Talvez. De facto, a memória é a matéria e
o processo declarados de elaboração d’ O Retábulo de Genebra (2008), de
Sérgio Luís de Carvalho, na abertura romanesca, mas também
conclusivamente, depois de regressar em jeito obsessivo, numa travessia
do texto e do tempo, pontuando-o de retomadas com variação, religando
cenas:
“E porque a memória é uma coisa muito estranha à qual basta, por vezes,
um som só ao longe escutado, um esgar na distância desvendado, um
vislumbre, uma cor ou um sentimento, eis que num instante a memória de
novo se lhe revela, de novo lhe surgindo a voz de Gervasius há muitos
anos quando, numa das primeiras aulas que lhe dera, o levara à catedral
de S. Pedro e lhe apontara o retábulo, dizendo:
‘É Genebra.’” (p. 358)
De pintor em pintor, de pintura em pintura, de imagem em imagem, de
facto em facto, a memória conduz, entretece e cerze com a sua teia a
ficção de um quadro, oferecendo-nos o quadro de uma ficção. Em vertigem.
Em mise-en-abîme.
Emoldurado por uma arquitectura cíclica, que conduz da “Turba” à “Turba
(II)” (multidão anónima) e, nesta, do olhar de Albert (pseudo-nomeado
desse anonimato), após mais de trezentas páginas através de quase um
século europeu (sécs. XV e XVI), ao mesmo olhar maravilhadamente fixado
na composição: “A pesca milagrosa” (1444), de Konrad Witz. Lembrando o
emaravilhamento dos antigos viajantes face a um mundo novo e
insuspeitado, desvendado…
Dentro dessa arquitectura, em camadas
sobrepostas, as idades do homem e da sua obra: da progenitura biológica
e artística (Hans Witz, pai e primeiro mestre, e Jan van Eyck, o mestre)
ao ‘sucessor’ artístico (Albert) que deles ouviu falar e os reencontra
através do quadro e da rememoração. Entre ambos, a história de uma vida
lutando contra a lei da morte na construção de um monumento a si, que
vença a fantasmática e temida mulher “da gadanha” na sua dança macabra:
a arte ultrapassando, assim, a morte. Morte anunciada, vida conquistada
em registo diário, diarístico: cada pincelada sobreimprime o discurso
bíblico e o estético, o progresso da doença e do quadro, do ensino e da
aprendizagem, enfim, o visual, o mnésico e o efabulatório. Como o
“mestre” e o “aprendiz”, com eles, o discurso mistura os pigmentos, os
materiais, os óleos, compondo a hipótese ficcional da pintura e da
salvação daquele quadro onde real (Genebra e lago Léman) e imaginário
(Bíblia e lago Tiberíades) se combinam, oscilando entre a “mancha rubra"
(p. 27), da tinta e do sangue tuberculino, e o brilho especular, mas
também vítreo, do lago gelado, dos olhares fascinados e das memórias.
Emergindo diariamente da percepção e da
imaginação do pintor e do trabalho do pincel, mas também da memória que
os informa, “A pesca milagrosa” impõe-se-nos no e pelo triunfo da sua
novidade estética dentre os painéis que restam (as asas e as suas
composições) do políptico de Konrad Witz: Genebra no séc. XV, observada
da margem direita do lago Léman como paisagem de fundo da cena que evoca
Cristo no Novo Testamento . Triunfo previsto, anunciado, e, depois,
encenado no acto da apresentação pública da obra: no altar-mor da
catedral de S. Pedro, na asa esquerda do políptico dedicado a S. Pedro,
encerrando o retábulo, ela reúne, milagrosamente, “todos como um só”,
“uma só cidade, vários bairros e ruas irmanadas como uma mão cerrada em
punho cujos dedos formam força” (p. 341). E apeteceria dizer que será
salvo, depois, por ‘um como todos’, em icónico, mas dissimulado triunfo,
pois as simetrias e as assimetrias compõem estruturalmente este romance,
como a própria composição pictórica, com S. Pedro duplicado, no barco e
na margem, em inclinação assimétrica…
Milagre de Arte que exibe numa só imagem,
fusional, de outroragora, a representação do real presente (depois e
agora, também, passado e ausente) e do mítico bíblico, convocando tempo
e imaginário para fazer reconhecer outra perspéctica na espacial, uma em
que a alteridade estética igualmente se alinhe para nós , consagrando a
quase contemporaneidade da emergência da paisagem, do retrato e, até, do
auto-retrato: São Lucas Pintando a Virgem (1450), de Roger van der
Weyden, e A Virgem do Chanceler Rolim (1434-36), de Jan van Eyck.
Inscrevendo-se este retábulo numa sequência do tratamento do mesmo tema
por Duccio di Buoninsegna (O aparecimento de Cristo no Lago Tiberíades,
1308-11), Rafael (A pesca milagrosa, no desenho de c.1513-1514 e na
tapeçaria de 1517-19), Jacopo Bassano (1545), Joachim Beuckelaer (1563),
Rubens (1618-19), etc.. Evocando, ainda, Os esponsais dos Arnolfini
(1434), de Jan van Eyck, no interior doméstico, reflectindo o casal por
trás no espelho convexo (mise en abyme), representando-se o autor em
miniatura como pintor e assinando em latim como testemunha (“JOHANNES DE
EYCK FUIT HIC 1434”, “Jan van Eyck esteve presente 1434”), à semelhança
do que faz Konrad Witz.
Milagre de Arte, que expande por um século
e mais de trezentas páginas o instante do encontro do quadro por um
ficcionado pintor protestante convulsionado pelo movimento emocional da
multidão.
Milagre de Arte, que compacta numa “mancha
rubra” a equivalência entre Cristo representado e aquele que o pinta (em
via crucis pela religião da Arte), entre ponto focal e ponto de fuga,
contaminando a bidimensionalidade da Pintura, com o Mito e a História,
complexificando-a com a convergência dessas duas dimensões culturais, a
atemporal e a temporal. “Rubro” que sobreimprime sagrado e profano e que
sinaliza os correspondentes evangelhos das mortes anunciadas. “Rubro” do
cinábrio, o sulfureto de Mercúrio ou vermilion, que insinua, desde logo,
aquilo que a medicina confirma: os efeitos negativos, de envenenamento,
na saúde de quem o manipula. Etimologicamente, hesita entre a origem
grega (designando diferentes substâncias) e a persa (zinjifrah,
"perdido"), sinalizando esta última o próprio esquecimento inerente à
memória. E, por isso, também lembra o outro políptico de Konrad Witz, o
Espelho da Salvação (c. 1435), para o altar da catedral de Basileia, e,
com ele, a velha tradição da Arte de Bem Morrer que domina a cultura
europeia da Idade Média, a obsessão de conquistar a salvação na hora do
trespasse. Assim sendo, no vórtice da memória, da imaginação, da pintura
(objecto e processo) e do texto (escrita e discurso), está a substância
que vai absorvendo o universo ficcional, decantando-o, qual buraco negro
por onde a matéria se transforma noutra coisa: a vida, na morte ou… o
discurso, na sua leitura… No âmago, pois, a alquimia de uma
transformação de que a Arte, a Ciência, o Mito e a Religião, enfim, a
Cultura, em geral, nas suas diferentes modalidades, procuram
aproximar-se: a “mancha rubra” indiciando a dimensão misteriosa e
enigmática de todas as modalidades do saber, do fazer e do ser…
Essa imagem apresentacional do políptico
(pelo pintor na catedral) que “todos como um só apontam” lembra-me outra
que sinaliza apoteoticamente a ocorrência milagrosa, o reconhecimento
surpreso: a experiência de súbita visualização pela criança aterrada da
Transfiguração (1518-20) de Raphael, onde o rapaz epiléptico se
confronta com essa surpreendente figura de Cristo transfigurado
(episódio do milagre do rapaz possesso) . Esta composição constitui uma
espécie de alegoria simbólica da transfiguração em que se configura e
gera a própria imagem estética: a criança é quem vê e faz ver a imagem
transcendente, o poder dessa imagem em apoteótica metamorfose, na
pintura como na narrativa bíblica.
Na ficção de Sérgio Luís de Carvalho, o
olhar do moço coxo Gex (simbólico e representativo, emblematicamente, de
uma outra localidade, mas também do povo, na miséria da sua existência),
vai-se modificando, esteticizando, alongando no tempo o emaravilhamento
que se poderia exprimir na pontualidade súbita do espanto do seu
homólogo rafaelino. No olhar de cada uma das crianças, a temporalidade
corresponde à da ocorrência da surpresa e codifica-a para nós. Através
do olhar infantil, o milagre da epifania estética e religiosa (porque a
aparição de Cristo e do Retábulo é que importam em qualquer dos
episódios, pela sua capacidade de se constituirem como demonstrações ou
provas das suas po(i)éticas.
A originalidade estética garante, pois, a
sobrevivência do quadro aos acidentes da História (convulsões políticas,
religiosas e existenciais) sob a protecção da Arte (um pintor que
partilha com ela a inicial onomástica) e do seu autor, inscrito na
assinatura “HOC OPUS PINXIT MAGISTER CONRADUS SAPIENTIS DE BASILEIA
1444”. Como o mestre explica ao discípulo:
“Significa que este quadro foi pintado pelo mestre Konrad, de Basileia,
no ano de 1444. A nossa voz, disseram-me uma vez, também deve ficar
gravada na madeira” (p. 329).
E a voz do seu mestre ecoa na sua, saindo da moldura de um espelho:
“JOHANNES DE EYCK FUIT HIC 1434” (“Jan van Eyck esteve presente 1434”).
Em “Nota Final”, na sequência da “Nota
Prévia”, a voz de outro mestre, de escrita romanesca, Sérgio Luís de
Carvalho, faz-se ouvir também, inscrevendo-o, por sua vez, a ele na
moldura exterior da composição discursiva, conferindo-lhe acrescida
ficcionalidade:
“Todas as personagens relevantes deste romance são reais, excepto Gex,
Hemmerli, Bárbara, Albert e Gervasius.” (p. 361)
Ora, é sob o olhar desse Albert imaginário, apenas emblematicamente
identificado pela inicial da Arte maiusculado como ela que penetramos na
ficção da verdade hipotética:
“/…/ e os seus olhos fincam-se ainda mais, com mais vigor:
(A memória é, decerto, uma coisa muito estranha.)
A mancha grande que desde logo o maravilha surge plena e triunfante aos
seus olhos, que de todo já domaram a penumbra. Uma mancha rubra, à volta
é verde, azul mais acima, umas nuvens, uma torre à direita, casas, a
barca tem seis homens que estão pescando, um há que se atira ao lago, é
igual ao outro que ainda está no barco, vai-se a ver é S. Pedro que
surge duas vezes novamente.
E a mancha rubra logo à frente é Cristo, sim, é Cristo, Albert lembra-se
devagar, mas com firmeza. A lembrança é ainda fugaz, vai e vem como uma
rapariga que se esquiva;
‘…vestiu a túnica, pois estava nu, e entrou no mar.’
/…/
Um retábulo. Aquele conjunto ali desvendado à sua frente é isso mesmo.
Sim, um retábulo. Albert recorda, em esforço, um retábulo, os três
quadros colocados abertos algures /…/.
/…/
E a frase que não se esvai da sua mente…
De todos, é aquele derradeiro, o da face externa do lado esquerdo, o que
mais cativa o seu olhar: Cristo, a barca com os pescadores, Pedro que se
atira para as águas.” (p. 27)
E é graças a esse reconhecimento do ficcionado Albert que o quadro se
salva miraculosamente das lutas entre católicos e protestantes de
Genebra, em 1535, escondido por ele aquando da invasão da catedral de S.
Pedro para a destruição de imagens e ícones. Ícone poupado, excepção
enigmática apelando a e potenciando outro monumento, no caso, literário,
supostamente explicativo, homenagem de uma arte a outra naquilo que mais
as distingue e irmana: a inovação. Hipótese ficcional que vamos vendo
projectada no olhar tão imaginado e metamórfico de um Gex,
rapaz-cidade-aprendiz-pintor, quiçá...
Seguindo a
tradição dos polípticos, que historiam, em séries de cenas, grandes
angulares históricas ou religiosas, o d’“A pesca miraculosa” tem uma
dimensão identitária no plano estético: de reflexão da arte sobre ela
mesma e a sua relação com a realidade. E O Retábulo de Genebra (2008),
de Sérgio Luís de Carvalho, faz o mesmo, compactando, em série
fragmentada e mnesicamente justificada, um século europeu, o quadro e a
sua história, a autor e a sua biografia, sagrado e profano, relacionando
as artes, mas também insinuando as efabulações e evidenciando as
omissões em cada um deles (os painéis centrais do políptico, a outra
Europa, nacional e temporal, a vida do pintor), o desconhecimento maior
do que o conhecimento, o romance histórico gerado nesses vazios
estimulantes…
“E a frase”:
“ANNABELA RITA FUIT HIC 2008” |