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DA LITERATURA
com
ANNABELA RITA

“O Silêncio” de Sophia:
diário de leitura

Continuo, com esta leitura de “O Silêncio” (1966)[1], de Sophia, o mesmo movimento de sucessivas travessias do mesmo território, recompondo e desdobrando um itinerário percorrido em aulas e em textos[2].

Um conto potenciando e conciliando seis etapas e seis hipóteses interpretativas/analíticas, articuladas por uma progressiva esteticização e pela polissemia e conjugação de certos motivos (noite, prisão, muro, grito, silêncio). Uma viagem sobre outras, depois delas (dispensando a observação do pormenor já analisado nessa experiência anterior), apenas evidenciando o raciocínio que conduz de uma hipótese interpretativa/analítica à seguinte através de elementos textuais que promovem esse trânsito: do nível mais literal à memória que lhe subjaz.

Primeiro dia

A primeira impressão da leitura do conto é a de que nele se narra um episódio da vida de Joana

  Narrativa fortemente informada de descrição, o conto “O Silêncio” (1966)[3], de Sophia de Mello Breyner Andresen, parece sintetizar e exprimir a vida de uma personagem, Joana, através de um quotidiano dominado pela rotina das suas tarefas domésticas.

Tripartido, nele se sucedem três momentos completamente diversos: o das tarefas domésticas de Joana, o do “grito” que a perturba e o do silêncio subsequente. Momentos com enquadramentos que conferem ciclicidade ao texto: o da interioridade da casa, o da exterioridade da rua observada da janela e, de novo, o da interioridade doméstica da casa.

“O silêncio” anunciado pelo título atravessa e modula todo o universo diegético, vivendo a metamorfose que o conduz da tranquilidade, passando pela estranheza da limpeza obsessiva de Joana, à inquietação “atenta” (primeiro momento ficcional), ao contraste contrapontístico com “o grito” (segundo momento) e, deste, à sua manifestação “opaco e sinistro” (p.54). Protagonista metamórfico, acaba por se tornar equivalente do universo ficcional e da escrita em que este se gera, insinuando-se como instância em que se projecta e se duplica o sujeito de escrita no seu trabalho de elaboração estética, arquitectónica, escultórica, plástica, enfim:

“O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.” (p. 48, sublinhados meus)

Animizado, protagonista e autoral, esteticizante, o silêncio emoldura, com a litera que o descreve, o pictórico que nela vai inscrevendo.  O “estremecimento profundo” denuncia a progressão do encontro entre os discursos, os imaginários: o do conto e o do quadro, o de Sophia e o de Munch.

O discurso cria, retoricamente, a moldura para o narrativo, investindo esse mesmo silêncio de uma transformação preparatória:

“O silêncio era agora maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alimentasse todas as suas pétalas” (p. 49)

E vai dirigindo a minha atenção e a de toda a realidade ficcional para um acontecimento que, a um tempo, anuncia, protela e centra:

      “As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça procurava o centro dessa atenção.” (p.49)

            Até que acontece “o grito”, também ele central, metamórfico (“Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.”, p.51), e colocado em perspectiva pelo olhar de Joana através da “janela”, triplamente emoldurado, portanto: pelo silêncio, pela janela e pelo campo visual de Joana.

Depois, regressa “o silêncio”, “opaco e sinistro”, enquadrando uma personagem igualmente  transformada pelo acontecimento:

            “Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

            E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.” (p. 55) 

 

Segundo dia

A semelhança entre a ficção e a realidade portuguesa datada pelo e no texto (1966) e os motivos emblemáticos da repressão
(prisão, muro, rua, noite, silêncio, do grito reprimido ao uivo, etc.)
insinuam a suspeita de uma outra dimensão semântica:
a da denúncia do status quo de Portugal anterior
ao do 25 de Abril de 1974

A data de escrita do conto, 1966, e a coincidência entre o esquema accional e o quotidiano da sociedade portuguesa de então, marcado pela repressão política sensibilizam-me a outra dimensão significativa do conto: a de denúncia dessa situação, com a crítica ao poder e a expressão da angústia da comunidade. A Ética subsumindo-se na Estética, como o proclamava Sophia, interventiva…

 

Terceiro dia

A emblematicidade simbólica dos motivos da repressão
(prisão, muro, rua, noite, silêncio, do grito reprimido ao uivo, etc.)
insinuam a suspeita de uma dimensão universal, parabólica:
a da denúncia da repressão política
em qualquer sociedade,
em qualquer tempo

    

 

            No entanto, os motivos da repressão têm uma referencialidade indefinida: prisão, muro, rua, noite, silêncio, grito, etc. dizem-nos de uma cidade nunca identificada. Essa indefinição confere à sua simbólica universalidade: o episódio encena, em jeito de parábola, uma hipótese existencial[4] de qualquer sociedade, em qualquer tempo, em qualquer lugar…

 

 

Quarto dia

Além disso, o simbolismo da estrutura tripartida e contrastiva do conto

insinuam a suspeita de um outro nível de significação ainda:

o de que o episódio da vida de Joana evidencie

 um conhecimento do universo

e um itinerário para aceder a ele.

 

 

Um episódio da vida de Joana como símbolo de um conhecimento do universo e itinerário para aceder a ele.

A dimensão simbólica do episódio sugere-o como representação de um itinerário de perda da inocência na compreensão/percepção da vida: da convicção do paraíso existencial  à de consciência de que a vida  integra o sofrimento e a morte. Conhecimento protagonizado emblematicamente pelo anjo da Melancholia I (1514) de Dürer, sofrimento expresso nesses pathos que a Arte tem simbolizado diversamente na linhagem [5] das Pietàs (de Miguel Ângelo, 1499, e tantos outros), dos Lamentos, dos Requiems, dos memento mori (vanitas, danças macabras, naturezas mortas, etc.), dentre outras.

E, nessa Joana que, após o regresso do silêncio, mas “opaco e sinistro”, “atravess[a] como estrangeira a sua casa” (p. 55), evocando a problemática existencialista equacionada por Albert Camus (L’Étranger, 1942) e tantos outros, creio reconhecer-me também a mim, leitora, a reler agora o texto, a reinterpretá-lo em função do que evoquei…

 

Quinto dia

O reconhecimento da quase coincidência entre a descrição do grito ficcional (conto de Sophia) e

a do que está na origem do pictórico (quadro de Munch) impõe a relação interdiscursiva de um com o outro, mas também convoca toda uma linhagem estética a que aquele deu origem

       A meio da estrutura ficcional de “O Silêncio”, de Sophia, o seu centro nevrálgico[6], abre-se “uma fenda” na unidade do universo para e evocação intertextual:  “o grito” (atente-se no artigo definido precedendo esta primeira ocorrência do substantivo), “um longo grito agudo, desmedido” (p. 51)  e  “o rosto torcido e desfigurado” (p. 52) da mulher lembram irresistivelmente os seus correspondentes pictóricos[7]  d’ “O grito” (1893), de Edvard Munch[8].  O discurso literário convoca outro, o pictórico, cuja alteridade faz reconhecer no seu “tecido”, mesmo quando o assimila. Isto, mesmo quando o evocado é substancialmente modificado, como acontece neste caso (em vez da ponte, da figura solitária e do rio, p. ex., passamos a ter a rua, o par e a cidade), e desde que o reconhecimento seja possível. Porque ela “gritava como se quisesse atingir um ausente” e “acordar um adormecido” (p. 54), como que desejando abalar-me a ponto de estimular em mim a memória obrigando-me a recordar O Grito (1893), de E. Munch.

            Colocado, assim, em perspectiva, o quadro de Munch deixa de ser um simples objecto para se tornar acontecimento (até pela deformação dessa imagem original), captando muito mais eficazmente a minha atenção, pois “a dinâmica é a própria essência da experiência perceptiva”[9]. Desse modo, o conto afirma uma relação cognoscente e estético-cultural com o quadro e, mais ainda, denuncia essa relação como uma força exercida no seu próprio desenvolvimento. 

Em perspectiva, também adquire monumentalidade, insinuando a homenagem ou a inscrição na linhagem estético-cultural da modernidade: agónica, depressiva, decadente. Linhagem que encontra emblemáticas figurações n’ O Grito (c. 1898) de Rodin ou n’ A Mulher a chorar (1937, múltiplas versões), de Picasso, que nela ensaiou diferentes estudos para uma das figuras do seu Guernica (1937). 

 

Sexto dia

O reconhecimento, no conto, da centralidade de um dos motivos, imagem nuclear na História de Arte Ocidental (a janela), na maiusculação da Arte, faz-me pensar que também será possível encará-lo como uma espécie de lugar onde se inscreve

esse padrão estético: a perspectiva

 A meio da estrutura de “O Silêncio”, o seu motivo e centro nevrálgico abre “uma fenda” na unidade do universo, mas também nesse universo da unidade que constitui o próprio texto, factor que é de evocação intertextual: 

“Foi então que se ouviu o grito.” (p. 51)

“Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.” (p.51)

“o rosto torcido e desfigurado [da mulher]” (p. 52) 

 

          A “fenda” parece tornar-se também metáfora do procedimento citacional, pelo qual um discurso convoca outro (abre-se-lhe, cria espaço para ele) cuja alteridade faz reconhecer no seu ‘tecido’. Isto, mesmo quando o evocado é substancialmente modificado, como acontece neste caso (em vez da ponte, da figura solitária e do rio, p. ex., passamos a ter a rua, o par e a cidade), e desde que o reconhecimento seja possível.

            Em suma, o discurso dirige o meu olhar, simulando acompanhar a observação da personagem Joana, que institui como ponto de vista organizador da experiência perceptiva, responsável por destacar e hierarquizar o perceptível em função do par “figura” e “fundo” (portanto, de criar o seu próprio objecto representando-o como uma parte de uma suposta realidade), oferecendo-mo, emoldurando-mo

            Criada a moldura e multiplicada por níveis perceptivos (da janela, do olhar, da escuta e do discurso em que todos estes se vertem), a arquitectura ficcional coloca em perspectiva o objecto “grito”, distribuindo por esses níveis de intelecção diferentes hipóteses interpretativas, distinguindo-as e demonstrando como as sobrepõe: as que estamos a perscrutar e outras que não nos ocorrem...

            Em suma, o conto encena, na estrutura efabulativa, a equivalência processual entre citação e perspectiva: abertura, recorte, selecção, convocação e integração. Ut pictura poesis

 

Então:

Eis-me a expandir a ideia da museologia de uma memória íntima deste conto à da imbrincação de uma interdiscursividade textual numa intermedialidade estética ocidental.

 

Neste texto, como no objecto artístico, em geral, certos momentos textuais insinuam e/ou sublinham imagens que me fazem evocar também outros autores e discursos estéticos, reconhecer outra memória, que excede a obra lida e a do próprio autor, mas que a esclarece e lhe confere maior densidade. Memória textual em que semi-coincidem, sobreimprimindo-se, a autoral, a(s) do(s) leitor(es) efectivo(s) e potencial(is)…

Notas

[1]  Sophia de Mello Breyner Andresen. “O Silêncio” (1966) in  Histórias da Terra e do Mar, 7ª ed., Lisboa, Texto Editora, 1994, pp. 45/55.

[2] Dispersos e diversos, esses ensaios estão sintetizados no capítulo ”Munch, Sophia e Rui Nunes: quando o grito ecoa” do volume II de No Fundo dos Espelhos. Em visita, Porto, Edições Caixotim, pp. 209-242. Originalmente, os ensaios foram: Annabela Rita. “Quando o grito ecoa no silêncio”, Românica (8), Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1999, pp. 131/142 (também em separata); “Entre o grito e o silêncio, em exaltação e espanto de Sophia de Mello Breyner. De Sophia a Rui Nunes”, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher (nº11), Lisboa, Centro de Estudos sobre a Mulher, 2004, pp. 89/104. 

[3]  Sophia de Mello Breyner Andresen. “O Silêncio” (1966) in Histórias da Terra e do Mar, 7ª ed., Lisboa, Texto Editora, 1994, pp. 45/55.

[4]   Milan Kundera, n’ A Arte do Romance, distingue o romancista do historiador, dizendo que ele “não examina a realidade, mas sim a existência”, acrescentando:

“E a existência não é o que se passou, a existência é o campo das possibilidades humanas /.../. Os romancistas elaboram o mapa da existência ao descobrir esta ou aquela possibilidade humana. Mas /.../: existir significa: ‘estar-no-mundo’. É preciso, portanto, compreender quer a personagem quer o seu mundo como possibilidades.”

”Um romancista não é nem um historiador nem um profeta: é um explorador da existência.”

(A Arte do Romance, Lisboa, Dom Quixote, 1988, pp. 58 e 60).

[5]  T. S. Eliot. Ensaios de Doutrina Crítica (com pref., selecção e notas de J. Monteiro-Grillo), Lisboa, Guimarães Editores,1962; “A tradição e o talento individual”, pp. 19/32.

[6]   Sobre a pregnância semântica do centro, cf. Rudolf Arnheim. O Poder do Centro, Lisboa, Edições 70, 1990.

[7]   É quase irresistível a evocação de uma passagem do diário de Munch que faz lembrar a cena do quadro de 1893, do qual existem múltiplas versões:

“Eu estava a passear cá fora com dois amigos e o Sol começava a pôr-se - de repente o céu ficou vermelho, cor de sangue -. Eu parei, sentia-me exausto a apoiei-me a uma cerca - havia sangue e línguas de fogo por cima do fiorde azul-escuro e da cidade - os meus amigos continuaram a andar e eu ali fiquei, em pé, a tremer de medo - e senti um grito infindável a atravessar a Natureza.” (cit. por Ulrich Bischoff. Munch, Lisboa, Taschen, s.d., p. 53, sublinhados meus)

As descrições de Sophia e de Munch assemelham-se de modo incontornável: “Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.” (p.51) faz ecoar “um grito infindável a atravessar a Natureza”.

[8]   Referir-me-ei ao quadro de 1893, do qual existem múltiplas versões.

[9]  Rudolf Arnheim. Arte & Percepção Visual. Uma Psicologia da Visão Criadora, 2ª ed., S. Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1984, p. 409. Cf. também sobre este assunto pp. 363/400.

Annabela Rita (n. 1958). Doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Letras é professora. Integrou a MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha (2003-04) e, actualmente, é Conselheira para a Igualdade de Oportunidades do MCTES. Directora do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa, investigadora do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira (Universidade Católica Portuguesa) da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, coordenadora de um projecto do Centro de Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro da Direcção da Associação Portuguesa de Tradutores, do P.E.N. Clube Português, da Associação Portuguesa de Críticos Literários, etc., além de integrar os Conselhos Consultivos da Fundação Marquês de Pombal e do Instituto de Cultura Europeia e Atlântica, tem colaboração ensaística dispersa em periódicos e obras colectivas da especialidade em Portugal e no estrangeiro. As suas principais publicações: Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998; No Fundo dos Espelhos. Incursões na Cena Literária (vol. I), Porto, Edições Caixotim, 2003; Labirinto Sensível (em co-autoria com Casimiro de Brito), Lisboa, Roma Editora, 2003; Breves & Longas no País das Maravilhas, Lisboa, Roma Editora, 2004; O Mito do Marquês de Pombal (em co-autoria com José Eduardo Franco), Lisboa, Prefácio, 2004; Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2005 (a sair); No Fundo dos Espelhos. Em Visita, Porto, Edições Caixotim, 2005 (a sair). Tem a direcção de três colecções literárias: “Obras de Almeida Garrett” (Edições Caixotim), “Faces de Vénus” e “Faces de Penélope” (Roma Editora).