Na
capa, o Buick negro sobre o fragmento do mapa das estradas onde
se assinala o local cuja estranheza o título consagra em enigma que o
romance esclarecerá: A Cova do Lagarto
é o lugar onde. Lugar
do acidente, da morte da personagem, o romance e o seu fim.
Ironicamente, até: um dos projectos acalentados pela personalidade
ficcionada (Duarte Pacheco) foi o de eliminar tanto quanto possível as
lombas das estradas, uma das quais lhe foi fatal…
O
ciclo ficcional completa-se com essa súbita e ansiada informação
esclarecedora, com a surpreendente emergência do que o título anuncia:
“Começara a chover.
E a estrada a inclinar.
- É este, o desnível de que
eu falava… a gente daqui chama-lhe Cova do Lagarto.” (p. 268)
A
dilação é, assim, o procedimento dominante da estratégia narrativa de
uma ficção caracterizada por um ritmo acelerado, de progressiva
vertigem. Técnico, político, acumulando funções de direcção
institucional e governamental, Duarte Pacheco agiganta-se na paixão e na
ânsia de fazer, de construir, transformando a paisagem do seu país,
apesar de tudo, mesmo contra outras opiniões, às vezes generalizadas.
Imparável. A não ser pela Cova do Lagarto!
A
velocidade da vida da personagem contagia, potencia e legitima a do
discurso que a diz (narrando e descrevendo).
Discurso sincopado pelo telegrafismo de enunciados frequentemente
expurgados dos artigos definidos e dos verbos, em jeito de pinceladas
rápidas, impressionistas, notas apressadas.
Discurso sincopado pela descontinuidade perceptiva. Pela transição
abrupta entre o discurso do narrador e o da personagem:
“E
pediu desculpa por a escada estar meio às escuras.
-… as lâmpadas agora não valem nada. Temos duas fundidas.” (p.
33)
Pela transição do discurso de uma
personagem para o de outra:
“‘E enquanto a questão dos
novos edifícios não ficar assente…’
‘O Lino tem de ir a
Berlim!’” (p. 32)
Pela transição do discurso ficcional
para uma voz off. Eco do passado:
“…ainda te recordas do Presa mais novo?
João Castelo Branco a
Duarte, Setembro de 1942.” (p. 77)
Ou fragmentos de
depoimentos ou documentos, vestígios do trabalho de investigação
enquadrando e centrando a ficção, mas também pontuando-a. Mas também nos
instabiliza essa sistemática oscilação entre o discurso do narrador e o
da personagem ou entre estas, a ponto de a vocalização narrativa se
confundir com a da personagem nesse “Adiante.” que chicoteia a ficção…
Discurso sincopado também pelos imperativos “Adiante.” (p. 123, p. ex.)
e “Mais depressa!” (pp. 266-267, p. ex.), golpes de chicote apressando o
discurso, a vida e a ficção, ecos da voz e da consciência de Duarte
Pacheco, personagem, na vocalização narrativa, marcando a aceleração até
ao limite do insustentável…até à queda encenada no próprio discurso:
“Começara a chover.
E a estrada a inclinar.
- É este, o desnível de que
eu falava… a gente daqui chama-lhe Cova do Lagarto.” (p. 268)
Escorregaram os pneus do
Buick. Pneus novos.
Os travões. A guinada do
volante.
Alguns metros em
ziguezague. E os troncos das árvores a abrirem a carroçaria do
Roadmaster.
Duarte sentiu a dor.
Mas não compreendeu de onde
surgiam as rosas-albardeiras que caíam sobre a banqueta. Cobriram o
peito de Gomes de Amorim.
As suas próprias pernas.
***** ”
(p. 268)
Nessa imagem final, fundem-se duas: a
do acidente em processo e a do caixão aberto. O espanto
perceptivo de Duarte Pacheco transita da existência para esse outro
plano que a excede, que está além dela, de onde observa.
As “rosas-albardeiras” “que caíam sobre a banqueta” e “as suas próprias
pernas” confundem vida e morte, celebram e assinalam ambas.
Na página seguinte, após cinco asteriscos encerrando a ficção, a
reprodução dos Decretos em Diário da República, mantendo as
manchas originais reduzidas lado a lado, ergue-os como lápides fúnebres
às duas personagens acidentadas e falecidas, lápides cuja contundência
apenas o eco de uma suposta conversa feminina de 2003 suaviza no registo
memorialista.
Duarte Pacheco é, pois, uma figura em movimento captado in media res
até à sua morte e emoldurado por ecos do passado: fragmentos de
depoimentos, de textos ou de notícias, sinais desse tempo que o modelo
do seu carro data na capa.
E
a referência a “O ROMANCE DE DUARTE PACHECO” surge inscrita como que num
foco luminoso destacando teatralmente, com a sugestão onírica do azul, a
problemática do romance histórico, que equaciona mais agudamente,
afinal, a da ficção em geral: a das fronteiras entre realidade e ficção.
Discurso insinuando-se nas brechas da História, oferecendo-se como
alternativa a ela ou usando-a como pano de fundo onde move figuras e
factos cuja referencialidade dissimula a densidade ficcional.
Vertigem da figura, do discurso, da arquitectura ficcional e da nossa
imaginação de leitores… em direcção a um vórtice que as
“rosas-albardeiras” cobrem. |