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No Fundo dos Espelhos. Em Visita, de
ANNABELA RITA
Por LIBERTO CRUZ

Texto de apresentação na sessão de lançamento, na Fundação Marquês de Pombal, em Linda-a-Velha, 24 de Maio de 2007, às 18h30m.

Prosseguindo o seu itinerário pelas vias da literatura e escolhendo e utilizando com perícia diferentes espelhos e deles sabendo retirar proveito e exemplo, Annabela Rita reflecte, neste seu recente livro No Fundo dos Espelhos. Em Visita, sobre novas direcções e sonoridades, novos segredos e silêncios.

O subtítulo Em Visita, aparentemente anódino, tranquilamente discreto, solitário e quase apagado é, no fim de contas, o motor e a claridade dos quinze ensaios aqui reunidos. Mas, como é sabido, nem sempre as aparências são verdadeiras e exactas, fiéis e fidedignas. E, no caso presente, ainda bem para os utentes desta laboriosa e abrangente obra aberta. É que esta visita anunciada por Annabela Rita não é uma visita de circunstância, nem tão pouco protocolar e muito menos é feita por dever social ou esmerada cortesia. É uma visita de amor, eu diria mesmo, é uma visita de paixão, uma visita apaixonada que se torna apaixonante. Esta condição e disponibilidade dão-lhe à partida a possibilidade de poder discernir com interesse e garantir-lhe a arte (no sentido latino da palavra) de discorrer poeticamente sobre os amigos que visitou. É portanto por amor à literatura, melhor, por amor à obra literária dos outros, tornados pela leitura seus íntimos, e ainda devido aos reflexos que os diversos espelhos podem proporcionar e ofertar que a autora sai da sua própria casa em visita para entender e analisar os compartimentos de casas alheias, mas não indiferentes. Estas são com frequência susceptíveis de variadas interpretações, de continuados estudos e de abordagens díspares. Não esqueçamos que os espelhos não reflectem a cada instante a mesma imagem. Os espelhos não se repetem. Quem se repete na procura de uma conveniente imagem é quem se olha e a si próprio se procura, na esperança de outra vista encontrar. Basta que uma inclinação, que a postura ou um grau de solidez se alterem para que o reflexo denuncie a causa da sua origem. Annabela Rita conhece e sabe este evidente princípio. Convém recordar que este livro é o segundo volume de No Fundo dos EspelhosEm Visita.

Mas que procura a autora ao olhar tão atentamente e ao ver com lucidez e sensibilidade, com inteligência e sabedoria os espelhos de escritores representativos do século dezanove e dos nossos dias? Procura muito simplesmente interpretá-los, segui-los e acompanhá-los na evolução de um tema que a todos é comum: a casa. A casa com seus mistérios e fantasmas, seus risos e dores, seus lutos e alegrias, seus medos e arrojos, suas ambições e divagações, seus projectos e tesouros, enfim um mundo que se deixa desvendar e parece aguardar que o visitem e descrevam como é pressentido e captado.

Estamos assim, ao ler este livro de Annabela Rita, em visita a uma série de visitas por ela efectuadas. Visitas, repito, feitas pela consideração e pela amizade que a leitura dos autores lhe merecem. Mas perante tão judiciosa escolha somos levados a aderir, sem hesitar, à proposta que nos é feita e a aceitá-la porque os amigos dos nossos amigos nossos amigos se tornam. E estas visitas são do nosso agrado e delas comparticipamos com prazer e, como viajantes avisados, o seu percurso seguimos.

São quinze os ensaios, portanto quinze as visitas efectuadas. Uma em cada dia e de duração diferente. Escudando-se em epígrafes adequadamente escolhidas, a autora de No Fundo dos Espelhos – Em Visita parte em peregrinação para quinze visitas previamente anunciadas. Os bons anfitriões merecem que se lhes façam boas visitas. É o que Annabela Rita faz com discrição e sageza, mas sem deixar de ser firme e segura. Ora se demora apenas o tempo necessário para ver o essencial, ora a visita se prolonga para melhor a esmiuçar, para melhor poder transmitir e dar conta do que sentiu e analisou, do que ouviu e percebeu. Mas é com um certo pudor e um recato certo, mas sem inibições, que a ensaísta se aproxima e contacta os seus visitados. Estes, diga-se de passagem, têm – descobre a autora – pontos comuns e é curioso verificar como do romancista Almeida Garrett ao poeta Al Berto – embora mais de um século os distancie – há traços que, se não os assemelham, os aproximam inevitavelmente. E eis, quanto a mim, a novidade desta obra de Annabela Rita: ter conseguido encontrar pistas e testemunhos de escritores tão diversos vindos do Romantismo até ao nosso tempo e ter sabido seguir-lhes o itinerário e relatar-nos a sua evolução. Diga-se, desde já, que a sua dedução é convincente e subtil, sagaz e penetrante. Partindo da casa-museu de Almeida Garrett e passando por marcos grandiosos, como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Eça de Queirós, Vitorino Nemésio e Sofia de Mello Breyner, para chegar aos contemporâneos Urbano Tavares Rodrigues, João de Melo, Carlos Moura, Rui Nunes, Teolinda Gersão, Fernando Venâncio, José Eduardo Águalusa e Al Berto, estas visitas em viagem mencionam ainda, quando necessário, outros escritores e artistas para que o périplo seja o mais completo e abrangente possível. A tessitura advém mais conveniente e mais ajustada às intenções da autora. E é interessante acompanhar a interligação proporcionada pelos escritores acima referidos. Dir-se-ia que um invisível mas eficiente fio condutor os foi orientando e conduzindo à elaboração contínua e continuada de uma teia sem que disso se tivessem apercebido.

Todo o texto é sempre um pretexto para um outro texto? Ou os textos nascem e desenvolvem-se através dos tempos sem que os seus respectivos autores os sigam e verifiquem? Ou, afinal, todo o texto, vindo de uma matriz original, vai naturalmente evoluindo consoante a época, o talento, a condição e a cultura de quem o pratica e continua, ainda que seja alheio à sua origem? A persistência e a continuação de um tema, moldado sempre à imagem do seu autor, seria indubitavelmente um reflexo natural de quem a oficina da escrita trabalha e aperfeiçoa. A evolução detectada só é no entanto possível, graças a quem visite, com afinco e perspicácia, essa tão, por vezes, emaranhada textura. Em boa verdade não se trata de separar o trigo do joio. Trata-se de encontrar e avaliar o peso de cada um e estudar de que forma se completam ou se separam na diversidade. Fazer emergir a unidade é a via acertada, o itinerário recomendado, o percurso infalível. Tão espinhosa tarefa não é fácil, porque requer argúcia e bom senso e uma fuga serena e decidida. Parafraseando o pintor Picasso, direi que não basta procurar é preciso saber encontrar. E, uma vez encontrada a fieira, é urgente desbastá-la, apreciá-la, confrontá-la e arriscar uma opinião, um conceito, uma certeza, uma evidência. E saber prová-las com a linguagem apropriada e segura, numa voz subtil, sem retraimento, equilibrada e inequívoca. Não se trata de comparar textos ou indicar caminhos seguidos, trata-se de coordená-los, de enfrentá-los e de discernir sobre a sua essência, a sua razão de ser, o seu modo de actuar, a origem e razão do seu discurso. Uma vez descoberto, é preciso munir-se do tom e do som para a clareza da sua compreensão e para que o leitor alcance e usufrua do mecanismo e da factura postos ao seu serviço. Para que o leitor possa, terminada a visita, e de acordo com a recomendação da autora, dissolver-se “ na voz anelante do silêncio a que, por fim, se abandona…” . Mas este abandono é somente um intervalo, um merecido repouso, uma serena reflexão para um justo entendimento do que foi visto e ouvido. A casa, com seus meandros e recônditos, suas salas e dependências, esconde ou revela intenções claras ou obscuras, desejos sãos ou intempestivos, especulações doentias ou ambiciosas, projectos absurdos ou lineares. O arquitecto literário de cada recinto projecta-se meticulosamente no próprio desenho que descreve ou assinala, que inventa ou prevê, que encontra ou ratifica. E as personagens que a casa habitam ou por ela passam, também em visita, vão preenchendo o vazio, destruindo o ambiente, animando o clima interno ou simplesmente refugiando-se no silêncio ou na balbúrdia. A casa passa a ser o filho pródigo que vai ao encontro e à procura do passado das suas personagens, que ela por inadvertência amoleceu ou moldou, destruiu ou criou, acarinhou ou esqueceu, fortaleceu ou debilitou. A casa com seus contornos ou objectos, seus afectos e desamores vai pouco a pouco modelando os seres e atribuindo-lhes regras para o convívio interno e exterior. E qualquer visita à casa poderá sempre esconder uma outra visita, porque nenhuma visita é a visita ideal. Qualquer visita é um perene desafio, um aparato repetido para futuras visitas e futuras intervenções. Disto se apercebeu com delicadeza e limpidez Annabela Rita.

Terminada a leitura de No Fundo dos Espelhos – EmVisita, sente-se que a sua autora, uma impenitente visitante, há-de continuar a sua visitação estética numa aturada procura da compreensão do fenómeno literário. E há-de regressar, talvez, a visitas já feitas e descritas. De qualquer forma, as que neste segundo volume de No Fundo dos Espelhos – Em Visita nos foram apontadas, não só nos satisfazem plenamente, como nos incitam a aguardar com vontade a relação de outras continuadas ou novas e atraentes visitas.

Muito Obrigado,

Liberto Cruz

Lisboa, 23 de Maio de 2007