A marca.
Texto. Poema, narrativa, drama, pintura, desenho. Mas também fóssil. E
objecto arqueológico.
No início, era…
… e dele ficaram vestígios. Sintetizações. Consagradas em título:
Sintetizações poéticas (1999).
Primeiro, por resultarem de um processo de formação, maturação e
confluências, essas sintetizações são cristais onde o movimento se
congela numa forma definitiva. Como Velázquez procurou fazer ao seu
gesto, dotando-o de mistério: em As Meninas (1656), representando a
hesitação da pincelada em pleno acto criativo, rodeado da evocação
espectral das obras de Rubens, Jordaens e Martinez del Maso, observado
por olhares reais inscritos e emoldurados, compondo uma cena de tal modo
reflexiva e estruturalmente enigmática que mereceu o célebre comentário
de Luca Giordano “Questa è una teologia de la pittura.”
Para Miguel Barbosa, o quadro e o poema, como a pegada de dinossáurio,
um fóssil ou… são objectos informados da história da sua gestação e da
História em que ela se inscreveu. História(s) implicada(s),
implicitada(s), que lhes confere(m) uma dimensão oculta, um para além do
visível, incontornável, desafiador e sedutor: a Arte. Em simultâneo,
feita de presença e de ausência. Ausência evocadora e convocadora: tanto
mais intensamente marcada, quanto mais polifónica, plena de ecos da sua
anterioridade e da sua contemporaneidade, mas também de projecções em
hipotético futuro. Presença, consequentemente, feita de opacidade e de
transparência, densa, volumétrica, indicadora desse além difuso, velado.
Signo-sinal. Dramático, agónico e especular: habitado de memória, de
museologia e de sonho, seus e da alteridade. Narciso, Eco e Ofélia.
Fazendo, por isso e assim, equivaler Arte e Vida. E, do mesmo modo,
reivindicando uma na outra, numa reversibilidade e permutabilidade
estranhecedoras de ambas.
Em segundo lugar, essas sintetizações constituem gestos relacionais,
relacionam discursos, práticas, artes. Metonímias. Como Miguel Barbosa
afirma num poema entre pinturas:
“Há sempre um poeta perdido
na chama da sombra insondável da cor”
É o caso da poesia revelando a vida ou a ficção geradas na pintura:
“Aquela borboleta
vermelha
saída de uma flor
da tela
que levou da tua paleta
a cor
/…/” (SP, p. 96)
Ou a pintura, cujo grafismo abstracto, assemelhando-se à caligrafia, se
designa como “A palavra” . Ou a outra que, entre paralelismos e
redundâncias, em si sublinha a potencialidade ficcional, intitulando-se
“A fábula” (SP, p. 222), referência à sua construção ou à sua leitura.
Mas também é o caso da pintura reflexiva que conta a história da sua
génese num título que a sintetiza: “O gesto” (SP, p. 226). Ou daquela
que reúne a duplicidade, abstracção e episódio de infância: a mancha
ilegível de pinceladas paralelas e desiguais e o título “Conta-me
histórias mãe” (SP, p. 229). Ou, ainda, a que metonimiza música, cor,
palavra e memória das três: “Sinfonia em azul” (ASPMB, p. 118). Evocando
a confluência tonal da pintura e da música, na sequência de experiências
como The White Girl (Symphony in White No. 1, 1863, e as outras da
série), de James Abbott Mcneill Whistler, ou as representações da
catedral de Rouen de Monet (subintituladas harmonia azul ou harmonia
azul e oiro), ou Ophelia – Opera in blue (1982-83), de Sergei Dreznin,
com o texto de Shakespeare, ou, ainda, Rhapsody in blue (1924) de
Gershwin, para não mencionar mais.
E não esqueçamos a peça arqueológica, vestígio de uma época, testemunho
de uma vida transmitido a outra, desconhecidas uma da outra, ponte que o
tempo habilmente inscreve no espaço cristalizando a intersecção entre a
História pública e a privada. Peça convivendo com tantas outras em
colecções longa e apaixonadamente reunidas num abraço ansiando captar o
mundo, deslizando, após cada exaltação de descoberta e posse, para o
deceptivo sentimento de impossibilidade da plenitude afectiva. A paixão,
por vezes, roça uma dimensão religiosa, aquela que lhe dita a etimologia
(re-ligare)...
E essas peças inscrevem Miguel Barbosa na grande tradição do
coleccionismo implicada na história da museologia, justificando o museu
que a Câmara de Sintra lhe dedicou. História que começa dividida entre a
versão mais institucional das colecções e tesouros religiosos em capelas
e o studiolo, lugar de reflexão dedicado à identidade e à alteridade
culturais, sob a tutela das musas e dos deuses, acolhendo desde a arte
às cartas geográficas, passando por manuscritos e objectos exóticos (a
famosa grotta de Isabelle d’Este, com mais de 1600 peças, é um excelente
exemplo). História que continua, nos sécs. XVI e XVII, com os
fascinantes “cabinets de curiosités” ou de “merveilles”, lugares de
imóveis viagens, desejaram-se espelhos do mundo, à semelhança da velha e
clássica literatura de viagens que se intitula como tal, lugares onde o
sagrado (relíquias de santos), o lendário (o corno do unicórnio, p.
ex.), o exótico (do Novo Mundo) e o remoto (da Antiguidade Clássica)
coexistiam em harmonia, sobrelotando divisões e armários-expositores com
gavetas encenando o grande continente que é o mundo. Uma cultura da
curiosidade privatizando o universal através de operações intelectivas
que a Retórica explica (a selecção, a miniaturização, a sinédoque, a
representação e o símbolo). História que, nos sécs. XVIII e XIX, sob o
impacto do racionalismo enciclopedista, vê o privado ceder ao público e
ao comunitário, o heterogéneo dar lugar ao especializado e o fantástico,
ao representativo, oferecendo-se em museus que se multiplicam até hoje
combinando arte e ciência, paixão e disciplina, intuição e saber . Como
o dedicado a Miguel Barbosa.
Gesto sonhado no vestígio de outrora que assim prolonga entre pintura e
caligrafia, emergindo do negro e derramando-se na cor, gerando peças de
diversas museologias. Tudo pegadas que a vida (humana, animal, vegetal,
mineral) foi deixando para memória futura, construindo a sua cripta e
potenciando nela o seu despertar sob o beijo de alguém por vir, à
semelhança da Bela Adormecida dos nossos sonhos…
*
Como um poema, uma peça de colecção ou uma
pegada de dinossáurio, Lisboa, seu lugar, alonga-se à beira-água, nela
se mirando Miguel Barbosa.
Lisboa da Janela dos meus Olhos (1997). Das janelas de outros olhos
também, garrettianos, queirosianos, cesáricos, etc., vertida em
políptico progressivamente anoitecido (até num mesmo livro, como é o de
Cesário, onde surge a diferentes horas do dia em jeito de série
impressionista) tecendo a linhagem estética que o inscreve em si.
‘Cidade de água’ , elemento nuclear do “rosto” da Europa ‘jazente’
(Pessoa), “Onde a terra se acaba e o mar começa” (Camões),
projectando-se reflexivamente no espelho líquido e ondulante que a cerca
e atravessa, cenário de um velho e metamórfico motivo ao espelho que
Narciso e Vénus protagonizaram na mitologia e que a Literatura
Portuguesa verte em letra e mágoa. Colectivas:
“Nas colinas
dos teus amantes
Lisboa
há restos de caravelas
bolhas de ar
dos sonhos
que rebentam
em gritos
das cruzadas
em que te perdeste
e no silêncio
dos teus bairros
decadentes
há a dignidade
de um trapo
de sol
renascendo
roto
numa janela
florida”
Mas também individuais, numa identidade biografada em ciclo que
estrutura o livro desde a dedicatória (“Abri os olhos e a cidade
entrou.”) até ao testamento do poema XXXIII, capicua sugerindo a
coincidência entre início e final, nascimento e morte, ciclo
serpenteante como a mancha do poema busca sugerir, evocando o
deslizamento sinuoso da lágrima pela face:
“Quando eu morrer
levo comigo
o Tejo
reflectido
numa última lágrima
de saudade”
Inclinado sobre a folha-água, Miguel Barbosa reflecte-se e deixa
refractar nela o que o excede, protagonizando um gesto de tantos
antecessores, linhagem que foi tingindo de mágoa e pranto as
sobrimpressões configuradoras da Arte.
Fá-lo em marca d’água, sob a velatura do símbolo, da sinédoque e da
metonímia, esboçando um itinerário estético nesse de timbre agónico que
atravessa, também a tracejado, a própria Arte nacional ou outra que com
ela partilhe a identidade ocidental, conformando-se desde Homero, frente
ao mar, unificada pela interdiscursividade (memória, continuidade e
metamorfose), fundando indivíduo, país e Arte.
E Miguel Barbosa protagoniza o acto criativo na rigorosa confluência de
práticas e de saberes, rodeado de insígnias da Arte e da Ciência,
sondando-lhes as equivalências, imaginando-lhes a nexologia e ponderando
a tradição através dos seus símbolos maiores, dos seus mitos e das suas
vivências mais marcantes (episódios, sentimentos, etc.). Numa
interdiscursividade que é escorrência da mão e encenada no gesto.
Nesse lugar, foz de múltiplos rios e afluentes, Miguel Barbosa lembra o
anjo da Melancolia (1514), de Albrecht Dürer, auto-representação do
pintor enquanto artista dotada de complexo simbolismo, que Cèzanne evoca
em O Sonho do Poeta (1858-60) ou Mário Eloy em O Poeta e o Anjo (c.
1938), e representada depois, p. ex., em Demócrito em Meditação (c.
1650), de Salvador Rosa, na Melancolia (c. 1660) de Giovanni Benedetto,
no Retrato do Poeta James Thomson com a Melancolia de Dürer por trás
(1932) de James McBey, no desenho misterioso de 1935, de Picasso,
autêntica malha de evocações , tema cuja importância justificou um dos
dezasseis núcleos da exposição Diferença e Conflito: O século XX nas
colecções do Museu do Chiado (2004), "Da Melancolia" (com as suas
representações por Mário Eloy, Nikias Skapinakis ou João Tabarra,
destacando Aparelho Metafísico de Meditação, de 1935, de António Pedro,
considerada a única obra dadaísta portuguesa). Figura que Rafael senta
em primeiro plano n’A Escola de Atenas (na Sala da Assinatura do
Vaticano), representando Miguel Ângelo no melancólico e solitário
Heraclito, fundindo Arte e Filosofia. Figura do Desterrado (1872-74), de
Soares dos Reis, ou do antigo Pensador, reelaborado por outros (como
Rodin, em 1880-1904) , que Munch senta em finisterra crepuscular na sua
Melancolia (Anoitecer) (1896), contraponto da que Huysmans erguera, “rayonnante”,
“sereine et calme” entre inúmeras obras de arte em À Rebours (1884),
surpreendendo des Esseintes e, através dele, toda a posteridade. Figura
dominada por uma lúcida consciência da efemeridade de tudo que subsiste
na arte, evidenciada em O tempo mostrando as ruínas que provoca e as
obras-primas que deixa descobrir em seguida (1822) por Jean-Baptiste
Mauzaisse, que lhe sublinha o trabalho transformador, consagrada em
Clepsidra (1920), tematizada pictoricamente por António Dacosta em
Melancolia (1942) e, na literatura, por Vasco Graça Moura em
Instrumentos para a Melancolia (1980). Melancolia irmanada por Munch ao
finissecular e explosivo O Grito (1893), que, subsumindo em si o
canto-choro transversal à Literatura, desfalecerá na regiana
“Melancolia” (Biografia, 1929) e irromperá no igualmente regiano “Grito”
(em "Vocação" de Biografia, 1929), ou no de Afonso Duarte, ou no Howl
(1956) de Allen Ginsberg e se fragmentará no Grito (1997) agónico com
Rui Nunes, para apenas referir alguns exemplos. Melancolia sobre a qual
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e tantos outros escreveram.
Melancolia cuja dimensão estética Silvius Leopold Weiss (1686-1750)
celebrou musicalmente em Ars Melancholia e, recentemente, Pascal Dusapin
(n. 1955) e Jean-Luc Fafchamps (n. 1960) em La Melancholia (1991) e
Melancholia si... (2002), respectivamente. Melancolia ecoando e
laicizando a pietà que domina o imaginário ocidental, cristalizada em
iconografia religiosa e vertida em lacrimosa música, final de
inconcluído requiem de uma sociedade pelo que em si morre . Melancolia
dolorosa materializada na face crística que enluta o sentimento
ocidental e simbolizada na Verónica, relíquia maior com as insígnias do
sofrimento. Melancolia que o Maneirismo europeu faz emergir do
sentimento de crise de identidade expressa na ambiguidade, no
serpentinato, na stravaganza, na solidão e no notturno . Melancolia que
a contemporaneidade tem explorado, como o denuncia a sua múltipla
tematização no cinema mundial por Arvid E Gillstrom (Melancholy Dame,
1928), Kim Chun (A Melancholy Melody, 1952), Wui Ng (Autumn Melancholy,
1962), Jan Nemec (Necklace of Melancholy, 1968), Rafael Moreno (Las Alba
Melancolicas,1971), Mike Newell (Wessex Tales: The Melancholy Hussar,
1973), Ernie Damen e outros (Melancholy Tales, 1975), Andi Engel (Melancholia,
1989), Boris Savchenko (Melancholic Waltz, 1990), Hongo Mitsuru (Spirit
of Wonder: Miss China's Melancholy, 1992), Brian Rowe (The Melancholy
Death of Oyster Boy, 1999), Sam Meikle (Melancholy, 2001), etc.. |