
pré-colombiano, claro. Outro exemplo seria colocar uma outra personagem
pré-moderna (“Moderna” numa asserção histórica, bem entendido) a
referir-se a “meias-horas” ou em “dez minutos”. Estes erros não são,
convenhamos, difíceis de evitar. Alguma informação, algumas leituras, o
entendimento básico da História (e que menos se pode pedir a um
romancista histórico que isso, caramba?) ou, em caso de maior preguiça
ou maior prudência, o recurso a um consultor histórico -à laia das
produções históricas cinematográficas mais sérias- obviam a estas
falhas.
Note-se, todavia, que o anacronismo não
deriva apenas de erros factuais ou discursivos. Aqui entramos já no
segundo nível. Mais difíceis de detectar serão os erros cometidos ao
associar a personagens de uma certa época, ideias, princípios ou quadros
mentais que eles não poderiam ter. Tomemos um exemplo clássico bem
conhecido dos historiadores. Segundo Lucien Febvre, seria impossível que
a concepção de ateísmo existisse no século XVI; assim, criar uma
personagem dessa época que como ateu se assumisse, corresponderia a um
anacronismo evidente. Não vamos aqui discutir os méritos da tese de
Febvre, que já no seu tempo fez correr muita tinta (Lucien Febvre “Le
probleme de l’incroyance ao XVIe. siècle – La religion de Rabelais”,
Paris, Albin Michel, 1970).; o que importa é reter o seu sentido e o seu
alerta. Fiquemos ainda com um outro exemplo de como se pode atribuir a
uma personagem, quadros e paradigmas mentais que ele não poderia ter:
por muito aliciante que seja, não se pode ver na Carta de Pêro Vaz de
Caminha um hino à tolerância ou à igualdade racial e à diversidade
étnica. Pêro Vaz não poderia ser nunca um militante dos Direitos Civis,
nem poderia ver nos tupis, seus iguais.
E isto leva-nos a um outro nível de
perigo, se assim lhe podemos chamar. Aquele que corre o romancista
quando recria/romanceia a vida de uma personagem real. Como escrever
sobre ele? Como reconstituir a sua vida sem trair a essência dessa
personagem? Claro que aqui já não chega ter cuidado com a factologia. Já
não estamos ao mero nível das batatas e das meias-horas; já nem sequer
estamos ao nível dos quadros mentais, vivenciais e de referências. Agora
temos de evitar atribuir-lhe ideias, actos, comportamentos, hábitos,
gostos ou acções que ele, com os dados biográficos que dispomos,
presumivelmente não deveria ter. Por outras palavras, temos de lhe
reconstituir os passos e as vivências, sem violentar a personalidade da
criatura reconstituída. Aqui, torna-se evidente que o romancista tem de
conhecer a realidade retratada a três níveis: a época, os seus factos e
quadros mentais; a personagem e os factos da sua vida; o ser humano e a
sua lógica própria.
Confesso que quando respondi à pergunta de
Quiroga, este problema ainda não se me tinha colocado de uma forma muito
candente. E agora que penso nisso, constato que a entrevista, que eu
cria ter sido dada “ontem”, foi já dada em 2006. Até então, as minhas
personagens históricas ou eram indivíduos historicamente desconhecidos e
com escassos dados documentais, ou eram personagens inventadas. No
primeiro caso temos o tabelião sintrense João Lourenço (do «Anno Domini
1348») cuja existência real apenas nos chega em breves referências em
duas ou três linhas de dois ou três documentos medievais. Isso
permitiu-me recriar a sua derradeira semana de vida (sabemos que morreu
na peste de 1348), cingindo-me ao estrito respeito da sua vivência de
homem medieval, numa vila cuja medievalidade eu conheço e de acordo com
quadros mentais que eu também tenho obrigação de conhecer, por formação
académica. Para além disso, o nosso João Lourenço tinha uma vida
documentalmente tão escassa que eu tinha liberdade para lhe atribuir
idiossincrasias e até uma personalidade inventada, desde que não traísse
as premissas anteriores. Em posteriores romances históricos, as
personagens de que eu me servi foram totalmente criadas, o que, de um
modo geral, me colocava problemas afins aos do «Anno Domini».
Porém, no meu romance «O Retábulo de
Genebra» (Edição Campo das Letras, 2008), colocou-se-me com toda a
acuidade o problema sobre o qual me questionou Carlos Quiroga: como
transformar uma personagem real em personagem literária sem trair a sua
essência e a sua consciência? É que a personagem nuclear desse romance
não só existiu, como há factos conhecidos sobre a sua vida e obra que
permitem reconstituir uma biografia relativamente bem sustentada.
Trata-se do pintor germano-suiço Konrad Witz (Rottweil, 1400 – Basileia,
1445). Apesar de existirem muitos hiatos e bastas dúvidas, a sua
biografia revela-nos alguns factos relevantes: o local e data de
nascimento, a família mais chegada (pai, mulher, filhos, sogro e
cunhado), os patronos (de Filipe, o Bom, duque de Borgonha, ao anti-papa
Félix V), as influências artísticas (como Jan van Eyck, de quem terá
sido amigo), a localização da sua casa, algumas das suas viagens e
alguma da sua obra pictórica, ainda que muita tenha sido posteriormente
destruída nos fervores iconoclastas de meados da centúria de quinhentos.
O dado mais relevante da sua biografia, e
que foi, aliás, o objecto central do romance, é o facto de Witz ter sido
o autor do primeiro quadro da História da Arte que retrata uma paisagem
real: a paisagem real de Genebra no painel “A pesca milagrosa” (1444).
Romancear a história deste quadro e os eventos que levaram à sua feitura
e posterior tentativa de destruição, levou-me, claro, a tentar conhecer
Konrad Witz, para o poder retratar no romance.
Ao contrário do anódino -ainda que real-
João Lourenço, Konrad Witz tem uma biografia conhecida. Não é impossível
detectar-lhe um percurso de vida e uma lógica de acção. Não é impossível
detectar-lhe algo que se assemelhe a um arremedo, ainda que escasso e
subjectivo, de personalidade, tal como ela pode ser deduzida a partir
dos dados disponíveis. Ao romancear a sua vida, tive de ter o cuidado
para não violar a personalidade da personagem, tal como a podia
reconstituir a partir dos factos. E isso leva a um trabalho de
reconstituição histórica enquadrada por um processo narrativo no qual o
respeito pela personagem teve de estar sempre entre as primeiras
preocupações. Quanto mais não fosse por respeito aos leitores e por
respeito ao próprio Witz, que já cá não está para se defender.
Saliente-se que não dou esse meu romance como exemplo de uma tarefa bem
ou mal conduzida. Não serei eu o meu próprio juiz. Apenas partilho,
nestas informais linhas, a minha experiência que, de resto, é comum a
muitos amigos escritores.
Talvez a minha formação historicista
condicione esta minha forma de ver as coisas no romance histórico. Mas,
confesso-o, acredito que outra coisa que não isto, será intelectualmente
desonesto. E por “isto” entenda-se o respeito pelo rigor histórico de
épocas e de personagens.
Uma ressalva. Se estiver à partida
implícito nas regras do jogo do romance que “vale tudo”, isto é, que a
liberdade criativa e narrativa se sobrepõem livremente aos factos
históricos conhecidos, então é claro que é legítimo colocar Napoleão no
Olimpo a jogar à bisca com Buda e com o cavalo de Alexandre. Bom, mas
isso também não é romance histórico, não é verdade? É literatura, é
legítimo, é respeitável, é intocável, mas não é romance histórico. No
romance histórico, as palavras, os actos, as intenções e o pensamento
que se atribuem às personagens históricas devem decorrer (ainda que
enquadradas pela liberdade criativa) da lógica intrínseca das suas
personalidades e épocas, tal como essas personalidades podem ser
percepcionadas nos dados disponíveis.
Não sei se estas minhas considerações não
poderão ser apodadas de fundamentalistas. Afinal, é verdade que a
liberdade criativa poucas peias deve conhecer. Mas acredito que, como em
qualquer outro ofício, há uma ética que subjaz ao trabalho do escritor.
Uma ética de rigor e de seriedade na relação com o leitor; uma ética que
o inibe de –falando singelamente- fazer batota.
No final, talvez que tudo se reduza a uma
questão de bom-senso e de bom-gosto. Apliquemos ao romance os bons e
velhos princípios de bom-senso e bom-gosto, e talvez cheguemos a um
porto decente. Como princípios orientadores de arte e de vida não
estaremos nada mal servidos, se assim for. Já o saberia santo Antero. |