“A minha imagem, ao espelho,
estremece-me. Carrego uma maldição. Está bem visível neste rosto.
A minha cara é a face última de uma
história antiga, com mais de duzentos e cinquenta anos; nela se
combina a desgraça com a felicidade, os fenómenos inexplicáveis com
a magia: dos espíritos que vagueiam sem descanso, aos túmulos em que
fechamos a realidade do dia-a-dia.” (p. 5)
Assim começa o Amor a Monte de Alexandre
Honrado1.
E, sob o signo da dúvida e da ‘arqueologia histórica’, inicia-se esse
mergulho na saga familiar e na colectiva que nos conduzirá à certeza em
que a narração se legitima e o ciclo ficcional se ancora:
“Sempre carreguei a dúvida: a minha
cara aparecia-me como a evocação da cara de outra pessoa, rara, que
a História não consegue desvanecer, apesar do inexplicável perdão
que alguns lhe votaram. Mas se antes duvidava, depois de tudo o que
entendi nesta narrativa, sou agora um reduto firme de certezas.” (p.
5)
Certeza inquietantemente insinuada na
epígrafe, fala oracular de Zaratrusta:
“Quando o Demónio muda a pele, não
muda ao mesmo tempo de nome? É que esse nome é apenas pele.” (p.5)
Mergulho simbolicamente iniciado sob o
signo da pomba branca:
“Naquela manhã, a pomba estacou na
minha janela, altiva, equilibrada no parapeito de pedra marmórea.
Era uma pomba rigorosa, como um
austero anjo de capela, invulgarmente branca. Trazia /…/ a extinção
da vida sob as suas asas – apesar de exibir um ar inalterado de
ingenuidade e luz. No bico, uma espécie de sol ou o sol reflectido,
ou um oiro intenso /…/…” (p. 6)
Na alvura invulgar da ave, confundem-se
luz e sombra, vida e morte, amor e ódio, os ingredientes do trágico
itinerário que termina “com um beijo recolhendo a lágrima que
finalmente a narradora deixou cair, lavando nela a pele das suas
sombras, impondo o sal de um amor a monte” (p. 217) consagrado em título
de obra que é monumento a ele, para que “nunca venha a ser esquecido”
(p. 217). Impõe-se, no fim, a pacificação e reconciliação de uma
revelação abençoada pela pomba-“anjo”.
O rosto da narradora busca-se na ondulante
imprecisão das águas da História. Em ponto de fuga, tecendo-lhe a
herança de “vergonha irreprimível”, os seus duplos: o feminino amado
(Matilde, a primeira do nome) ofelicamente impreciso no masculino odiado
(Marquês de Pombal). Um rosto ao espelho: outroragora, fusional.
Sobreimprimindo identidade e alteridade:
“Não quero fazer como Matilde Ramos,
minha tia-avó, nem como Violeta Ramos, sua irmã, mãe do meu pai, nem
como Cândida, ou Ângela, ou Bernarda, ou Rita, as mulheres que,
antecedendo-me, foram passando, de colo em colo, de exaltação em
silêncio, os segredos amargos, as dores infindas, os espantos de
mulher /…/. Apesar de serem, todas elas, temperadas do mesmo aço
original.
Eu quero voltar sempre a Matilde, à
primeira, depois de reconstruir com ela esta que sou e mostrá-la a
todos sem a profanar.” (p. 212)
Amor a Monte é, pois, a história dessa
sobreimpressão, dessa linhagem feminina noutras inscrita: a colectiva, a
estética e a imaginária.
A primeira linhagem cartografa mais de
dois séculos da História nacional (sécs. XVIII-XXI) através dos seus
lugares mais nucleares: geográficos, temporais, humanos e factuais. A
Inquisição, o Marquês de Pombal (“pomba a preto e branco”, p. 209) e D.
José, agigantam-se e contorcem-se no vórtice do terramoto de 1755 em
Lisboa. Mas também, em contraluz, “meias paredes, paredes meias”, mas
separada pelo interdito-interdito: a Maçonaria representada pela Loja
revelada no acidente de uma ruína, as sombras da História oficial que a
“embaraçam” e que “se fazem descrever” em trémula caligrafia (p.
213)...
A segunda linhagem é a do feminino ao
espelho, o clássico motivo da mulher ao espelho 1 (cuja mais célebre
protagonista foi Vénus3)4:
“(/…/ Olho-me ao espelho quase baço da
nova casa velha. Aqui olham-me outras com o meu nome, imagem após
imagem, a pele a esvair-se no pergaminho do tempo, com pós, carmins,
delírios, fábulas, quimeras, lágrimas manifestas ou ocultas.)” (p.
15)
A terceira linhagem, imaginária, d’ “o que
nunca a vista alcança” (p. 182), mescla-se de fantástico e de
espiritualidade: bruxas, monstros produzidos por raios (“Pedro Mangorro,
o Adamastor feito em homem”, p. 195), Lúcia Santa ou louca do “gelo
incomum das terras”, em cujos “olhos habitava um saber profundamente
dramático, um clarão que ainda estava porsoltar” (p. 182), “noites de
raiva” (p. 181) e de sonhos, pressentimentos (p. 183), “pactos com a
vida” (p. 195), espíritos, nomes de míticos ecos (Lázaro Langor, André
Dédalo, etc.)…
A escrita, ficcionando suposta memória,
vai dando corpo a um “lugar assombrado” (p. 15) marcado pelos cheiros,
pesos, sulcos e gemidos dos seus fantasmas: Amor a Monte, o livro…
Até que se “viu um grande capricho”:
“/…/ as águas a recuarem, a deixarem o
leito a descoberto, cheio de conchinhas, pedras, limos, securas .”
(p. 195)
Cenário de epifania.
Nesse cenário onde poderia emergir Vénus,
elevar-se-á outra figura:
“Dona Matilde foi-se erguendo aos
poucos das manchas escuras dos caminhos idos /…/”. (p. 211)
E, nesse face a face de temporal
perspéctica, os rostos sobrepõem-se numa só identidade informada de
metamorfose:
“Dona Matilde foi-se erguendo /…/ e
entrando em mim como uma sarda na pele, um cabelo branco uma mania a
desassossegar-me ternamente”. (p. 211)
Nesse cenário, afunda-se o mundo:
“Depois, as coisas precipitaram-se.
O céu rodopiou em ventos e deu à luz um destino fatal.
A terra engoliu os homens.
O fogo tragou o que podia.
A água voltou e varreu até à insanidade.
O padre que ia atrás do mar voltou devolvido numa crista de onda.”
(p. 196)
“Milagre! Milagre! Milagre!”: nascimento
volvido morte, “morte que é geração” (p. 7).
Assim se sobrepõem e confundem os opostos
dessa lei da vida e da morte que se repete “pelos séculos e séculos até
à loucura final” (p. 7). Coniunctio, conjunção de opostos.
Do anúncio e dos sinais apocalípticos
“- O Mundo está mesmo a acabar. /…/ Se
virem as aves no céu, se apontarem ao Ocidente onde o ocaso fecha o
Sol, se repararem em pombas brancas e pretas a fugirem juntas, se a
terra desabar e o mar vos engolir, se o vento esburacar o dia, /…/
depois da morte vem mais morte, é a mesma lei que dita que à vida
segue a vida, até ao último sinal dos tempos, que há-de ser um como
este que hoje chega…” (p. 180)
à sua concretização, o tempo é breve e, de
acordo com o bíblico aviso, surpreende:
“Foi então que Deus, de repente, se
levantou da cama onde estivera tempo demais e se preparou para
morrer.
A terra começou a abalar-se, do centro para a superfície.
/…/
- É a hora!” (p. 199)
Depois, é o teatro do mundo cumprindo a
profecia do santo (S. João) e das videntes (a nacional e a “do Congo,
Himpa Vita”, p. 201): terramotos sucedendo-se numa longa e
impressionante hipotipose (de novo, o outroragora) que nos faz tremer…
E tudo se conclui com a transfiguração no
encontro ali dos quatro elementos “quase ao mesmo tempo e em corrida”
(p. 205):
“André de mãos estendidas, Mangorro de
mãos nas dele, Alfonsa que tocou nos outros, Lúcia que se lhes
juntou de dedos apontados /…/.” (p. 206)
são engolidos pelo chão, tragados pelo
mar, guindados pelos ventos e ampliados pelo fogo (p. 206), desaparecem,
impulsionando Matilde “a seguir em frente” (p. 206) a partir da velatura
dessa partida “para que os outros pudessem ficar”, em “espanto” (p.
206). Sobre eles, “duas pombas, preta, branca” (p. 206): culminando a
ficção, a obra, a Obra. Espiritualização ou alquimia: transfiguração5 ou
ascenção que o arquétipo religioso consagra e que as forças telúricas,
elementais, parecem configurar. Imagem que pode sinalizar também a
transfiguração em que se gera a própria imagem estética6.
E ali ficou um padrão: “uma pedra bicuda e
firme” (p. 206) que ainda assinala o prodígio.
Talvez essa pedra-padrão sinalize também
(nas múltiplas máscaras desta ficção), nas sombras da História (na outra
ou no seu negativo), uma geografia secreta de esotérica cartografia que,
de certa forma, poderá estar insinuada nas referências às colunas da
sala com as letras J e B (Jachim/Jakin Boaz, do hebraico
‘estabelecer-se-á em força’), a São Julião, a Sta. Basilissa e a Mafra
(p. 214): a de uma Avenida ou Estrada do Sol que se diz ter sido
planeada por D. João V ligando em linha recta Mafra ao Atlântico,
passando pela ermida de S. Julião e Santa Basilissa (Carvoeira), em cuja
galilé se encontra “a Pedra do Mistério, na realidade a planificação da
Pedra Cúbica, cujos quadrados mágicos já transformados em pentáculos,
são o corolário da mestria guemátrica de Manuel Teixeira, ilustre
cabalista” 7. “Pedra bicuda”: piramidal (conjugando triângulos e
compassos)? “Avenida” simbolizando o projecto nacional expansionista de
um Quinto Império universal (universalidade enunciada na última epígrafe
do livro, de Tolstoi)? Mafra apontando para a Cidade Eterna, a Jerusalém
Celeste, etc.? Mafra, desejando-se símile do Templo de Salomão, com as
dimensões do Terreiro do Paço, praça de Arcos ou Arcanos, em cujo lugar
correspondente ao “altar-mor” domina a estátua equestre de D. José I
(lembrando S. Jorge, segundo alguns). Pedra também anunciando essa
Lisboa pombalina, pós-terramoto, erguida a compasso e esquadro, e
embebida de António Vieira, de Bandarra, de Camões, capital do desejado
Quinto Império.
Enfim, no plano estético, uma “pedra
bicuda e firme” evocando o seu vértice a ponta da caneta que realiza a
alquimia da obra ficcional (no caso, Amor a Monte)?
Outra velatura nimba, ainda, o verbo textual, a da ficção:
“Se esta história fosse verdadeira, eu
estaria nos braços do Jorge a escrever as últimas linhas.
/…/
Em contrapartida…
Aqui estou na minha casa ao gosto de Áustria.
Matilde, a primeira desse nome, está comigo.” (p. 207)
Verbo em “letra floreada” “como uma renda”
(p. 208) onde se dissolve a temporalidade por pudor e mágoa (p. 208).
Alquimia do Verbo, “demorada e exacta” (p. 208), do negro das sombras,
passando pelo vermelho da dor, até ao branco sublimado ou ao ouro da
imortalidade, suspenso do bico da pomba...
Na “fantasia” da “renda”, a “denúncia”
sela o evangelho de dor (individual e colectiva), “para que a história
/…/ fique fechada” (p. 209). Revelação. Nas peripécias da História, tudo
mudou, excepto “um penhor, uma secreta vergonha, um segredo para contar”
(p. 211): “três coisas, todas três mistérios” (p. 215)…
No arabesco da indagação, no desvelar do “enigma” pela descendente,
última do nome,
“/…/ as pistas estavam todas naquela arca-burra, parada no tempo, à
minha espera.” (p. 12)
Gerações depois, Matilde entra na casa da que lhe transmitiu identidade
(nome e património, “herança de espectros e de ideias”, p. 211),
sentindo-se a regressar e a ver a outra, ou a ver-se nela:
“Ao entrar pelo portão principal da
minha casa (!!!), /…/ senti-me logo atraída e integrada. /…/
Pelos mistérios e pela sede de memória.” (p. 13)
“Esta primeira Matilde, uma mulher do
século das Luzes, /…/ é o último reduto, ou o momento inicial da
minha própria pele.” (p. 14)
E, em jeito do profeta joanino de bíblica
memória, a herdeira des-sela-nos dois.
“O primeiro, o conteúdo da arca-burra
de ferro pintado: tinha, prisioneiros, finos fios da meada que
acabei de compor, um poema longo e só; um retrato apenas, pintado
com grande realismo, que me dissipou dúvidas; breves notas de
confissão de um dia que mudou o mundo, 1 de Novembro de um ano a
desabar.” (p. 215)
Fios entretecidos no bordado do livro,
matéria em que ele se inspirou, sopro que insuflou o (des)amor nele
anichado.
“O segundo segredo é meu e dela. Um
quase-nada, que não digo por ser tão nosso como o sangue e a pele
das minhas sombras mais intensas. (p. 215)
Sombra inatingível no fundo labirinto da
memória e da ficção, mas também do imaginário colectivo8. O por dizer…
“ O último segredo é o maior que
revelo – ela assim o quis.” (p. 215)
A violação pelo embriagado governante
ocultado pelas trevas, o filho nela gerado e a morte do pai,
sobrevivente de cárceres “até à beira da alucinação” (p. 215), ao
reconhecer no rosto do neto a face do seu carrasco…
Na lágrima recolhida no beijo, nos rostos de Matilde(s) que se encontram
e fundem em outroragora, figurações andróginas (feminino/masculino,
passado/presente), purifica-se a memória de Matilde, harmonizam-se as/os
diferentes.
E o “rosto” passa a ser “a feição” (p.
217) que o amor lhe confere, afeição…
… Amor a Monte. |