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DECÁLOGO DO ROMANCE HISTÓRICO
Por Miguel Real

1 – A escrita de um romance histórico exige do autor um espírito histórico. Não chega a curiosidade ou o interesse pela história. É fundamental ter a consciência de que não é possível extrair-se leis deterministas da História. Como ciência, a História é constituída por uma cadeia ou rede fortuita, acidental, realizada in actu, na qual cada acontecimento se estatui como uma reacção ou resposta possível determinada pela mentalidade cultural geral da época.

Sob pena de subordinar o romance histórico a um tipo de propaganda ideológica, não se pode passar de uma cadeia de acontecimentos para uma lógica filosófica da história. Integrar o romance histórico no interior de uma lógica filosófica da História (o cristianismo, o marxismo, o existencialismo, o estruturalismo, o liberalismo, o nazismo…) é subordinar o romance a um providencialismo determinista;

2 – Deve-se começar por ser bom historiador. Dominar em absoluto os factos históricos da época narrada, as formas de representação, as formas de governo, os conflitos políticos e institucionais, a sua expressão militar, os hinos, as canções guerreiras, os uniformes militares, a mitologia heróica…;

3 – Depois, tornar-se melhor que o melhor historiador – conhecer em pormenor as roupas, a higiene pessoal, a alimentação, períodos de actividade e inactividade, as profissões, os instrumentos de trabalho, os modos de culto do sagrado, as orações, as liturgias, os rituais de nascimento e morte, as formas de socialização, de divertimento, os espectáculos, os comportamentos marginais, os hábitos alternativos, a topografia e a toponímia da época…;

4 – O romance histórico possui um fim em si mesmo – o prazer estético da escrita e da leitura, adicionado ao conhecimento da história. Não serve nem para reconstruir a história, nem para reinterpretar a história, nem para ensinar a história;

5 – A História constitui-se como uma narrativa lógica e epistemológica sobre os factos históricos a partir de categorias científicas e o romance histórico uma narrativa literária ou artística sobre factos históricos reais ou inventados a partir de categorias estéticas.

Seja como ciência, seja como romance, a História é sempre uma narrativa humana sobre factos humanos, nada possuindo da certeza e do rigor presentes no determinismo próprio das ciências naturais e experimentais.

Neste sentido, o paradoxo do estatuto do romance histórico reside na ambiguidade de ser uma narrativa simultaneamente verdadeira e falsa (ficção);

6 – O romance histórico não reinterpreta ou reconstrói a história segundo um ditame de verdade – tal como fora pensado na primeira metade do século XX. A sua função consiste em abrir um horizonte estético e lúdico às possibilidades contidas na História, fazendo eco das múltiplas verdades e das múltiplas perspectivas por que se desenrolam os factos históricos, algumas delas nunca acontecidas;

7 – Neste sentido, afastam-se da definição de romance histórico termos limitadores como “fidelidade”, “verdade aproximada”, “reprodução” ou “reconstituição”, “dados rigorosamente históricos”… Ainda que o romance histórico possa comportar estas categorias, eminentemente científicas, o seu sentido primeiro e último e, portanto, a sua definição estatuídora, envolve sobretudo um fim estético. Se, de facto, o romance histórico envolve, pela sua natureza, um quantum de conhecimento e, possivelmente, de didactismo, o seu quid, porém, é eminente e absolutamente estético;

8 - Neste sentido, o romance histórico não se estatui como uma mimêsis da narrativa histórica científica, mas uma sua iluminação ficcional. Isto é, o romance histórico não reconstrói a história segundo um ditame de verdade; diferentemente, ilumina a história, evidenciando as possibilidades reais contidas numa época ou numa dada sociedade, tenham ou não acontecidas;

9 – Faz parte do estatuto paradoxal do romance histórico mimetizar e canibalizar as categorias e as modalidades da narrativa científica da histórica, evidenciando-se como discurso verosímil no campo da ciência. Aqui reside tanto o máximo de ironia do romance histórico quanto a consciência da subjectividade (estética, histórica) como elemento fundamentador do romance histórico;

10 – Neste sentido, não existem limites ficcionais para o romance histórico, seja enquanto narrativa verosímil sobre a história (antigo estatuto do romance histórico), seja enquanto narrativa que trabalha a partir da concepção estética de tempo como “totalidade inconsútil” (“o tempo é todo um”, segundo a lição de José Saramago). Na primeira concepção, o limite máximo para o romance histórico reside no “anacronismo”; na segunda e actual concepção, não existem limites epistemológicos, apenas a sabedoria (e o talento) de harmonizar esteticamente factos e personagens de culturas e épocas diferentes.

Azenhas do Mar/Sintra, 14 de Maio de 2008,
Miguel Real.

TriploV, 31 de Outubro de 2008

TERTÚLIA Byblos