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O lugar onde
Annabela Rita

CLEPUL . Universidade de Lisboa

Miguel Real. O Último Minuto na Vida de S., Lisboa/Matosinhos, QuidNovi, 2007, p. 64. Por comodidade, todas as citações serão seguidas da sua localização na obra.

 Na capa, o Buick  negro sobre o fragmento do mapa das estradas onde se assinala o local cuja estranheza o título consagra em enigma que o romance esclarecerá: A Cova do Lagarto[1] é o lugar onde. Lugar do acidente, da morte da personagem, o romance e o seu fim. Ironicamente, até: um dos projectos acalentados pela personalidade ficcionada (Duarte Pacheco) foi o de eliminar tanto quanto possível as lombas das estradas, uma das quais lhe foi fatal…

O ciclo ficcional completa-se com essa súbita e ansiada informação esclarecedora, com a surpreendente emergência do que o título anuncia:

 

“Começara a chover.

E a estrada a inclinar.

- É este, o desnível de que eu falava… a gente daqui chama-lhe Cova do Lagarto.” (p. 268) 

A dilação é, assim, o procedimento dominante da estratégia narrativa de uma ficção caracterizada por um ritmo acelerado, de progressiva vertigem. Técnico, político, acumulando funções de direcção institucional e governamental, Duarte Pacheco agiganta-se na paixão e na ânsia de fazer, de construir, transformando a paisagem do seu país, apesar de tudo, mesmo contra outras opiniões, às vezes generalizadas. Imparável. A não ser pela Cova do Lagarto!

A velocidade da vida da personagem contagia, potencia e legitima a do discurso que a diz (narrando e descrevendo).

Discurso sincopado pelo telegrafismo de enunciados frequentemente expurgados dos artigos definidos e dos verbos, em jeito de pinceladas rápidas, impressionistas, notas apressadas.

Discurso sincopado pela descontinuidade perceptiva. Pela transição abrupta entre o discurso do narrador e o da personagem: 

“E pediu desculpa por a escada estar meio às escuras.
-… as lâmpadas agora não valem nada. Temos duas fundidas.” (p. 33)

Pela transição do discurso de uma personagem para o de outra:

            “‘E enquanto a questão dos novos edifícios não ficar assente…’

            ‘O Lino tem de ir a Berlim!’” (p. 32) 

Pela transição do discurso ficcional para uma voz off. Eco do passado:

“…ainda te recordas do Presa mais novo?

João Castelo Branco a Duarte, Setembro de 1942.” (p. 77)

Ou fragmentos de depoimentos ou documentos, vestígios do trabalho de investigação enquadrando e centrando a ficção, mas também pontuando-a. Mas também nos instabiliza essa sistemática oscilação entre o discurso do narrador e o da personagem ou entre estas, a ponto de a vocalização narrativa se confundir com a da personagem nesse “Adiante.” que chicoteia a ficção…

Discurso sincopado também pelos imperativos “Adiante.” (p. 123, p. ex.) e “Mais depressa!” (pp. 266-267, p. ex.), golpes de chicote apressando o discurso, a vida e a ficção, ecos da voz e da consciência de Duarte Pacheco, personagem, na vocalização narrativa, marcando a aceleração até ao limite do insustentável…até à queda encenada no próprio discurso: 

“Começara a chover.

E a estrada a inclinar.

- É este, o desnível de que eu falava… a gente daqui chama-lhe Cova do Lagarto.” (p. 268)

Escorregaram os pneus do Buick. Pneus novos.

Os travões. A guinada do volante.

Alguns metros em ziguezague. E os troncos das árvores a abrirem a carroçaria do Roadmaster.

 

Duarte sentiu a dor.

Mas não compreendeu de onde surgiam as rosas-albardeiras que caíam sobre a banqueta. Cobriram o peito de Gomes de Amorim.

As suas próprias pernas.

 

***** ” (p. 268)

 Nessa imagem final, fundem-se duas: a do acidente em processo e a do caixão aberto. O espanto perceptivo de Duarte Pacheco transita da existência para esse outro plano que a excede, que está além dela, de onde observa. As “rosas-albardeiras” “que caíam sobre a banqueta” e “as suas próprias pernas” confundem vida e morte, celebram e assinalam ambas.

Na página seguinte, após cinco asteriscos encerrando a ficção, a reprodução dos Decretos em Diário da República, mantendo as manchas originais reduzidas lado a lado, ergue-os como lápides fúnebres às duas personagens acidentadas e falecidas, lápides cuja contundência apenas o eco de uma suposta conversa feminina de 2003 suaviza no registo memorialista.

Duarte Pacheco é, pois, uma figura em movimento captado in media res até à sua morte e emoldurado por ecos do passado: fragmentos de depoimentos, de textos ou de notícias, sinais desse tempo que o modelo do seu carro data na capa.

E a referência a “O ROMANCE DE DUARTE PACHECO” surge inscrita como que num foco luminoso destacando teatralmente, com a sugestão onírica do azul, a problemática do romance histórico, que equaciona mais agudamente, afinal, a da ficção em geral: a das fronteiras entre realidade e ficção. Discurso insinuando-se nas brechas da História, oferecendo-se como alternativa a ela ou usando-a como pano de fundo onde move figuras e factos cuja referencialidade dissimula a densidade ficcional.

Vertigem da figura, do discurso, da arquitectura ficcional e da nossa imaginação de leitores… em direcção a um vórtice que as “rosas-albardeiras” cobrem.

(1) Filomena Marona Beja. A Cova do Lagarto, Lisboa, Sudoeste Editora, 2007. Foi distinguido com o Grande Prémio do Romance e Novela APE/DGLB - 2008.